Não devemos falar da sucessão rural de uma forma rasa
Historicamente, a falta de renda e oportunidades são apontadas como elementos para a dificuldade da permanência da juventude no campo. No cenário contemporâneo, essa realidade aparece de forma mais explícita quando, em agosto de 2020, o governo federal extinguiu o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural.
"Eu acho os jovens têm muito a ideia de ir para a cidade estudar como uma forma de buscar a independência [financeira], muitas vezes as próprias pessoas mais velhas incentivam que o jovem siga para a cidade", aponta Emily Peixoto, de 23 anos, que estudou Informática no Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e voltou a morar no sítio Bom lugar, em Paraú (RN).
Para encarar os desafios da sucessão rural, Emily faz parte de uma rede de 70 jovens no Rio Grande do Norte que participam de ações e estratégias para afirmar seus sonhos com o futuro mantendo os pés no chão rural. O grupo está articulado na Rede Xique-xique de Comercialização Solidária em 20 núcleos, formados em diferentes municípios potiguares.
“Não devemos falar da sucessão rural de uma forma rasa. A gente tem que garantir esse processo da inclusão socioprodutiva da juventude, e para isso é fundamental motivar com que os jovens estejam no processo de liderança dos núcleos, na organização das suas feiras locais”, defende Átalo Silva, coordenador de projetos da rede Xique-xique.
Cada núcleo municipal da rede é formado especificamente por pelo menos duas representatividades: juventude e mulher. Dessa forma, a articulação da Xique-xique propõe um protagonismo político desses públicos, através de formações de lideranças em gestão e reuniões na comunidade. Hoje, a atuação das juventudes é um dos quatro princípios estruturais da Xique-xique, ao lado da agroecologia, feminismo e economia solidária.
Reforço
Átalo Silva conta que o público jovem sempre esteve presente nos espaços da rede, mas que nos últimos anos foi necessário intensificar as atuações neste sentido porque as gerações mais novas apontavam ainda mais dificuldades em permanecer no campo.
"Os jovens nunca deixaram de participar da rede Xique-xique, mas diante do êxodo rural e falta de oportunidade no campo foi percebido que era preciso nos fortalecer. Assim têm se buscando ações estratégicas, através da captação de recursos", ressalta o coordenador, destacando a participação de organizações de financiamento e estratégias para comercialização solidária.
Troca de saberes
Além do fortalecimento para auto-organização das juventudes, a articulação da Xique-xique possibilita a troca de conhecimentos através de intercâmbios, potencializando os saberes entre regiões, gerações e sonhos de cada participante.
Rylson Freitas é neto e filho de agricultores familiares. Em janeiro de 2020, ele deixou a carreira de servidor público na área urbana de Tibau (RN) e voltou para o campo. Dois meses depois, em março do mesmo ano, o jovem de 23 anos, que sempre planejou a volta para o roçado, foi convidado pela rede. Ele afirma que as atividades de intercâmbios expandiram seus conhecimentos, aliando as tradições das pessoas mais velhas da família com as inovações construídas pela teia de saberes da rede.
"Como o matuto diz ‘forma uma grande roda’, a gente vai sair de uma bolinha pequena e vai expandindo a visão de mundo. Vai deixando certos paradigmas, dogmas e vai se abrindo mais à diversidade e pluralidade que o mundo hoje exige de nós", destaca o jovem que mora na comunidade de Gangorra e faz parte do conselho fiscal da Rede Xique-xique.
Novos imaginários
A jovem Emily Peixoto, que faz parte da Xique-xique através do núcleo do município de Paraú, afirma que a participação na rede de juventudes mudou o seu imaginário sobre a agricultura familiar.
“Mudou principalmente a minha visão da agricultura. Porque antes era uma visão muito preconceituosa, eu considero. Porque eu não via futuro, digamos assim, em fazer parte da agricultura. Eu pretendia sair da cidade, até porque não via muita oportunidade nesse ponto”, lembra.
A jovem afirma que descobriu que não precisa necessariamente abandonar as atividades rurais com os estudos, e que "pode unir as duas coisas para fazer algo mais interessante". Ela destaca que além de comercializar pães e beiju, trabalha na comunicação em rede da feira da agricultura familiar da cidade.
Emily também ressalta a importância da articulação em rede para quebrar visões machistas no campo. Ela lembra que muitas políticas públicas no setor ainda são direcionadas especificamente para o público masculino.
"Eu sempre achei isso muito errado, porque a mulher também faz as coisas, mas o dinheiro fica com homem. Acaba que você fica sujeita ao homem, você tem que pedir. Eu não acho isso interessante. Eu acho que a mulher tem que ter a independência dela e ter acesso ao dinheiro dela e fazer o que ela quiser com ele", pontua.
História da rede
A experiência em rede surgiu na década de 1990, a partir do grupo “Mulheres decididas a vencer”, que trabalhava a inclusão produtiva e o combate à violência contra a mulher. Elas passaram a trabalhar de forma agroecológica e se organizaram através da APT (Associação Parceiros da Terra), buscando se livrar dos atravessadores e criar uma relação direta com quem consome. Em 2003, surgiu a Rede Xique-xique, presente no Rio Grande do Norte.
Edição: Daniel Lamir e Douglas Matos