O cumprimento da regra do Teto de Gastos virou exceção durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), eleito sob promessas de austeridade fiscal. Em quatro anos de mandato, o presidente já furou a norma para controle de despesas em três. Ao todo, estourou o teto em R$ 213 bilhões.
Defendido por liberais como sinal de responsabilidade administrativa, o teto é criticado por muitos economistas por limitar os investimentos governamentais em áreas sociais enquanto privilegia repasses ao sistema financeiro. Ou seja, os bancos seguem recebendo enquanto os mais necessitados sofrem com os cortes.
O valor acumulado de R$ 213 bi foi calculado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado. Leva em conta, inclusive, o gasto de R$ 41 bilhões autorizado no mês passado pelo Congresso com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Auxílios.
A PEC aumentou o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 mensais, criou o auxílio caminhoneiro de R$ 1.000 por mês e outros benefícios sociais. Todos eles começaram a ser pagos neste mês, faltando cerca de 60 dias para eleição, e são válidos até dezembro.
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Segundo Bolsonaro, a aprovação da PEC e o furo do Teto de Gastos eram necessários para dar conta de uma situação emergencial no Brasil causada pelo aumento do preço dos combustíveis ligado ao início da guerra entre Rússia e Ucrânia, em fevereiro.
Antes da guerra, porém, Bolsonaro já havia furado o teto outras três vezes.
Neste ano, inclusive, ele já fala em mudar a regra do teto caso seja reeleito. Nesse ponto, aliás, ele copia argumentos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que defende há anos mudanças no teto.
"O Teto de Gastos foi criado para evitar que seja dado aumento na saúde, educação, transporte coletivo e renda dos trabalhadores. Não haverá Teto de Gastos em lei [caso eu seja eleito]", disse Lula, em evento pela valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), em São Paulo, neste mês.
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Histórico de descumprimento
O Teto de Gastos foi criado pela Emenda Constitucional 95, aprovada durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), em 2016. A regra determina que gastos do governo até 2036 só podem crescer com base na inflação. A ideia é que, mantendo gastos relativamente constantes, sobre mais dinheiro no caixa do governo para pagamento da dívida da União.
A regra do teto começou a afetar o Orçamento a partir de 2017. Naquela época, a dívida pública bruta equivalia a cerca de 70% do Produto Interno Bruto (PIB). Hoje, é 78%. Em 2021, na pandemia, chegou a 89%.
Naquele ano, aliás, o governo Bolsonaro conseguiu que o Congresso autorizasse dois furos do teto de gastos: em março, a chamada PEC Emergencial abriu um espaço para gastos de R$ 44 bilhões fora do teto para pagamento do Auxílio Emergencial; já em junho, a aprovação da PEC dos Precatórios mudou a correção do teto, criando uma brecha de R$ 81 bilhões que acabaram usados na criação do Auxílio Brasil.
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Antes disso, em 2019, também no governo Bolsonaro, o Congresso já havia aprovado uma outra PEC para permitir que o governo repassasse a estados R$ 46 bilhões referentes à repartição da cessão onerosa do pré-sal.
Segundo o economista Daniel Veloso Couri, diretor-executivo da IFI, as alterações desconfiguraram o teto. Assim, ele não surtiu o resultado esperado, apesar de ter servido para redução de gastos públicos.
Asfixia ao investimento
O economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca que a redução dos gastos "acaba asfixiando o orçamento de áreas estratégicas como educação, saúde, ciência e tecnologia e investimentos em infraestrutura”.
Roncaglia ressaltou que essa asfixia não afeta os montantes reservados ao pagamento dos juros das dívidas, cuja maioria dos títulos pertence aos bancos. Eles, em suma, não foram afetados pela regra de controle fiscal. Os mais necessitados, sim.
Mauricio Weiss, economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta que o Teto de Gastos foi eficaz principalmente para a criação de um discurso sobre a falta de recursos pela União. Com base nele, o governo consegue cortar investimentos e até justificar privatizações.
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"O teto serve para aumentar o discurso de que o Estado precisa fazer dinheiro e que não tem condições de administrar empresas. Esse discurso cola em parte da grande mídia que é bem recebido no mercado financeiro, que incentiva as privatizações, que é naquilo que o mercado tem maior interesse", afirmou Weiss.
Ele lembrou que esse discurso não serviu, porém, para controlar o gasto do governo com o chamado "orçamento secreto". Apesar do governo falar de falta de dinheiro, os gastos orientados por parlamentares e para acordos políticos cresceram mesmo com o teto.
Marcio Pochmann, economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), disse que defensores do teto prometeram o crescimento do investimento privado com a redução do gasto público. Isso, segundo ele, não ocorreu. Também não resolveu o problema das finanças públicas brasileiras. "Seguimos com déficits mesmo com privatizações e elevação da carga tributária", afirmou.
Weiss e Roncaglia são favoráveis à revogação da regra. Isso não significa que a busca pelo equilíbrio das contas públicas deve ser abandonado.
Roncaglia defende mais foco no aumento das receitas do governo e na geração de riqueza como um todo para que a relação do PIB com a dívida pública se tornasse mais favorável.
O próprio ministro da economia Paulo Guedes, maior representante do mercado financeiro no governo, já admite propor uma revisão da regra do Teto de Gastos para um eventual segundo mandato de Bolsonaro. Guedes, que sempre defendeu a regra, admitiu que o governo não conseguiu cumprí-lo. Agora, defende que os gastos de governo sejam vinculados ao nível da dívida do país, abandonando assim o congelamento de despesas.
Edição: Rodrigo Durão Coelho