A inserção internacional de um país pode alterar também a sua estrutura social e de desenvolvimento
*Por Ana Tereza Marra, Flávio Rocha, Gilberto Maringoni, Giorgio Romano Schutte e Tatiana Berringer são professores da Universidade Federal do ABC e integrantes do Observatório da Política Externa Brasileira e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
A política externa brasileira deve apostar no multilateralismo e na multipolaridade? Deve conferir prioridade às relações Sul-Sul? Essas perguntas devem ser o ponto de partida para analisar, e também propor, programas de política externa e inserção internacional do Brasil.
Em primeiro lugar, é importante ter em mente outras duas questões: o papel que o Brasil ocupa na estrutura de poder internacional e a correlação de forças no cenário global.
Partimos ainda de um mundo cindido entre grandes potências e Estados e economias dependentes. Salvo raras exceções, que realizaram revoluções políticas e sociais como a China, a divisão Norte-Sul permanece. O ciclo de industrialização brasileira no século XX foi feito sem romper com a dependência externa, muito pelo contrário, ocorreu de forma associada. Ainda nos inserimos de maneira subordinada nas cadeias globais de valor, sobretudo após mais de três décadas de neoliberalismo e de um forte processo de desindustrialização e desestatização.
O cenário internacional atual, desde a eclosão da crise de 2008, trouxe o acirramento dos conflitos interestatais, especialmente entre China, Rússia, Estados Unidos e Europa. Presenciamos a transformação de uma ordem hegemônica dominada pelos Estados Unidos em uma ordem multipolar.
Estamos falando de um contexto que apresenta oportunidades de desenvolvimento e novas alianças para Estados dependentes. A política externa não deve ser pensada de forma descolada da política doméstica, elas estão conectadas e condicionam uma à outra. A inserção internacional de um país pode alterar também a sua estrutura social e de desenvolvimento.
Assim, não devemos optar por X ou Y dentre os países hegemônicos, mas nos posicionar a partir de um projeto estratégico que leve em conta os interesses locais, tanto econômicos, como políticos e sociais. Nesse sentido, o Sul Global segue atual e necessário.
A América do Sul é nosso primeiro espaço de interação, são nossos vizinhos, compartilhamos história, fronteiras e processos políticos e econômicos similares. Processos de integração e cooperação podem e devem potencializar as políticas de desenvolvimento e o alcance de maior autonomia no cenário internacional. O Brasil destina grande parte da exportação de manufaturados e de investimentos para essa região, e ganha maior peso de negociação a partir do pólo sul-americano. Por isso, é importante retomar a experiência interrompida com a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e continuar apostando no Mercosul.
A África é o continente separado pelo Oceano Atlântico, mas que também nos possibilita criar laços de cooperação e solidariedade, recuperando a cultura e o legado do povo negro nos dois continentes, cuja imigração forçada ainda é fortemente negada. Isso sem perder de vista seu potencial para exportação, cooperação e investimento brasileiro, benefícios que também estão presentes nas relações com Estados do Sul Global na Ásia e Oriente Médio.
Além de oportunidades, as coalizões e alianças com os países do Sul que têm potencial de serem reativadas ou criadas podem contribuir para defender o Brasil do unilateralismo das grandes potências e levar em conta a construção de um cenário internacional menos desigual e mais pacífico.
O mundo está em transformação. A China em breve será a maior economia do mundo. As ações dos EUA diante do conflito na Ucrânia e as provocações em torno de Taiwan demonstram o esforço de alto risco para manter sua hegemonia. Muito do que acontecerá vai depender da capacidade do “resto” do mundo de pautar uma outra agenda, que reconheça o caráter multipolar que o mundo está tomando e reforce o multilateralismo para encontrar soluções para desafios comuns como as crises climáticas, a fome e o emprego decente. O Brasil, articulado com os demais países latino-americanos, pode e deve participar ativamente desse processo.
Saber analisar o lugar que ocupamos e onde queremos chegar deve ser o ponto de partida. Caso contrário, as alianças e alinhamentos no plano internacional tornam-se os principais equívocos da manutenção da subordinação, da dependência e do atraso de um país, especialmente quando temos os EUA no mesmo hemisfério.
*O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Thales Schmidt