O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou, nesta quarta-feira (24), ação com pedido de liminar para que a Justiça Federal (JF) determine à União e à Fundação Nacional do Índio (Funai) que concluam imediatamente a demarcação das terras indígenas Tabajara, localizadas no litoral sul da Paraíba.
A ação também requer que seja determinado ao município de Conde (PB) que não mais autorize a instalação de empreendimentos imobiliários nas terras tradicionais reivindicadas pelo remanescente do povo Tabajara. A inserção da ação no sistema de Processo Judicial Eletrônico (Pje) ocorreu durante reunião com participação de indígenas da etnia Tabajara, no auditório do MPF, em João Pessoa.
“Há pelo menos 29 anos, o novo Estado brasileiro deve aos Tabajara a devolução de suas terras tradicionais”, argumenta o procurador da República José Godoy Bezerra de Souza na ação. O período mencionado é uma referência ao artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que determinou que a União concluísse a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
O prazo venceu em 5 de outubro de 1993. “A bem da verdade, findo o prazo estabelecido pela Constituição Federal, restou concretizado o direito público subjetivo dos Tabajara de verem suas terras devidamente demarcadas”, observa o procurador.
Informe técnico, produzido em 2017 por grupo técnico responsável pela realização de pesquisas e elaboração de Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (RCID), registrou que as áreas de ocupação Tabajara compreendem “os limites dos rios Gramame, ao norte; Abiaí, ao sul; o Oceano Atlântico, a leste; e a BR-101, a oeste”.
O informe também registrou que, apesar de ser identificado como área de uso indígena, após a Lei de Terras, de 1850, o território dos Tabajara foi sendo gradativamente ocupado e legalizado pelo Estado e “os indígenas foram confinados a uma pequena porção territorial no interior da Jacoca, tendo redução territorial expressiva de fora para dentro”.
Estudo antropológico, coordenado pelo doutor e mestre em antropologia social Fabio Mura, atesta que a luta dos Tabajara pela terra remonta ao ano de 1614, quando se efetivou a concessão das terras da Sesmaria dos índios de Jacoca (atual município de Conde). A pesquisa revela que, ao longo dos séculos, os Tabajara também foram denominados Potiguara, brasilianos, índios de língua geral, caboclos de língua geral, índios da Jacoca e índios de Conde.
O estudo também indica que os índios aldeados na Jacoca são os Tabajara, já que alegavam ter auxiliado os portugueses nas lutas contra os Potiguara, quando da conquista da capitania, nas últimas décadas do século XVI.
Quase extintos - Ao longo dos últimos três séculos, os Tabajara quase foram extintos. Em decorrência das constantes ameaças à relação com a terra tradicional, eles ainda enfrentam dificuldades em manter a forma própria de organização social e passar para as próximas gerações os seus costumes, suas línguas, suas crenças e tradições.
“Como consequência, muitas famílias indígenas desaldeadas têm visto seus filhos tornarem-se ‘favelados’ nas periferias de João Pessoa, desapossados de suas terras tradicionais”, relata a ação ajuizada.
Hoje, o remanescente Tabajara é formado por cerca de mil pessoas (afora aqueles ainda não identificados), situados no município de Conde, onde vivem em três aldeias: Vitória, Gramame e Nova Conquista, nas quais mantêm ainda a luta histórica pela demarcação.
Em 14 de março de 2008, os Tabajara enviaram à Funai a Declaração de Autoidentificação com histórico de sua ocupação no Litoral Sul da Paraíba e solicitaram a criação de um grupo de trabalho para realizar os estudos técnicos necessários à regularização fundiária das Terras Indígenas Tabajara, incidentes nas antigas sesmarias da Jacoca e Aratagui.
Omissão inconstitucional – O MPF acompanha a luta dos Tabajara pela recuperação do território tradicional desde 2011, por meio do Inquérito Civil Público 1.24.000.001488/2011-66, além de outros dois inquéritos (1.24.000.000032/2015-11 e 1.24.000.002126.2018-69), em que se discutem agressões aos direitos territoriais da etnia Tabajara, seja pela ação especulativa de empreiteiros locais, seja pela inércia da Funai em promover a demarcação.
A ação ajuizada nesta quarta-feira detalha, ano a ano, as tentativas, em vão, do órgão ministerial para fazer andar o procedimento demarcatório da Terra Indígena Tabajara pela Funai.
Para se ter uma ideia da demora, a partir da primeira provocação do MPF, a Funai levou quatro anos apenas para editar a portaria autorizando o início dos estudos de natureza etno-histórica, antropológica, ambiental e cartográfica, “o que, certamente, não é um prazo razoável”, observa o Ministério Público.
Essa demora na demarcação traz ao remanescente do povo Tabajara prejuízos culturais, insegurança alimentar, violência intertribal e insegurança social, decorrente do conflito de terra com os não índígenas da região, que se arrasta há mais de 300 anos.
O Ministério Público ressalta que a ausência de resolutividade da União e da Funai, aliada à especulação imobiliária, decorrente do crescente avanço do processo de urbanização do litoral sul paraibano, tem atirado os Tabajara para uma condição de marginalização social. O quadro se agrava diante da degradação que empreendimentos imobiliários representam ao meio ambiente na terra indígena.
Omissão municipal – Na ação, o MPF pede que a Justiça determine ao município de Conde que não mais conceda permissão de instalação e casse todas as permissões indevidamente dadas para empreendimentos imobiliários na área reivindicada pelo povo Tabajara.
Em dezembro de 2021, o MPF já havia expedido recomendação ao município para que não autorizasse empreendimentos ou construções, públicos ou particulares, que viessem a descaracterizar o território indígena.
O município se esquivou de cumprir a recomendação alegando que apenas poderia criar restrições após a conclusão da demarcação feita pelo órgão competente, a Funai, e que, se cumprisse as medidas recomendadas, acarretaria em restrições administrativas que impediriam o uso e gozo por parte dos atuais proprietários das terras dos Tabajara, o que geraria direitos a indenizações.
Para o MPF, esse posicionamento “desafia os direitos da população Tabajara e beneficia abertamente os empreendedores locais”. Além disso, é uma justificativa que não se sustenta diante do fato de que a demarcação oficial não é que constitui o direito dos Tabajara à terra expropriada pelos colonizadores, mediante pilhagem, mas apenas declara o direito originário que os indígenas já têm sobre as terras que tradicionalmente ocupam, conforme dispõe o artigo 231 da Constituição Federal.
Protocolização no Pje - O ajuizamento da ação civil pública ocorreu durante reunião na sede do MPF, na capital, que contou com a presença de indígenas integrantes das três aldeias Tabajara: Vitória, Gramame e Nova Conquista.
No momento da protocolização virtual da ação no sistema PJe, coube ao cacique Edinaldo dar o clique que enviou à Justiça Federal o pedido para que o território Tabajara volte para as mãos dos legítimos donos.
Para o procurador da República José Godoy, a participação dos indígenas no momento da protocolização da ação judicial é o aspecto visível da longa luta de reparação histórica do povo Tabajara pela retomada do seu território. “Esse ato simbólico representa o nosso entendimento de que o Ministério Público deve agir com o povo Tabajara, não para o povo Tabajara”, explicou o procurador.
Pedidos liminares – Liminarmente, o MPF requer à Justiça Federal que determine à União e à Funai as seguintes obrigações a serem cumpridas nos prazos previstos no Decreto 1.775/93, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas:
• Publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação no Diário Oficial da União (DOU), em 15 dias;
• conclusão da demarcação física, em 30 dias;
• conclusão das avaliações de benfeitorias existentes em todos os imóveis incidentes na Terra Indígena Tabajara, em 60 dias;
• concessão da posse definitiva da área delimitada aos indígenas Tabajara, inclusive com a desintrusão (retirada) dos atuais posseiros da área, em seis meses;
• multa diária de R$ 50 mil, caso haja descumprimento dos prazos acima, revertida em favor do grupo indígena Tabajara, valor a ser administrado pelo conselho tribal da comunidade indígena;
• manutenção do atual grupo técnico (GT) designado pela Portaria 882/2015, responsável pela elaboração dos estudos de identificação e delimitação do território Tabajara, a cargo da Funai, e apresentação à Justiça de toda a documentação já produzida pelo GT, no prazo de 60 dias, e que seja determinado à Funai o prazo de 15 dias para sua publicação no DOU. O objetivo desse pedido é a necessidade de celeridade processual e preservação de todo o trabalho já produzido pelo GT;
• publicação oficial dos resultados do GT, no prazo de 15 dias;
• conclusão da demarcação no prazo de 345 dias, a partir da publicação oficial dos resultados do GT sob pena de multa diária em cada um dos casos, no valor de R$ 50 mil, a título de astreintes (multas diárias);
• determinação ao município de Conde que não mais conceda licenças, alvarás de construção, certidão de habite-se de obras, autorização para ligação de água ou energia, licença ambiental prévia, de operação ou de instalação, para empreendimentos situados na área reivindicada pelos indígenas, bem como que sejam cassadas, em 30 dias, todas as permissões indevidamente concedidas na área reivindicada pelo povo Tabajara.
Pedido final – No pedido final, o MPF requer o deferimento da liminar conforme solicitado; a condenação da União e da Funai à demarcação física da Terra Indígena Tabajara, e a concluir o processo de demarcação, inclusive com a desintrusão dos atuais posseiros da área, em 415 dias, a partir do deferimento da medida liminar.
Além disso, o órgão ministerial também pede condenação do município de Conde ao pagamento de multa diária de R$ 20 mil, em caso de concessão de novas licenças, alvarás de construção, autorização para ligação de água ou energia, certidão de habite-se de obras, ou licença ambiental prévia, de operação ou de instalação, para empreendimentos situados na área reivindicada pelos índígenas, sem explícita concordância por parte dos caciques locais.
Fonte: BdF Paraíba
Edição: Maria Franco