Durante a entrevista que concedeu ao Jornal Nacional nesta quinta-feira (25), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi perguntado sobre seu apoio a supostas "ditaduras latino-americanas de esquerda", ao que o petista respondeu citando o princípio da "autodeterminação".
"Para um democrata, a gente precisa respeitar a autodeterminação dos povos. Cada país cuida do seu nariz. É assim que eu quero para o Brasil e é assim que eu quero para os outros", disse o presidenciável.
Lula continuou a resposta citando uma iniciativa liderada pelo seu governo em 2003: a criação do Grupo de Amigos da Venezuela.
As relações entre Brasil e Venezuela se tornaram muito prósperas ao longo dos anos em que os países foram governados por Lula e Hugo Chávez, mas uma das primeiras iniciativas de aproximação e boas relações viria logo no primeiro ano de mandato do petista.
Tendo como principal articulador o Brasil, o Grupo de Amigos da Venezuela foi criado para servir como instância fomentadora de um diálogo entre governo e oposição da Venezuela.
À época, o governo venezuelano enfrentava um locaute geral organizado por setores empresariais e por grande parte da direção da PDVSA, a companhia petroleira estatal do país. A paralisação, iniciada em dezembro de 2002, se estendeu até fevereiro de 2003.
"A iniciativa teve amplo sucesso", opina Igor Fuser, professor de Relações Internacionais da UFABC. Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor relembra que o movimento iniciado na Venezuela tinha o "objetivo de paralisar a economia do país e, com isso, derrubar o governo de Hugo Chávez".
"A intenção do Grupo de Amigos era a de evitar o isolamento internacional da Venezuela, desmontando a tentativa dos EUA de caracterizar o governo chavista como uma ditadura e ela teve amplo sucesso nesse objetivo", diz Fuser.
O país vizinho vivia uma crise política que se estendia desde finais de 2001, quando entidades patronais e partidos opositores iniciaram uma série de marchas contra o governo chavista, após o Executivo ter aprovado diversas reformas que, entre outras medidas, taxava empresas transnacionais do setor petroleiro, fixava em 51% a participação do Estado em sociedades mistas e facilitava a expropriação de latifúndios.
As medidas tomadas por Chávez através da Lei Habilitante enfrentaram oposição do setor privado e da direita do país, que se mantinham mobilizados pedindo a renúncia do mandatário. A situação escalou em abril de 2002, quando o alto comando das Forças Armadas e a grande imprensa aderiram aos apelos da oposição e organizaram um movimento golpista que tentou derrubar o presidente do poder.
Após a derrota dos golpistas, Chávez continuou enfrentando protestos e paralisações patronais. Além disso, o discurso dos Estados Unidos, então governado por George W. Bush, subiu de tom e o país passou a classificar o presidente venezuelano de "antidemocrático".
É nesse contexto em que Lula assume a Presidência do Brasil e tenta, com o Grupo de Amigos da Venezuela, diminuir as tensões no país vizinho e fomentar o diálogo não só entre governo e oposição, mas também entre Caracas e Washington, já que os EUA foram convidados a integrar o grupo.
"Os Estados Unidos aderiram ao grupo a contragosto, porque a partir dessa iniciativa quem corria o risco de ficar isolado na questão venezuelana era o governo estadunidense", avalia Fuser.
Para o professor, esse apoio do Brasil à Venezuela "foi fundamental para dificultar a campanha dos Estados Unidos, apoiados pelo governo de [Álvaro] Uribe na Colômbia, a fim de isolar e derrubar o governo chavista".
Lula e a Venezuela
Durante entrevistas e debates, é recorrente que o ex-presidente seja questionado sobre as relações que construiu com a Venezuela no período em que esteve no poder. Não é incomum que o atual candidato do PT seja acusado de apoiar um "governo autoritário", adjetivo utilizado para classificar os governos de Chávez e também do presidente Nicolás Maduro.
Na última segunda-feira (22), em entrevista coletiva concedida à imprensa internacional em São Paulo, Lula já havia comentado os laços com o país vizinho. Na ocasião, o petista afirmou que o ex-deputado de direita venezuelano Juan Guaidó, "autoproclamado presidente" da Venezuela, é "um impostor" e defendeu a "alternância de poder".
O professor Igor Fuser afirma que, durante os governos petistas, "o Brasil sempre reconheceu a Venezuela como uma democracia e compartilhou com o país vizinho a liderança em todas as iniciativas de integração regional latino-americanas e sul-americanas, como a Unasul e a Celac".
"É provável que a política brasileira de apoio ao governo venezuelano, juntamente com o apoio de governos como o da Argentina, do Uruguai, do Equador, e em alguma medida do Chile, tenham retardado em cerca de dez anos o início da ofensiva frontal dos Estados Unidos contra a Venezuela, que ocorreu a partir de 2014, com as primeiras sanções e a declaração de [Barack] Obama da Venezuela como uma 'ameaça extraordinária aos interesses dos Estados Unidos'", diz.
Entretanto, Fuser destaca que "o apoio dos governos petistas ao chavismo nunca foi incondicional" e que Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff sempre insistiram "para que a Venezuela se mantivesse dentro dos marcos da democracia representativa".
"Um governo Lula vai, com toda certeza, normalizar as relações do Brasil com a Venezuela, mas ao mesmo tempo a diplomacia de Lula insistirá sobre a importância de que a Venezuela se mantenha nos trilhos da democracia representativa. A maior proximidade ou distanciamento entre Brasil e Venezuela dependerão essencialmente da questão democrática", conclui.
Edição: Arturo Hartmann e Thales Schmidt