Mais de 2 bilhões de pessoas em todo o planeta ainda não têm acesso à água: estima-se que cerca de 40% da população global vive em regiões com escassez de água, e 4,5 bilhões de pessoas não têm acesso a esgoto tratado, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).
Desde 1990, com a publicação da “Carta da Terra”, a ONU alertava que o controle da água seria motivo de guerras mundiais. Atualmente, a situação de emergência climática global acelera a corrida das transnacionais e potências econômicas pelo controle das fontes de recursos naturais, entre eles, a água.
Para falar sobre o assunto, o Caminhos para o Mundo entrevistou Mike Balkwill, ativista canadense que há 40 anos coordena distintas campanhas por justiça social, orçamento participativo e proteção ambiental. Desde 2016, Balkwill é diretor da Wellington Water Watchers, uma das maiores referências na luta pela proteção das fontes de água doce, fundada em 2007 para se opor às operações locais de engarrafamento de água da Nestlé na região da capital canadense, Ontário.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Em 2010, a ONU declarou o acesso à água como um direito humano fundamental. Após doze anos, esse direito está garantido?
Não se pode dizer que no Canadá há essa garantia, especialmente ao pensar nos povos indígenas no país. Em muitas comunidades por todo o Canadá, os indígenas não têm acesso a água limpa. Na verdade, há o que chamamos de “avisos para ferver a água”, pelos quais as comunidades pedem para que a água seja fervida antes de consumida. Isso é uma grande vergonha para o Canadá, país que tem um dos melhores sistemas públicos de saneamento e abastecimento de água do mundo. É uma vergonha que populações indígenas em tantas comunidades ainda tenham o acesso a água limpa negado.
A luta contra a mercantilização das fontes de água é uma das grandes frentes da organização da qual você faz parte, a Wellington Water Watchers. Quais são os principais agentes interessados e engajados em privatizar a água?
A [Wellington] Water Watchers foi fundada há alguns anos atrás em oposição à Nestlé, que possui duas instalações de engarrafamento de água e dois poços em nossa comunidade. O engarrafamento de água é sua privatização. É tomar um bem comum, tomá-lo quase que gratuitamente e embalá-lo, vendê-lo, enviá-lo para fora da comunidade, exportá-lo para longe de sua fonte. Portanto, o engarrafamento de água é uma forma de privatização. E foi assim que começamos o Water Watchers (Observatório das Águas). Até o momento, nós não temos sistemas privados de saneamento no Canadá. Começaram algo que foi chamado de Banco de Canadense de Infraestrutura. Eles estavam trabalhando numa proposta de parceria público-privada com uma pequena comunidade municipal próxima à cidade de Guelph, que é onde está sediada a Water Watchers, em Ontário.
Felizmente, antes da assinatura da proposta, a comunidade enxergou as dificuldades que seriam impostas a eles, o alto custo que enfrentariam devido às taxas de água e no último momento decidiram por não seguir com a privatização. Contudo, existe o tempo todo, e precisamos estar muito atentos a isso... Eu não chamaria o outro problema de privatização, necessariamente, mas em muitas comunidades nas quais damos apoio a movimentos de base a água vem de lençóis freáticos, e não de lagos. Portanto, há competição por essa água contra interesses privados. Há competição contra interesses de empresas manufatureiras, de pedreiras e poços. Em resumo, existe muita disputa por essa água. E não estão prestando a atenção necessária para garantir água suficiente para todos. Portanto, embora ainda não tenhamos privatização nessa dimensão, e devamos todos ser vigilantes sobre isso, o que temos é competição com o setor privado.
Você poderia nos falar um pouco mais sobre como esses atores agem para conquistar seus objetivos?
Talvez eu devesse falar mais sobre o que ocorreu no caso Nestlé, pois vejo essa tendência como perturbadora. Cerca de um ano atrás, a Nestlé vendeu todas as operações na América do Norte para uma empresa de capital privado chamada One Rock Capital. A Nestlé fez parceria com uma empresa de marketing chamada Metropoulos, cuja propriedade e administração é de Dean Metropoulos. Eles assumiram as operações da Nestlé e a renomearam como Blue Triton. Eu acho que este é um desdobramento muito sério e preocupante porque One Rock Capital não é uma empresa de engarrafamento de água. Eles não estão no negócio de engarrafamento de água. Isso não é o que eles são. Isto é a financeirização da água. Então nós esperamos que o padrão típico para uma empresa de capital privado como esta seja reduzir os custos, o que normalmente significa consolidar operações, diminuir gastos trabalhistas, seja cortando ou evitando custos com proteções ambientais, não investindo em proteção ambiental, construindo a marca e seu capital, vendendo-a e então seguindo em frente com outro negócio. Este é um desdobramento muito preocupante.
Estamos dizendo globalmente que mais situações como esta ocorrerão. Eu acho que nos Estados Unidos, onde a Nestlé e, agora, a Blue Triton têm muito mais operações e negócios muito maiores. Acho que há muita preocupação no Canadá onde há apenas duas instalações atualmente operadas pela Blue Triton. Penso ser uma tendência perturbadora que Wall Street se envolva em investimentos relacionados à água. Talvez as pessoas que estão assistindo estejam familiarizadas com o fato de que na Califórnia permite-se um “fundo para o futuro da água” no qual investidores podem injetar dinheiro no custo futuro do abastecimento de água. Isso é bastante preocupante.
Tem um outro caso que a sua organização está se organizando para enfrentar, certo? A Wellington Water Watchers está enfrentando a Votorantim, conglomerado brasileiro que tem explorado pedreiras e mineração no Canadá. Nesse caso em especial, contra quais impactos vocês estão lutando?
A Votorantim é parte de uma luta local em curso, mas também faz parte de uma luta provincial na qual estamos envolvidos. A empresa está propondo instalar uma pedreira em uma comunidade rural não muito distante de Toronto, chamada Cataract, ao lado do Credit River, que é um dos principais da região. O local que eles estão propondo para a construção seria de 800 acres de área com 100 pés de profundidade [30 metros] e abaixo do lençol freático. Para que entendam: quando uma pedreira se estende até abaixo de um lençol freático então ela se encherá, naturalmente, com água. Portanto, para poder continuar a explodir e a escavar, a água tem de ser continuamente bombeada para fora da pedreira. Essa água que será bombeada sem interrupção pelos próximos 50 ou 100 anos, será retirada do solo e despejada no rio. Primeiramente, perde-se toda a água. Estará extraindo-se a água do subsolo, e leva muito tempo para repô-la de volta ao aquífero. Em segundo lugar, a água que foi transferida para o rio terá mais e mais materiais. Então, ela aquecerá o rio.
O rio Credit, em particular, é um rio de águas frias, habitat de peixes de águas frias, caso do brook trout [tipo de truta]. Dessa forma, haveria um efeito significativo sobre a água com essa proposta de pedreira. Existem outros impactos causados por pedreiras, há a poeira decorrente das explosões, o barulho, caminhões, riscos para a segurança da comunidade, impactos muito significativos, efeitos, e há a destruição de terras agrícolas. Então temos aqui uma empresa multinacional muito poderosa. A Votorantim opera 64 pedreiras em Ontário, o que é muito. Ao se calcular a área de todas elas, o número de acres que lhes foram licenciados para minerar em cascalho é maior que oitenta mil, é de oitocentos mil e seiscentos acres. O modo como o sistema opera em Ontário é que o governo concede uma licença para quanto mineral, quanto cascalho eles podem extrair todos os anos. A Votorantim está autorizada a extrair mais de 38 milhões de toneladas de cascalho todos os anos. Ou seja, esta nova proposta é a ponta do iceberg dos erros da Votorantim em Ontário. Ela é parte de um problema muito maior envolvendo multinacionais como Holcim, a CBH, dentre outras que estão extraindo cascalho em Ontário. Uma das coisas que muito nos preocupa é que essas multinacionais estão vindo para as nossas comunidades, estão destruindo o meio ambiente, estão extraindo o cascalho, e também estão exportando os lucros para suas sedes no Brasil ou Europa. O impacto é local, mas as decisões que eles tomam são globais. E nós acreditamos que esses donos dessas empresas não têm qualquer sensibilidade para questões locais e não se importam com as comunidades locais.
Tenho questões para você e sua audiência mais adiante na conversa. Esses são diálogos muito poderosos, são muito influentes. As corporações muito poderosas são muito influentes. Por exemplo, nós temos agora um governo conservador em Ontário eleito há quatro anos e a primeira coisa que as empresas de extração de cascalho fizeram por meio da associação do setor foi realizar uma “cúpula secreta”. Realizaram esse encontro secreto com o governo. Apresentaram a lista de mudanças que queriam aprovar. E elas foram atendidas. O governo diminuiu as regulamentações, tornou mais fácil para essas empresas fazerem negócios. Portanto, a face desses negócios é bastante local, mas o impacto é enorme. Talvez devesse complementar o meu comentário dizendo: imagine que a face local da empresa em operação é como um tentáculo e parte de mim é como uma ventosa em um tentáculo de um polvo muito grande. Descobrir como lidar com esse polvo, que é uma empresa global, é o que estamos tentando por nossa conta.
Você mencionou os impactos dessas empresas em nível local, que acabam passando praticamente despercebidos pelos fazedores de política. Ao mesmo tempo, essas empresas geram empregos localmente, entre outros aspectos que podem ser percebidos como “desenvolvimento” para essas comunidades, muitas vezes isoladas de outras fontes de recursos financeiros. Nesse sentido, como vocês organizam as comunidades locais? Como lutar contra essa narrativa?
O argumento que essas empresas e o governo usam é o do crescimento econômico. As mudanças climáticas significam que não podemos mais fazer negócios como de costume. Não podemos ter crescimento infinito. O consumo constante é o que causou a crise climática e precisa haver redução de consumo de um jeito ou de outro para conseguir diminuir as emissões de gases do efeito estufa e o consumo da natureza, da biosfera e tudo que dela depende. É correto dizer que estamos lidando com isso o tempo todo. Parte do que queremos dizer, parte do que dizemos é que a crise climática é uma crise global que afeta o quintal de todo mundo. E os nossos quintais estão todos conectados. Há, de fato, uma maneira de lutar contra a mudança climática. Proteger a mãe Terra é proteger o seu próprio quintal. E ao proteger o seu quintal você está se solidarizando com os outros.
Por exemplo, nós temos essa história que contei, sobre a Votorantim e uma pequena e específica comunidade. O Water Watchers organizou uma coalizão provincial de comunidades em todo o Ontário que estavam se opondo à exploração de cascalho para trabalharem juntas para pedir por uma moratória sobre novos empreendimentos de mineração de cascalho em Ontário. Então ocorreu que o nosso governo já havia concedido permissão para a extração de trinta vezes mais cascalho por ano do que a quantidade que a indústria consome. Ou seja, nós não precisamos de mais poços de pedreiras, nós precisamos proteger terras agrícolas, lençóis freáticos.
Estou feliz de estar nesta conversa, pois outra coisa [para a qual] precisamos [estar atentos] é que nossos quintais e os quintais do sul global estão conectados. Precisamos agir solidariamente uns com os outros. Me interessa entender como nos conectar solidariamente com pessoas em comunidades que, por exemplo, estão experienciando os efeitos negativos do trabalho da Votorantim no Brasil, na América do Sul e no Sul Global. Portanto, nossa estratégia é, ao mesmo tempo, bastante local, é provincial, mantendo-se em nossa própria jurisdição mas também em solidariedade com populações no Sul global.
Ao mesmo tempo em que a Votorantim está explorando os recursos naturais do Canadá, o Canadá é um relevante explorador de recursos minerais no Brasil e vem ampliando este papel desde 2017, quando 30 empresas já exploravam minérios em território brasileiro, causando muitos desastres ambientais. Que tipo de cooperação pode ser feita entre os movimentos populares dos dois países para enfrentar a situação?
Se não me engano, a maioria das empresas de mineração estão localizadas no Canadá. É lá que suas sedes estão. O Water Watchers tem apoiadores entre movimentos de base. Temos um quadro pequeno de funcionários, porém temos seis mil que são nossos apoiadores. Eles são membros e estão profundamente conscientes e interessados no que está acontecendo no mundo. E se houver um apelo à ação que possamos tomar e apoiar as comunidades do Sul Global, estaremos interessados nisso.
Nós participamos – retornando à questão do engarrafamento de água – convocamos uma reunião no Canadá antes da pandemia reunindo pessoas de comunidades dos Estados Unidos, Europa, França, Suíça e Brasil para falar sobre o engarrafamento de água. Havia uma empresa dessas no México, a Danone, que foi ocupada por seis meses pelos povos indígenas de Puebla. Nós transmitimos reuniões online e participamos desses encontros com pessoas em Puebla. Trabalhamos de perto com a Six Nations [of the Grand River], que é a maior comunidade em reserva no Canadá. Somos um tanto crus em experiências, mas há tempo para isso e gostaríamos de ter a oportunidade de aprender mais sobre o Brasil e apoiar as comunidades do país da maneira que pudermos, comunidades que estão lidando com as consequências da mineração.
O Fórum Mundial da Água é considerado o maior evento global com foco em soluções para problemas relacionados à água, reunindo empresas e governos a cada três anos. Como contraponto, foi criado o Fórum Alternativo Mundial da Água. Por que a necessidade de um evento alternativo?
O Fórum Mundial da Água tem uma agenda global de privatização. A Nestlé, Coca-Cola, outras grandes empresas, etc., integram o fórum. E elas possuem uma agenda global de privatização. É preciso ter um contraponto a isso, e esse é o papel que o Fórum Mundial Alternativo da Água desempenha. Eu nunca participei dele, talvez eu consiga um dia. O quão triste e com raiva podemos ficar com o fato de estarmos enfrentando uma crise global, seca e outras dificuldades enquanto que os ricos do mundo se movimentam para controlar os mercados de água do planeta para lucrarem ainda mais com as necessidades e a miséria do povo. Isso é de partir o coração e precisa ser confrontado.
Mesmo vivendo num país considerado desenvolvido, as populações indígenas do Canadá enfrentam graves e persistentes problemas de água e saneamento. Por que isso acontece?
No nível mais alto, é porque não estamos cumprindo com nossas obrigações e porque não passamos por um processo real de reconciliação que precisa acontecer. Em um outro nível, há diferenças jurídicas entre os governos provinciais e federal, o que eles usam como desculpa para não fornecer o dinheiro necessário. A solução é devolver as terras. Elas devem ser devolvidas aos povos nativos. Por milênios, eles têm sido os mantenedores do mundo natural. Eu estou me repetindo, mas eles sabem como manter e viver conservando a natureza, eles são a natureza. O Ocidente e os países coloniais não sabem sobre isso. Usamos uma linguagem decolonial. Parte disso significa mudar como os governos lidam com a água. A água não pode e não deveria ser administrada apenas por governos coloniais. Isso precisa ser feito de um jeito novo em consonância com os povos indígenas e utilizando o conhecimento desses povos. Essas são mudanças fundamentais que precisam acontecer em nossa sociedade. A falta de acesso a água limpa e pública é apenas um dos problemas que ilustra essa relação injusta.
Como alternativa à privatização, existe a perspectiva da participação e o controle social na gestão das águas. Como funciona esse modelo e o que é preciso para que ele seja implantado?
Eu vou voltar ao que disse momentos atrás. Precisamos de modelo de governança totalmente novo para a água que inclua participação pública e a participação igualitária de povos nativos e não por algum mecanismo colonial. Há uma variedade de diferentes ideias, fala-se sobre gestão de bacias hidrográficas, por exemplo. Eu estava conversando com uma pessoa da Costa Rica recentemente sobre um plano de gestão participativa para aquíferos e definitivamente pode haver muito mais participação de membros da chamada sociedade civil na governança da água. Isso pode ser democratizado de muitas maneiras. E para além disso, precisa haver uma abordagem diferente para governança, uma que seja inclusiva em relação aos povos indígenas. Talvez eu possa dizer também, como último comentário para amarrar tudo, que estamos procurando por apoio e eu tenho dúvidas que talvez alguém possa responder. Talvez seus ouvintes ou organizações.
Por exemplo, temos interesse sobre a experiência com a Votorantim e fixação de preços [do cascalho] por parte do cartel no Brasil. As multinacionais têm uma enorme influência em Ontário. Como sabemos que o preço que a população paga pelo cascalho é justo uma vez que o setor possui tanto controle? Tenho muito interesse sobre como foi implementado o preço fixo como ele foi imposto. Estavam os movimentos sociais envolvidos nisso? Ou a ideia veio somente de legisladores governamentais? Também me interesso em saber mais sobre as lições brasileiras acerca da proteção das águas. Já aprendemos muito com Franklin Frederic sobre o trabalho bem-sucedido contra a Nestlé e pegamos isso como lição. Estamos ansiosos por conselhos e ajuda e temos interesse em trabalhar em solidariedade de maneira a beneficiar movimentos de base brasileiros.
Fim de temporada
O Caminhos para o Mundo terminou sua primeira temporada e entra em pausa. Para ver essa edição e as dez anteriores, acesse os canais do Brasil de Fato e da TVT no YouTube.
Edição: Raquel Setz