Como disse um militante da causa socialista no Brasil, vivemos num tempo em que, sem paradoxo, a classe dominante exibe uma afiadíssima consciência de classe enquanto o proletariado mal sabe o que é isso. Este nem ao menos percebe que seus interesses são diametralmente opostos aos da classe dominante e, por isso, adere a projetos políticos que só contemplam a continuidade da dominação. Estamos, já em homenagem ao livro objeto desta resenha, propositalmente assumindo a máscara de ignorante do papel desempenhado por partidos tidos como de esquerda entre nós para contribuir com tal descalabro.
Como parte da classe trabalhadora, atores sofrem da mesma síndrome e a expõem de maneira muito evidente (nos palcos, nas telas e nas plataformas digitais), uma vez que se transformaram em instrumentos de precisão para o cultivo e a disseminação dos valores ideológicos da dominação: individualismo exacerbado, empreendedorismo, competitividade alucinada e uma infinidade de etcéteras.
Um livro como Sobre a profissão do ator não tem nada a dizer à chamada "classe" teatral integrada na coreografia geral das nossas artes cênicas na disputa em graus variados por celebridade nas mídias antigas (como os palcos) e recentes (como as plataformas digitais). Em compensação, os que já ouviram falar em Brecht e teatro épico, e se interessam pela briga de martelo e foice no escuro que eles pressupõem, podem começar a festejar esta publicação pois, para variar, o Mestre aqui objetivamente suprassume tudo o que já foi produzido, desde o século XVIII, sobre a arte de representar gente em cena. E pela razão que ele mesmo enuncia: adota o ponto de vista mais exigente possível, que é o dos trabalhadores na luta de classes. Isto significa suprassumir as técnicas dramáticas da representação de relações interpessoais através das épicas da representação das determinações de classe das relações interpessoais.
O livro foi organizado por Werner Hecht e publicado na Alemanha em 1970. Publica-se no Brasil agora, passado meio século, graças ao empenho da Editora 34 e dos tradutores (militantes da causa) Laura Brauer e Pedro Mantovani, que ainda produziram uma introdução muito didática, e por isso mesmo bem vinda, além de notas extremamente esclarecedoras. É bom avisar desde já que a própria organização do livro é brechtiana: Hecht tratou de dar títulos a vários textos de modo a neles evidenciar que Brecht pressupõe o conhecimento do trabalho de Stanislavski.
Não se pode atribuir exclusivamente à ditadura que nos martirizou nos 21 anos transcorridos entre 1964 e 1985 a responsabilidade pela ausência entre nós do Brecht preocupado com o trabalho do ator épico. Há outros responsáveis pela tese maledicente de que ele não se interessava por esta parte essencial à plena realização do espetáculo e pelo silêncio em torno deste livro, mas não mergulharemos neste pântano.
Uma das razões para a persistência da referida tese é apresentada por Laura e Pedro na Introdução, nota 4: o desafio que enfrentou o dramaturgo e diretor dialético nestes textos foi o de elevar ao plano do conceito os resultados da experimentação cênica (sobre este item, vejam-se neste volume os elogios aos trabalhos de atrizes como Helene Weigel e Therese Giehse, bem como de atores como Ernst Busch, entre outros). Brecht tratava de enfrentar as dificuldades dos atores (e do público) para compreender o teatro épico em seu contexto histórico que, nunca é demais lembrar, é o da luta revolucionária dos trabalhadores: eis o ponto que nos interessa.
Como insiste Brecht, a profissão de ator está submetida, como todas as demais, às relações capitalistas de produção: o ator é assalariado e o valor do seu trabalho é definido no mercado pela luta de classes. Teatro, cinema, televisão e demais praças de exposição do trabalho do ator podem e devem ser pensadas em conjunto, pois estamos falando de indústria cultural, como queria Adorno e como se designa o setor nos Estados Unidos. Brecht acrescenta que este é um ramo do tráfico de entorpecentes (como as igrejas, acrescentemos). Quanto aos atores (uma especialidade entre inúmeras outras), seu treinamento deve torná-los aptos a produzir os sonhos que, segundo os publicitários (críticos incluídos), "o público deseja consumir". Até Hegel, na Filosofia do direito, já observava que primeiro se produzem as commodities e depois se buscam os consumidores. Parte importante da técnica do ator desta indústria tem por meta apassivar o público, isto é, extinguir nele a relação ativa, inteligente e igualmente artística com o espetáculo, de modo a produzir a seguinte correlação: quanto maior a arte do ator, menor a do espectador.
Mas desde o século XIX há um teatro sintonizado com a luta dos trabalhadores que se empenha em expor e criticar a convivência social. Na prática e na teoria, o teatro épico é uma síntese dessas experiências. Este livro de Brecht é destinado aos candidatos a atores neste teatro (que não se restringe ao épico, nunca é demais lembrar). Aqui eles são convidados, antes de mais nada, a estudar muito. Só assim aprenderão a entender a diferença entre seu ponto de vista, o do dramaturgo, o da obra e os dos personagens, que desde século XX são designados como figuras porque não correspondem mais ao conceito burguês de personagem. Entenderão que é essencial o estudo da peça como um todo, que esta e cada uma das cenas têm uma estrutura pensada e que o ator precisa se apropriar do pensamento que as estruturou; aprenderão a identificar (isso mesmo!) as contradições e a hierarquizá-las. Sobretudo: aprenderão que em cena atores sempre respondem por dois “eus”: o seu próprio e o da figura a representar. É isto que os habilita, por exemplo, a criticar suas figuras com simples gestos. Aqui também se aprende a historicizar, ou identificar relações de tempo, espaço e relações sociais sem nunca perder de vista que os conteúdos das peças estão em permanente mutação.
Mais algumas coisas que se aprendem: a surpreender-se, ou distinguir o habitual do inusitado, ou o contrário, tornar o habitual esquisito, estranho. Ficar ao mesmo tempo atento e distraído e chamar sempre a atenção do espectador, não para a sua pessoa e sua técnica inexcedível, mas sim para o assunto de que trata a peça. Este é um dos feitos de Helene Weigel. Ou então, o feito de Therese Giehse: elaborar uma concepção de sua figura que dizia respeito à encenação como um todo. Estamos, é claro, falando em diferentes maneiras de produzir os famosos efeitos de estranhamento. É preciso acrescentar que eles estabelecem a relação mais livre possível com o espectador, pois a cena é produzida para produzir conhecimento. Ainda mais importante: estamos no espaço da diversão (é teatro!) e quem não ensina divertindo e não diverte ensinando não tem nada a fazer no teatro: o teatro deve ser um lugar agradável. Atores e atrizes são aqui desafiados a atuar de tal forma que o público se empenhe em voltar e ver o espetáculo novamente para apreender tudo.
Como o ator que só se interessa por si mesmo não passa de um burguês, o ator brechtiano rejeita enfaticamente esta atitude, assim como rejeita a definição burguesa de espectador – uma figura passiva, deficiente mental, disposta a ser hipnotizada por meia dúzia de truques ilusionistas baratos. O ator do teatro épico sabe que o público é dotado de inteligência, informado e capaz de se comportar diante dele como um historiador, interessado em processos históricos, nos modos como a sociedade muda.
Para Brecht e para este espectador, só o que tem importância histórica deveria ser mostrado. E história é a história da luta de classes. Tudo isto e muito mais está neste livro em boa hora editado no Brasil.
Edição: Thalita Pires