Coluna

Entra em cena o mercado da preservação ambiental: a privatização dos parques no Brasil

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Parque Estadual do Turvo, no Noroeste do RS, que abriga cachoeiras do Salto do Yucumã, Mata Atlântica e espécies ameaçados de extinção, está para ser concedido para a iniciativa privada - Anderson Cristiano Hendgen
A privatização só têm promovido o aprofundamento do distanciamento entre a humanidade e a natureza

Há alguns anos, no Brasil, tem-se a intenção de transferir a proteção e gestão de unidades de conservação para a iniciativa privada. No final de 2020, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou uma linha de financiamento de crédito específico para isso. Em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro editou decreto autorizando a concessão de cinco parques nacionais, que vão a leilão ainda em 2022. Estes foram incluídos na lista de Bolsonaro e Guedes do Programa Nacional de Desestatização e no Programa de Parcerias de Investimento Público-Privada da Presidência da República. 

No Brasil, existem 334 regiões de preservação sob responsabilidade do governo federal; um terço delas estão na Amazônia. Além dessas, ainda temos os parques estaduais e municipais. Essas áreas são de rica biodiversidade e recursos hídricos e, em geral, são habitadas por povos e comunidades tradicionais que, com seus modos de vida integrados à natureza, contribuem para a conservação.  

Desde 2019, há um desmonte da política ambiental, do qual podemos destacar o corte orçamentário do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Ao lado da destruição, o governo vem propondo a criação do mercado da gestão dos parques, por meio da concessão à iniciativa privada. Desde a direção de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente se anuncia a abertura da concessão dos parques. Em fevereiro de 2021, o governo lançou o Programa Adote um Parque, com a proposta de transferir para a iniciativa privada a proteção das unidades de conservação.  

Na lista, figuram 132 unidades de conservação, para as quais se apresentaram grandes corporações como Carrefour, Coca Cola, Heineken e MRV Engenharia. O grupo URBIA, por exemplo, já detém a concessão de 10 parques no país (6 municipais, 2 estaduais e 2 federais), dentre eles, ainda em processo, o Parque Nacional do Iguaçu (PR). Não podemos esquecer que essas áreas são de rica biodiversidade e disponibilidade de águas. Por isso são importantes para a preservação, bens comuns do povo brasileiro que estarão sob territórios controlados pelo capital privado, com as concessões. 

Segundo Pedro Martins, da organização de direitos humanos Terra de Direitos e do grupo Carta de Belém, que acompanha o tema, “o programa de estruturação de concessões de parques via BNDES foi justificado no argumento de que o potencial de lucro com turismo ecológico é grande, tendo como exemplo o que ocorre com os parques naturais nos Estados Unidos. Esse modelo é danoso para o Brasil, pois reforça a ideia de natureza como santuário intocável, ideia essa que subsidia processos de expulsão de famílias que mantêm práticas sustentáveis nos locais e transforma a sociobiodiversidade em mercadoria sob controle de uma empresa concessionária”.  

Quanto a isso cabe recordar que, conforme a Constituição Federal, toda a política ambiental é permeada por um amplo processo participativo, o que não vem ocorrendo com a concessão dos parques. Não há um amplo processo de consulta às comunidades, nem aos funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) e do ICMBio. As audiências públicas realizadas não dimensionam adequadamente os impactos. Ao invés de o governo investir em estruturar órgãos fiscalizatórios como os citados, os desestrutura e transfere suas obrigações à iniciativa privada. 

Tanto o Programa Adote um Parque como a concessão via Programa de Desestatização reforçam o paradigma da mercantilização e financeirização da Natureza. A crença política de que a iniciativa privada tem melhores condições de gerir a coisa pública parece desconsiderar os efeitos da prestação de serviços públicos hoje privatizados, como distribuição de energia, telefonia e aeroportos. Sem contar que favorece a retirada de poder decisório do povo brasileiro sobre os bens comuns, intensificando a concentração de poder corporativo e a dependência dessas companhias para a reprodução da vida. 

A concessão do Parque Estadual do Turvo (RS) 

Criada em 1947, pelo Decreto Estadual nº 2.312, a Reserva Florestal Estadual do Turvo, no Noroeste do Rio Grande do Sul, foi posteriormente convertida em Parque Estadual pela Lei nº. 2440/1954. O parque é composto por 17.491 ha de mata atlântica com florestas estacionais. Sua extensa área abriga dezenas de espécies ameaçadas de extinção, tanto vegetais como animais, muitas delas são exclusivas deste parque. É nele onde também fica o Salto do Yucumã, quedas d'água com até 12 metros de altura seguindo o curso do Rio Uruguai na divisa entre o Brasil e a Argentina. O salto é uma das maiores quedas longitudinais do mundo.   

A concessão do parque foi anunciada pelo Estado do RS e encontra-se bastante avançada, com previsão de nas próximas semanas já estarem abertas as inscrições para as propostas do leilão. Segundo os pesquisadores e professores do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá), a proposta de concessão foi elaborada pela Secretaria de Planejamento e Gestão, não tendo parecer técnico da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Para a entidade, a falta de embasamentos técnicos, como a ausência de parecer elaborado, estudos superficiais e a falta de um corpo técnico profissional levanta dúvidas sobre a avaliação de riscos do projeto.  


Lucia Ortiz e Letícia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil, e Soniamara Maranhão, do MAB, na campanha contra a privatização do Parque Estadual do Turvo (RS) / Divulgação/ATBr

De acordo com os pesquisadores, não há respostas à presença de sítios arqueológicos na região, nem tampouco estão claros como o incremento econômico do turismo poderá contribuir para a conservação da biodiversidade, à educação ambiental e a pesquisas. Algumas das atividades permitidas na concessão parecem ser incompatíveis com a proteção integral. Restando dúvidas ainda sobre o monitoramento e controle dos impactos, como serão geridos pelos técnicos da Secretaria de Meio Ambiente do Estado.  

Um aspecto central da concessão envolve os interesses na exploração da água e da biodiversidade presente no parque. Seja para avançar em projetos hidrelétricos, como Garabi e Panambi, paralisados pela ação coordenada de atingidos e ambientalistas perante o Poder Judiciário, seja para os intentos de compensação de créditos de carbono que grandes corporações têm demandado. Não à toa a concessão interessa para o capital internacional, como bem destaca Fernando Campos, da Amigos da Terra Brasil, em entrevista concedida ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB/RS). 

Outro problema é o aumento dos conflitos com os povos e comunidades tradicionais que habitam o entorno do parque, como as populações ribeirinhas, que muito embora não estejam dentro da área dele podem ser afetadas pela alteração de gestão, sofrendo com impactos no curso das águas. Uma das organizações que têm organizado as famílias, desde a resistência a Garabi e Panambi, é o MAB, que conjuntamente com outras entidades tem construído uma campanha contra a privatização do parque, cujo mote é: o parque não é mercadoria, o parque é bem comum de todos e todas! Muito embora não estejam dentro da área do mesmo, podem vir a ser afetados pelas alterações na gestão do território. Além disso, coloca-se a relação com os povos indígenas, presentes no território argentino que se situa do outro lado do parque.  

A contradição fundamental capital x vida 

Desde 2021, entidades da sociedade civil têm articulado a denúncia aos intentos de privatização como o Programa Adote um Parque, lançado pelo governo. Para elas, a privatização representa a transferência da responsabilidade pública para empresas privadas, que podem ser tanto nacionais como estrangeiras, e assim promovem a governança privada de territórios estratégicos para o futuro do país e que, portanto, são de interesse coletivo e social.  

A privatização e suas novas roupagens só têm promovido o aprofundamento do distanciamento entre a humanidade e a natureza. Nos distanciamos porque seguimos tratando a Natureza como um recurso inesgotável, e não como um bem comum. Ainda que o ideal da concessão do parque seja a conservação, sabemos que há muitas vertentes de sentidos para se interpretar a mesma. Na construção de saídas sistêmicas à crise ecológica e social que vivemos, certamente investir em projetos que aprofundam a mercantilização e financeirização é seguir nos afastando da centralidade da vida.  

Os parques são nossos! Não à privatização! 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires