CONSTITUINTE

Chile vota nova Constituição que pode encerrar herança de ditadura Pinochet

Campanha termina nesta quinta (1º), pesquisas apontam vitória do "não" no referendo, mas ainda há 16% de indecisos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Chilenos decidirão se aprovam, ou rejeitam, nova Carta Magna - Martin Bernetti / AFP

No próximo domingo (4), cerca de 15 milhões de chilenos e chilenas estão convocados a participar do plebiscito constitucional que irá definir se o país terá ou não uma nova constituição. Após um ano de escrita da nova carta magna e dois meses de consulta popular, o texto final passará pelo escrutínio público. A pergunta nas cédulas de votação é: "Você aprova o texto da Nova Constituição proposta pela Convenção Constitucional?". As opções de resposta são "aprovo" ou "rechaço".

Nesta quinta-feira (1º), encerra o período de campanha e a partir de sexta-feira (2) atos ou manifestações públicas também estão proibidos. Pelo lado do "aprovo" foram realizadas manifestações massivas no último fim de semana e convocaram as últimas panfletagens porta a porta para atingir a meta de visitar 2 milhões de casas durante a campanha. O encerramento de campanha será realizado com um festival de música no centro da capital.   

"Constatamos que o que mais falta é informação, conhecer o texto, conhecer o alcance das normas, porque ao ler o texto as pessoas aderem à proposta, por isso estamos centrando nossa campanha na panfletagem porta a porta e em conversar com as pessoas", comenta a ex-constituinte Elisa Giustinianovich Campos.

Já os setores que defendem o "não" estão focados na campanha nas redes sociais, inclusive atacando diretamente ex-constituintes, tirando de contexto suas declarações para fortalecer a ideia de que os deputados eleitos não estavam aptos para escrever uma nova carta magna para o país. O encerramento da campanha acontece no anfiteatro do Parque Metropolitano, também em Santiago. 

Campos denuncia que empresários estão financiando campanhas de desinformação sobre a nova carta magna. "Sabemos que milhões de dólares foram investidos nessa campanha, que está sendo difundido por todos os meios possíveis. Seria ingênuo pensar que não estão usando todas as ferramentas que foram aplicadas nos últimos anos para campanhas eleitorais, como o que foi observado durante a campanha de Trump e de Bolsonaro", afirma.

Há ainda um setor da esquerda que convoca o voto nulo, afirmando que o texto constitucional apresentado não representa os anseios dos setores que se mobilizaram em outubro de 2019, alterando pouco o caráter neoliberal do Estado chileno.

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Elisa Loncón, primeira presidenta da Convenção Constitucional, e a segunda presidenta da constituinte, María Elisa Quinteros seguram versão final da nova carta magna do Chile / Convenção Constitucional

Mesmo fazendo parte do processo, a ex-constituinte diz ter críticas à falta de participação popular e de fundos para realizar uma campanha nacional de educação cívica sobre o que representa aprovar uma nova constituição.

"Foi eleita uma convenção constitucional destinada apenas a escrever um novo texto constitucional, mas não incorporava outro tipo de participação, fizemos grandes esforços para incorporar novos mecanismos num prazo muito apertado. Hoje vemos as consequências disto. Um grande nível de desinformação, de desapego do processo, muitas pessoas que ainda não sabem o que é a constituição, não sabem o que se votará no dia 4 de setembro", analisa Campos.

Os temas mais polêmicos são segurança pública, com a proposta de reforma da polícia militar chilena, os chamados carabineros; assim como a mudança para um Estado plurinacional, que estabelece um sistema jurídico especial para os povos indígenas, algo que os setores de direita acusam de "privilégios".

Consulta única

Desde 2012, está é a primeira eleição em que o voto é obrigatório para todos chilenos(as) maiores de 18 anos com domicílio eleitoral dentro do país e facultativo para quem reside no exterior. No chamado "plebiscito de entrada", que votou para iniciar o processo constituinte, a participação era facultativa para todos e teve um recorde de 7,5 milhões de votos, quase 50% do eleitorado, cifra que só foi superada pelo segundo turno presidencial, que teve um recorde com 8,3 milhões de sufrágios, portanto a expectativa sobre a participação no referendo é alta. 

As últimas pesquisas de opinião mostram uma vantagem de cerca de dez pontos percentuais para a opção "rechaço", enquanto 47% disse que não irá referendar o novo texto constitucional, 37% seria favorável à proposta escrita pelos 155 constituintes chilenos. No entanto, ainda há 16% de indecisos e 42% respondeu que acredita na vitória do "aprovo". Os levantamentos são do início do mês de agosto, porque, segundo a legislação chilena, podem ser divulgadas pesquisas apenas até duas semanas antes da consulta.

"As pesquisas não são muito confiáveis, porque na campanha presidencial davam vitória a José Antonio Kast e erraram muito. Mas é difícil dizer, porque como há muita polarização e violência, as pessoas não querem se manifestar", comenta a jornalista chilena Magally Ávila.

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A ex-presidenta do Chile e atual comissária de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, foi uma das autoridades que se manifestou a favor da nova constituição. "Eu votarei no dia 4 de setembro, aqui em Genebra, e vou aprovar a nova constituição, porque acredito que representa um avanço para o meu país", declarou

Um grupo de 212 acadêmicos da Pontífice Universidade Católica publicou uma carta em defesa do aprovo. "Convencidos de que a democracia floresce, queremos ser parte da oportunidade que este 4 de setembro soberanamente nos dá. Votamos pelo aprovo", expressam na missiva.

Em entrevista à revista Time,  o presidente Gabriel Boric diz que irá governar independente do resultado e levará adiante as propostas de reforma tributária, do sistema de saúde e da educação, mesmo que tome mais tempo. "Chegaremos lá", disse. 

Boric novamente reiterou que mesmo ganhando o "rechaço" há uma mandato vigente do primeiro plebiscito, que estabelece a prioridade de escrita de uma nova constituição por outro organismo que não seja o Congresso.

"O consenso sobre a necessidade de uma nova constituição e sobre a atualização das bases de convivência seguem vigentes. Estou convencido de que vamos chegar a um bom termo, independente do resultado do dia 4 de setembro", afirmou o chefe de Estado. 


Chilenos e chilenas que apoiam a nova constituição se manifestaram no último domingo (28) na região central da capital, Santiago / Martin Bernetti / AFP

O que acontece se vencer o "sim"

Caso o texto constitucional com 388 artigos e dez eixos for aprovado, o presidente tem até cinco dias para convocar uma sessão extraordinária do Congresso para "num ato público e solene se promulgue e se jure acatar a nova constituição", determina a legislação atual. Depois haverá um prazo de dez dias para que o novo texto seja publicado no Diário Oficial da União e entre em vigor. 

A nova carta magna deverá ser impressa e distribuída gratuitamente nas instituições públicas vinculadas aos três poderes, bibliotecas, escolas, universidades e empresas estatais. 

A carta magna vigente foi promulgada em 1980 durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).


Apesar de concentrar sua campanha nas redes sociais, o grupo que defende o "rechaço" no plebiscito constitucional também realizou atos em Santiago de Chile no último sábado (27) / Martin Bernetti / AFP

E se ganha o "rechaço"?

Os partidos da coalizão "Aprovo Dignidade", da qual faz parte o atual presidente Gabriel Boric, assinaram um acordo para levar adiante reformas contidas na nova proposta constitucional.

O governo chileno propõe a eleição de uma nova Convenção Constitucional para elaborar outra proposta de texto. "Queremos propor um novo processo constituinte para que se respeite a decisão popular do dia 25 de outubro, que foram duas coisas: ter uma nova Constituição e que ela seja escrita por pessoas exclusivamente eleitas para esse fim", explicou a porta-voz do gabinete de ministros, Camila Vallejo.

Já os partidos de direita, alinhados na plataforma Chile Vamos, minoritária na composição da constituinte, agora lideram a campanha pelo "rechaço", defendem a redação de uma nova proposta constitucional, mas propõem um novo plebiscito para definir como será o mecanismo de elaboração de uma nova carta magna. Sugerem um processo mais curto que poderia ser levado adiante com uma comissão de especialistas ou por um comitê parlamentar.

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"O que a campanha do rechaço busca evitar é que se suspenda um nicho de negócios com nossos direitos sociais - algo que foi inaugurado durante a ditadura com esta constituição vigente desde 1980. Com a nova proposta constitucional, estamos mudando o caráter subsidiário do Estado para um caráter social, que permita atender a partir do Estado os serviços essenciais, fortalecendo o setor público. E isso gera uma progressiva diminuição deste nicho de negócio, uma vez que o setor público irá 'competir' com o setor privado", critica Elisa Giustinianovich Campos.

Relembre a história do processo constituinte 

O processo constitucional chileno começou em 2019, com o "Acordo pela Paz e a nova Constituição", assinado em novembro, entre um conjunto de partidos e o governo do então presidente Sebastián Piñera, dando fim às maiores manifestações da história recente do país. O atual presidente, Gabriel Boric, na época deputado pela coalizão "Aprovo Dignidade", foi um dos 11 representantes que assinaram o documento

O pacto previa a realização do plebiscito constitucional em outubro de 2020 para consultar a população se queriam ou não uma nova carta magna - uma das reivindicações da revolta popular de outubro de 2019. 

O chamado "plebiscito de entrada" foi realizado no dia 25 de outubro de 2020 e deu início ao processo constituinte com cerca de 5,8 milhões de votos - 78% dizendo "sim" à redação de um novo texto constitucional através da eleição de uma Convenção Constitucional com paridade de gênero. 

A convenção iniciou seus trabalhos no dia 4 de julho de 2021, presidida por Elisa Loncón, professora universitária liderança Mapuche. O Executivo ainda era chefiado por Sebastián Piñera.

Seis meses mais tarde, María Elisa Quinteros Cáceres assumiu como a segunda presidenta da constituinte.

Edição: Thales Schmidt