Como diria David Harvey, para mudar a sociedade, precisamos mudar a nós mesmos
Por Márcio Moraes Valença*
Teremos de usar de todas as formas de criatividade, abrir a mente, rever conceitos e posições que defendemos no passado, mesmo no recente. Deveremos renunciar – mesmo que apenas em parte – ao árduo trabalho realizado e reestruturar os nossos pensamentos: ser propositivos sem, como antes, ser dogmáticos. São muitos os desafios do/no presente e não poderemos enfrentá-los com instrumentos pensados décadas atrás, que insistimos em proferir em nome de alguma ideologia idealizada, nem sempre real. A experiência recente provou a sua fragilidade e a sua pouca efetividade. Passemos, então, a pensar novas estratégias e novos instrumentos. Porque o que tentamos no passado pouco resultou além de empoderar os seus proponentes e inculcar nos mais jovens um receituário pronto. Esse caiu como uma luva, fórmula perfeita repetida à exaustão: tornou-se dado, inquestionável. Teremos, sim, de ser criativos, idealizando e transformando as nossas práticas, introduzindo mudanças na proposição de paradigmas que embasam as políticas públicas. Somos acadêmicos, muitos de nós; teremos de dar o exemplo de que é possível mudar; teremos, por isso, de ser os primeiros. Como diria David Harvey, para mudar a sociedade, precisamos mudar a nós mesmos.
Abordemos, assim, alguns temas relevantes para o desenvolvimento urbano, em particular das cidades brasileiras. Começa que cidades brasileiras é um termo genérico que se refere a um universo tão amplo e diverso que nada, ou quase nada, significa além de situar a discussão dentro do território nacional, desconsiderando as disparidades regionais e as naturezas diferenciadas das cidades. O termo também expressa preocupações do centro, tanto econômico, quanto cultural e político do país. Quando se fala em cidades brasileiras, o pensamento está nos problemas e características das grandes cidades hegemônicas do Sudeste; ou na nossa própria cidade, onde residimos, mas vista sob a égide do pensamento sobre as cidades hegemônicas. São repetidas as mesmas discussões como se os problemas se apresentassem em igual medida em todas as cidades de todas as regiões, muitas vezes, nem sequer considerando as suas diferentes escalas. A crítica à utilização de literatura estrangeira para a análise de problemas nacionais – lógico, sem o devido cuidado com a sua translação e adaptação – é válida também para aqueles que utilizam de literatura forasteira sem o devido cuidado com a sua adaptação ao contexto local. O problema é outro, mas nem tanto!
Mas eu me referi a coisas do passado que precisamos rever sem dizer exatamente o quê. Há muito o que dizer, mas um curto artigo de opinião não comporta. Vejamos apenas alguns problemas que são, a meu ver, cruciais para que possamos pensar em novas possibilidades para o futuro. Nenhuma crítica é feita sem polêmica, mas o maior desafio é fazer uma autocrítica sobre coisas que já foram propostas, e até implementadas, e que concordamos que, anos depois, não funcionaram do jeito desejado. Continuamos insistindo, culpando os outros, as forças políticas reacionárias, os políticos ignorantes e corruptos, a ação e a não ação dos governos que entram e que saem. E, no entanto, tudo fica do mesmo jeito. A culpa é sempre dos outros e tudo o que falta é implementar as geniais e engenhosas formulações que propusemos ou que foram por nós aceitas. Está na hora de reconhecer que, não obstante suas boas intenções, muito do que foi proposto nas últimas décadas é de difícil, senão impossível implementação; muito não é tão progressista como imaginávamos; que está sujeito a todo tipo de intromissão clientelista, disputas de poder, cooptação e tudo o mais que o jogo da política pode introduzir para fazer valer interesses escusos.
A questão da participação
Iniciemos pelos modelos propostos de realização de políticas públicas participativas. Por que tudo para os mais pobres tem de ser tão difícil? Todos nós pensamos que, numa cidade, em qualquer cidade, devem existir certas infraestruturas, como ruas pavimentadas, calçadas de qualidade, energia, iluminação, arborização, saneamento com todos os seus componentes (água, coleta e tratamento de esgoto, coleta de águas pluviais, coleta e tratamento do lixo, varredura de ruas etc.), serviços de telefonia e internet, transportes públicos confortáveis e seguros. Todos concordamos que cada unidade habitacional deva ter certas qualidades de conforto, durabilidade, segurança, proximidade e acessibilidade a alguma forma de centralidade, e que, na vizinhança, deva haver espaços verdes, praças, canteiros bem cuidados, centros de desportos, escolas, unidades de saúde, e por aí vai. Por que precisamos perguntar se as pessoas desejam uma ou outra dessas qualidades? Isso sozinho já justifica ou desobriga o Estado a prover por infraestruturas e serviços que, inclusive constitucionalmente, no Brasil, devem estar presentes na vida de todos. Tal processo cria uma nuvem de fumaça. Fazemos as perguntas erradas e, ainda, complicamos mais com um sistema de participação (incluindo os orçamentos participativos e os planos diretores – que deveriam ser menos normativos e mais propositivos) que não atende às consideráveis demandas e necessidades da população. Resultam em pouca (re)distribuição de recursos e benefícios. E quando finalmente chegam os recursos para realizar obras e serviços previstos, quem decide como realizar o projeto, quais as suas qualidades, inclusive físicas? Quase sempre, não há mais participação, neste que é o momento mais importante da implementação das políticas públicas.
Os sistemas nacionais, implementados nos últimos anos, requerem complicada gestão da participação e implementação das políticas públicas. São conferências municipais, estaduais e nacionais. São fundos locais, estaduais e nacionais. São políticas locais, estaduais e nacionais. Exigem que hajam conselhos gestores em todos os níveis da federação. São muitas instâncias de gestão que devem ser articuladas. A gestão “em cascata” só complica o que poderia ser bem mais simplificado.
As políticas de moradia e a questão federativa
Ao analisar a questão da moradia mais de um século e meio atrás, Friedish Engels demonstrou não haver solução para os problemas da cidade sem uma mudança do modo de produção e de seu sistema político. Qualquer intervenção na cidade muda apenas o problema de lugar, já que as questões de desigualdade e distribuição de renda que a originaram não deixam de existir. Após mais de 30 anos trabalhando com o tema, me convenci de que certas políticas, como a da habitação, embora necessárias, devam ser parte de uma cesta de políticas cujo cerne seja a questão da renda. Sem renda, num sistema dominado pelo capital, não há solução possível. As pessoas não devem morrer de fome em suas casas próprias. Ou seja, as políticas urbanas de provisão de moradias, infraestrutura e serviços só terão resultado satisfatório se todos tiverem renda. Só há duas formas lícitas de obter renda sob o capitalismo: por meio do trabalho ou, na ausência dele, por meio de algum benefício público (ou pontualmente de alguma outra instituição).
As políticas urbanas, como as demais, são pensadas setorialmente, o que implica em enorme desarticulação. Uma secretaria ou outro órgão em qualquer nível de governo implementa projetos sem qualquer diálogo com as outras secretarias e órgãos públicos que implementam projetos de alguma outra política pública. A questão federativa é também uma complicação. Os três entes federativos estão envolvidos em quase todas as políticas públicas, o que requer enorme esforço de coordenação. Estes sistemas atuam como uma espécie de camisa de força que determina que o processo seja o mesmo em todo o país. Por um lado, centralização excessiva; por outro, dispersão e fragmentação. Não tem de tudo ser sempre realizado da mesma forma em todos os lugares; este país é muito grande.
Todos devem ter percebido que o que foi tratado aqui se refere genericamente às políticas urbanas que foram implementadas nas últimas duas ou três décadas. Merecem críticas por serem, em muitos aspectos, meritórias. Foi ignorado propositalmente o período do atual governo, que nada fez ou propôs em qualquer campo das políticas públicas. O cenário presente tem de ser revertido em novos formatos de políticas públicas que considerem a grandeza territorial, regional e cultural do país, redistribuindo recursos seguindo critérios de justiça social. Só assim, cada qual com seus problemas e soluções, será possível chegar a alguma forma que garanta a todas as pessoas, nas cidades e fora delas, os seus direitos fundamentais.
*Arquiteto, professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Edição: Glauco Faria