É necessário a gente aproximar a periferia dos espaços em que ela é distanciada
A maior convenção nerd das favelas voltou. Em julho de 2022, a segunda edição da PerifaCon reuniu mais de 4 mil pessoas na Fábrica de Cultura da Brasilândia, zona norte de São Paulo.
Com o lema "construindo pontes, derrubando muros", a segunda edição do evento contou com atrações diversas: painéis, rodas de conversa, feira de livros e uma praça de alimentação variada, além de uma estrutura que lembrou um grande festival de música.
Entre os presentes, um grande número de crianças, vindas de diferentes bairros da capital paulista. "A periferia é nerd, a periferia é geek, a periferia se interessa por esse tipo de conteúdo", pontuou o coordenador de comunicação da Perifacon, Daniel Rangel.
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Para o organizador, a convenção foi um espaço fundamental para mostrar que a periferia também é consumidora deste tipo de universo. "Nós entendemos que é necessário a gente aproximar a periferia dos espaços em que ela é distanciada. O nosso objetivo é derrubar os muros que o sistema social nos impõe, e construir pontes entre a periferia e outras possibilidades de universo", frizou.
Ancestralidade
Neste ano, foram cerca de 60 artistas, entre eles ilustradores e quadrinistas independentes, que ocuparam o chamado Beco dos Artistas, espaço montado para a exposição e comercialização de obras. Um dos destaques foi a paulistana Marília Marz, que em sua arte pauta a reconstrução de suas próprias origens e o resgate da ancestralidade.
No quadrinho "Indivisível", a artista mescla suas investigações pessoais com a história do bairro da Liberdade, no centro da cidade de São Paulo. A região é conhecida como reduto oriental, mas possui grande importância na história dos negros no Brasil.
"No meu trabalho eu sempre tento trazer essa perspectiva de que a história que a gente conhece, ela não é aleatória, ela não é uma única versão. Quem conta uma história tem uma intenção. E normalmente a gente só conhece uma história, que é a do ponto de vista da colonização, que foi o que aconteceu exatamente na Liberdade", explica Marz, um dos destaque da cena contemporânea de quadrinhistas negros.
"Esses lugares estão apagados, e isso não é coincidência. No meu trabalho, eu tenho resgatar essa memória, resgatar essa identidade, que é a nossa história, a história do nosso povo. A cidade é uma arena de disputas e é muito bom que as pessoas tenham ciência disso", completa.
Ao Brasil de Fato, ela revela a emoção de ver a juventude periférica ocupando o espaço da Perifacon, principalmente as mulheres pretas expondo suas artes. "A gente tem que contar as nossas histórias. As nossas histórias importam", defende.
Quadrinhos nas escolas
A especialidade de Robson Moura também são os quadrinhos raciais. "Eu comecei a pensar porque não pegar as minhas histórias e por nas histórias em quadrinhos", pontua.
O artista começou a fazer quadrinhos na adolescência, no contato com as histórias célebres de super heróis, como os da Marvel. Com o tempo começou a fazer fanzines. E após se formar na faculdade de Artes, começou a se profissionalizar neste universo.
Professor da rede pública, em duas escolas periféricas distintas, em Heliópolis e São Mateus, ele usa os quadrinhos como uma ferramenta primordial na construção do conhecimento. "Eu levo em sala de aula, deixo na biblioteca, eu vejo que é muito importante que eles tenham um professores que produz quadrinhos, e principalmente que tratem da questão do racismo", pontua.
Atualmente, Róbson tem 3 publicações independentes: "Black Fryday", em 2017; "Pérolas Brancas", de 2019; e "Casa Grande", a publicação mais recente, lançada em 2019.
Em "Casa Grande", o artista conta a história de três irmãos, assumidamente racistas, que herdam uma casa colonial. Dentro dela passam a confrontar os fantasmas do passado, que na verdade, são seus próprios familiares.
"É uma subversão de quem é mocinho e quem é bandido. Geralmente, nas casas mal assombradas as pessoas estão sendo assombradas por algo que elas não tem culpa. Mas nesse eles tem culpa, porque faz parte da própria história familiar deles", explica.
Representatividade
Natural do Capão Redondo, o artista Johnatan Marques, o johnzito, desenha desde pequeno. A tônica da sua arte é a representatividade. Com os quadrinhos, John busca mudar o padrão de personagens, quase sempre construídos na figura de pessoas hétero, cis e brancas.
Em 2019, ele fez seu primeiro quadrinho, que conta a história de Oséias, um lobisomem negro, gay e periférico. "Eu acho que o quadrinho é um meio para estimular a leitura. E é muito importante que tenha quadrinhos cada vez mais diversos, e que falem de como o Brasil está hoje. Não só da gente falar das coisas ruins, e só das lutas, mas da alegria também", afirma.
Assim como a de John, a arte da artista Limão fala muito sobre representatividade. Natural de Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, ela sente na pele a dificuldade de ir a eventos nas zonas centrais das cidades. Por isso, se diz muito feliz em participar de um espaço acessível para o público de quebrada.
"Eu não via pessoas como eu nas outras artes, e achei que era meu lugar para falar sobre isso. De falar sobre ser uma pessoa gorda, ser uma pessoa não binária, uma pessoa preta. E falar de um modo bonito, suave", explica Limão. "Cada passo que a gente dá, abre uma porta para quem vem atrás", completa
Instrumento político
Os quadrinistas independentes – artistas que não têm vínculo fixo com uma editora – atualmente possuem mais opções para divulgar e distribuir o próprio trabalho. O uso das redes sociais, as plataformas de financiamento coletivo, os eventos de quadrinhos e os programas de incentivo à cultura, são exemplos de ferramentas que potencializam a profissionalização e alcance das produções.
Em 2019, A primeira PerifaCon levou cerca de 7 mil pessoas ao Capão Redondo. No ano seguinte, porém, a convenção foi interrompida por conta da pandemia de Covid-19.
Para Helo D'angelo, ilustradora, quadrinista e cartunista do Brasil de Fato, os quadrinhos são hoje um importante instrumento político contra o cenário de retrocessos, principalmente por apresentar um formato, em geral, mais acessível do que textos, podcasts e documentários.
"Eles são muito familiares para o brasileiro, os quadrinhos. Principalmente nesse momento de fake news, eles vem para ajudar a gente a tratar de assuntos difíceis. É uma forma de democratizar o acesso a determinados conteúdos", pontua a artista.
A mesma visão é compartilhada por Daniel Rangel, que celebrou o resultado da maior convenção nerd das favelas. "Os quadrinhos são uma manifestação artística, e como toda manifestação artística, também tem o objetivo de denunciar os crimes que vem acontecendo no Brasil, especialmente o racismo", finaliza o organizador.
Edição: Daniel Lamir