Onda Rosa

Estudo mostra como a América Latina lidou com o aborto neste século

Pesquisadora fez análise comparativa dos processos de acesso a direitos reprodutivos na América Latina entre 2000 e 2020

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Campanha pelo aborto legal na Argentina - Reprodução/Wikimedia Commons

Durante o começo do século 21, no período tipicamente conhecido como “onda rosa”, uma série de governos de esquerda e centro-esquerda foram eleitos democraticamente na América Latina. Alinhados com pautas de redução das desigualdades sociais, esses governos atuaram de diferentes formas na ampliação de algumas políticas de igualdade de gênero. Mas certos campos polêmicos tiveram só avanços tímidos ou até retrocessos: é o caso dos direitos sexuais e reprodutivos.

Esse é o tema da pesquisa de mestrado conduzida por Carla Vitória Barbosa no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Ela analisou e comparou as mudanças no status jurídico do aborto nos países da América Latina em que essa legislação passou por alguma modificação entre 2000 e 2020.

O que ela observou foi que, apesar de metade das democracias liberais da região ter realizado algum tipo de reforma nas leis sobre o aborto, apenas na Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e em algumas províncias no México governos progressistas efetivaram mudanças no sentido de ampliar o direito de escolha das pessoas de interromper uma gravidez.

Nos países em que houve avanço, o estudo destaca a intensa mobilização popular, a negociação com setores estratégicos da sociedade, como juristas, universidades e profissionais de saúde, além da atuação de grupos de acompanhamento e orientação às mulheres para realização do procedimento com mais segurança e menos medo, dor e culpa.

Obstáculos à aprovação do aborto legal e o papel dos presidentes

A pesquisadora explica que um fator que contribuiu para que a pauta do aborto não tenha avançado tanto quanto outras lutas do movimento feminista é que, principalmente na América do Sul, os movimentos de esquerda que se elegeram nesses países têm ligações históricas com setores progressistas das igrejas, tendo colaborado na resistência às ditaduras militares de extrema direita que estavam no poder nesses países nos anos 1970 e 1980.

Quando esses partidos chegaram ao governo, as relações com essas forças religiosas foram determinantes na aprovação ou não de reformas pró-aborto. De acordo com Carla Vitória, no presidencialismo de coalizão, o poder de veto do líder do Executivo e a necessidade de articular negociações com outros partidos fazem do presidente uma figura crucial.

“Em geral, presidentes de direita tiveram um papel ativo de perseguição dos direitos reprodutivos e proposição de leis restringindo o acesso ao aborto legal. Já os de esquerda, quando não estavam alinhados com a pauta, tiveram um papel mais de entrave, impedindo o avanço de projetos liberalizantes”, afirma Carla Vitória ao Jornal da USP.

Ela cita o exemplo da Argentina: o fato de Néstor Kirchner ter uma postura mais combativa de defesa do Estado laico e de Cristina Kirchner, que governou depois dele pelo mesmo partido (PJ), ser mais comprometida com a Igreja Católica, fez com que houvesse muito menos abertura para a discussão do aborto no mandato dela. Mas é importante notar que essas posições podem mudar ao longo do tempo: em 2020, a ex-presidente teve um papel determinante nas negociações do Senado que levaram à legalização do aborto no país.

No Uruguai, a diferença foi ainda mais impactante: em 2008, o presidente Tabaré Vázquez vetou um projeto de legalização do aborto que tinha apoio de maioria no Congresso e, no mandato seguinte, o projeto é aprovado pelo presidente Pepe Mujica, também do mesmo partido de Vázquez (Frente Ampla).

“Em todos os casos em que alguma mudança na lei aconteceu, seja ampliando ou restringindo o direito ao aborto, o primeiro papel do presidente foi não atrapalhar. Isso é muito significativo quando a gente pensa, por exemplo, na declaração recente do Lula, que afirmou ser contra o aborto, mas o vê como uma questão de saúde pública, possivelmente sinalizando que não vetaria caso a descriminalização fosse aprovada no Congresso”, aponta a pesquisadora.

As experiências bem-sucedidas da Argentina e do Chile

Dois dos países acompanhados na pesquisa de Carla tiveram novos acontecimentos relevantes relacionados à questão do aborto após o recorte temporal analisado durante o mestrado. Na Argentina, o presidente Alberto Fernandez sancionou, em janeiro de 2021, uma lei legalizando o aborto até 14 semanas por decisão da gestante e sem limite de tempo em casos de risco de vida. No Chile, o esboço da nova Constituição, fruto das manifestações populares de 2019, inclui um parágrafo estabelecendo que o Estado deve fornecer “as condições para uma gravidez, uma interrupção voluntária da gravidez, parto e maternidade voluntários e protegidos”. Ou seja: se o documento for aprovado no plebiscito que acontece no dia 4 de setembro, o Chile se tornará o primeiro país do mundo a colocar o direito ao aborto legal na sua Constituição.

A nova lei argentina, de 2021, é fruto de uma campanha que surgiu em 2004, no 19° Encontro Nacional de Mulheres, e precisou de oito tentativas para passar no Congresso – a penúltima, em 2018, contou com cerca de cinco meses de mobilização e levou uma multidão às ruas em defesa do aborto legal, seguro e gratuito.

Além da intensa mobilização popular e muita negociação, Carla identifica dois fatores que foram importantes para que o apoio a uma questão tão polêmica e divisiva tenha conseguido se difundir numa parcela mais ampla da sociedade: uma campanha direcionada para setores estratégicos da sociedade, como juristas, universidades e profissionais da saúde (um médico pró-aborto não vai denunciar uma mulher por abortar, por exemplo) e o acompanhamento feminista do aborto.

Esse é um nome dado à ação direta de movimentos que acolhem e ensinam mulheres a realizar um aborto com pílulas de forma segura, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Esses setores são muito fortes na Argentina, e sua atuação nos anos que antecederam a aprovação da lei contribuiu para desmistificar o procedimento no senso comum, mostrando como ele pode ser simples e seguro.

“Acontece muito de uma moça que não conhece ninguém que é a favor da legalização do aborto, mas engravida e não quer manter aquela gravidez. Aí conhece um desses grupos de acompanhantes e o aborto já vira uma experiência de alívio diante de um problema, ao invés de medo, dor e culpa”, conta Carla. “Através mais da prática do que do discurso, esses coletivos mudam o imaginário popular por baixo do véu da sociedade e de campanhas políticas que não querem falar do assunto pois acreditam que pode pegar mal”, acrescenta.

A força do acompanhamento feminista do aborto também foi importante no Chile, que, em um intervalo de cinco anos, foi de um dos cinco únicos países do mundo a ter o aborto proibido em absolutamente todos os casos (herança da ditadura Pinochet) a estar, possivelmente, prestes a aprovar uma das legislações mais avançadas sobre o tema no mundo.

“A mudança na opinião pública foi muito rápida, o que mostra que a maioria, na verdade, é a favor do aborto. As pesquisas normalmente perguntam ‘você é a favor do aborto?’, em abstrato, e a maioria das pessoas diz não. Mas quando você coloca situações concretas – ‘e se for sua filha? e se tiver sido violada? e se tiver que terminar os estudos? e se não tiver condições financeiras de criar?’ – em que se escolhe interromper uma gravidez, essa resposta muda.

Segundo Carla, o que a história mostra é que quando os movimentos têm a coragem de pautar a questão do aborto, existe abertura para que mudanças aconteçam rapidamente nesse campo de disputa que, na visão dela, também é sobre democracia, sobre quem é considerado cidadão e pode gozar de direitos.

Mais informações: e-mail [email protected], com Carla Vitória Barbosa