Partidos procuraram feminilizar candidaturas masculinas, recorrendo a esposas ou mulheres como vices
A campanha à presidência da República deste ano expõe políticas antagônicas para o país. A tal polarização, de fato, divide o Brasil, mas a maior parte do eleitorado não parece tão dividida assim. As mulheres, que representam 53% do universo de votantes são, em grande medida, contrárias às políticas do atual presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL).
Segundo a última pesquisa Datafolha, divulgada na quinta-feira (1), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem 48% das intenções de voto neste segmento, enquanto Jair Bolsonaro soma 29% da preferência pelo voto feminino.
Para a cientista política Flávia Biroli, professora da Universidade de Brasília (UNB), para além dos episódios misóginos de Bolsonaro, o fato de as mulheres estarem na ponta de lança dos lares com maiores dificuldades financeiras, diretamente atingidos pela crise econômica e social do país, pode ser um componente que determina a rejeição ao atual presidente.
"Nós temos uma situação, nos anos recentes, de muita precarização associada, por exemplo, a lares chefiados por mulheres. O emprego das mulheres é mais precarizado e em termos socioeconômicos seus lares, aqueles em que elas são as principais provedoras, são mais empobrecidos", explica Biroli.
"As mulheres são também aquelas que mais foram afetadas por uma série de processos recentes. Mesmo antes da covid-19, a gente tem razões para compreender que as mudanças na legislação trabalhista, que retrocederam direitos, têm prejudicado mais as mulheres do que os homens", completa.
Soma-se a isso, segundo Biroli, uma complexa mecânica pela qual opera o eleitorado brasileiro. Ainda que seja majoritariamente conservador, o comportamento dos votantes tem se alterado ao longo dos anos. "As disputas relacionadas a direitos, que têm a ver com o modo como as pessoas vivem a sua sexualidade, sua capacidade reprodutiva, essas disputas estão colocadas e elas não vão acabar amanhã nem depois".
"A gente precisa se perguntar por que as mulheres votam menos em Bolsonaro do que os homens. Por que os jovens, homens e mulheres, apresentam uma rejeição muito mais alta a Jair Bolsonaro do que os segmentos mais velhos do eleitorado? Será que não é justamente porque, entre esses grupos do eleitorado, a gente tem uma compreensão de que esse tipo de ativação do neoconservadorismo muito violenta, de um ataque aos fundamentos das agendas de direitos humanos, são um problema?", questiona a professora.
Convidada desta semana no BDF Entrevista, Biroli comenta ainda sobre a maior participação das mulheres na política. Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o número de mulheres que se candidataram nestas eleições é um recorde. São 9.415 registros, ou 33% das candidaturas. Mas, no caso das candidaturas aos cargos executivos, as mulheres têm maior representatividade como candidatas a vice.
"Tem algo que tem sido feito pelos partidos para responder à decisão de 2018, do Supremo Tribunal Federal, acompanhada de resolução do TSE, que determina o mínimo de 30% do fundo eleitoral partidário destinado a candidaturas de mulheres. Os partidos têm respondido a essa legislação utilizando recursos em chapas que têm mulheres como vices. Isso significa que falta regulamentação e que os partidos estão utilizando uma brecha", explica Biroli.
Outra explicação para isso, segundo a professora, "é que os partidos procuraram feminilizar candidaturas masculinas, recorrendo a mulheres como vices ou ativando esposas, companheiras no processo eleitoral, para estabelecer uma conexão com o eleitorado feminino".
Na conversa, Biroli ainda comenta sobre as preferências do eleitorado evangélico e violência política.
"Essa violência tem atingido de maneira preferencial mulheres com certas características: mulheres ativistas, mulheres negras, mulheres trans, porque elas são vistas como dupla, triplamente desviantes. São mulheres na política, desafiam o status quo, são ativistas que colocam em cheque o racismo, a violência nos territórios - vamos pensar em Marielle Franco - e elas desafiam, no caso das mulheres trans, o binarismo sexual e a heteronormatividade".
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Praticamente desde 1520 os homens estão aptos a votar no Brasil. Em 1824 a gente teve a primeira eleição nacional, para definir uma Assembleia, mas as mulheres só votaram em 1932, faz somente noventa anos. Hoje as mulheres são 53% do eleitorado brasileiro. Esses votos nas eleições de 2022 vão ser decisivos pro país?
Flávia Biroli: Bom, é ótimo a gente poder falar sobre isso. Primeiro, eu vou dizer algo que pode até ser um lugar comum pra quem trabalha com participação política de mulheres, mas nem sempre é assim que aparece nas discussões. As mulheres são uma maioria e não uma minoria.
É muito comum que, quando se fala na participação política das mulheres, se refira a elas como uma minoria. Elas são a maioria em termos demográficos, populacionais...Elas são a maioria do eleitorado. É interessante observar que elas são, também, quase metade das pessoas filiadas a partidos políticos no Brasil. Segundo dados do TSE, cerca de 47% dessas pessoas são mulheres.
Mas quando a gente olha para a política no Brasil, a gente vê que participação é quando a gente vê candidaturas, vê quem são as pessoas eleitas e ela é muito mais baixa do que essa participação como eleitoras e a sua parte na população brasileira.
Então, é muito interessante que numa eleição como a que a gente tem agora em 2022, de certo modo, é como se os candidatos e as candidatas tivessem descoberto as mulheres. Por duas razões. Uma é a mais óbvia. Elas não são a minoria e não são uma minoria nem demograficamente, nem do eleitorado, então elas pesam nos resultados das eleições.
Mas a outra é que desde 2018 vem se estabelecendo uma clivagem de gênero no voto. Nós não tínhamos isso em eleições anteriores. Isso significa que o que explicava o voto, como fator de peso, não era se estávamos tratando de eleitoras ou de eleitores. Desde 2018 a gente vê isso também nas pesquisas de aprovação do governo Jair Bolsonaro.
As mulheres têm apresentado um perfil de voto que é distinto do perfil dos homens em todos os segmentos. Isso significa que se eu olho pessoas jovens, se eu olho pessoas mais velhas, se eu olho pro eleitorado católico ou pro eleitorado evangélico, se eu olho pro eleitorado do sul ou do norte, ou do centro-oeste, do nordeste ou do sudeste do Brasil, eu tenho diferenças no padrão de voto de mulheres e homens.
Bem resumidamente, as mulheres rejeitam Jair Bolsonaro em taxas mais altas do que os homens nos diferentes grupos do eleitorado.
Queria entrar em um dos temas que você levantou. Muita gente argumentou que o Bolsonaro chegou ao poder por uma reação conservadora de parte da sociedade às agendas de gênero, de raça, de diversidade, que ganhavam força naquele momento. E a rejeição a essas agendas se tornaram uma marca do governo. A tendência é que esse acirramento se perpetue por muito tempo?
Essa questão é fundamental por várias razões. Uma delas é que a gente tem, no eleitorado brasileiro, uma recepção que não é insignificante a ideias conservadoras e a formas de reação às mudanças nas relações entre as pessoas, no modo de viver, as suas identidades, os seus afetos, a conjugalidade, a parentalidade. A gente pode compreender o eleitorado brasileiro como receptivo a ideias conservadoras.
Então, claro que mobilizar essas ideias conservadoras pode ter um efeito positivo em parte desse eleitorado. Mas por outro lado, eu acho importante compreender que isso não é algo estanque. Não é que o eleitorado sempre opera com as mesmas percepções e os mesmos valores em relação por exemplo, à união entre pessoas do mesmo sexo, ao direito ao aborto, questões que hoje se tornaram tão normalizadas como o divórcio.
Esse eleitorado já pensou de diferentes maneiras, mesmo quando a gente pensa no eleitorado católico ou mais especificamente no eleitorado evangélico ao longo do tempo. Então, eu queria pontuar o seguinte: as disputas relacionadas a direitos que têm a ver com o modo como as pessoas vivem a sua sexualidade, sua capacidade reprodutiva, essas disputas estão colocadas e elas não vão acabar amanhã nem depois.
Sobretudo porque a gente vive em sociedades em processos muito acelerados de transformação. Eu sempre gosto de dar um exemplo: quando a gente volta pros anos 1960, a gente estava passando de uma taxa média de natalidade da mulher brasileira de sete para seis. Daí para cinco filhos por mulher.
Hoje, o Brasil é um dos países da América Latina em que essa taxa de natalidade está abaixo da chamada taxa de reposição, abaixo de dois, cerca de 1,6. Então isso significa muita mudança no cotidiano das pessoas. E essas reações tem a ver com reações a essas transformações.
Mas justamente porque as transformações estão colocadas, elas são parte da realidade da vida das pessoas, que a gente tem que compreender que não é sempre a mesma coisa nem entre os eleitores conservadores. E os debates eleitorais servem também pra gente poder tematizar essas questões que eu mencionei, por exemplo direito reprodutivo, aborto.
A gente precisa falar sobre isso em momentos eleitorais, porque esses são momentos em que se pode esclarecer, politizar. Existe uma pedagogia política, e o risco de a gente presumir que, por que o conservadorismo está aí, que as reações conservadoras são relevantes no momento, nós temos essas temáticas sempre como risco político.
E a gente acaba tendo os períodos eleitorais como períodos que funcionam como uma espécie de pedagogia conservadora, ao invés de uma pedagogia no sentido de uma politização numa perspectiva de direitos, numa perspectiva emancipatória.
O próprio ex-presidente Lula chegou a pautar isso no começo da campanha, como uma espécie de termômetro do que seria o período, mas logo recuou, da questão do aborto, por exemplo. Parte da mídia também chegou a criticar a fala, dizendo que essa não era a hora nem o lugar. Como driblar essa agenda conservadora, principalmente nesse período eleitoral?
A gente tem uma situação muito difícil porque a ativação dessa agenda por parte da direita e da extrema direita no Brasil é feita de maneira espetaculosa e de maneira que pretende muito mais estigmatizar do que informar sobre o que de fato essas agendas, como por exemplo a agenda do do direito ao aborto, envolvem.
É claro que para candidaturas de centro, de centro esquerda, de esquerda, candidaturas comprometidas com os direitos das mulheres, por exemplo, com os direitos LGBTQIA+, até mesmo com os direitos da população negra no Brasil - porque essa reação conservadora passa também por uma recusa dos fundamentos das agendas de direitos humanos, incluindo até mesmo a agenda de igualdade racial - como essa ativação é muito espetaculosa, violenta por vezes, é muito comum que essas candidaturas tendam a recuar, evitar essas temáticas.
Mas olha, eu fico pensando se não tem também aí algo que a gente ainda entende pouco e que essas candidaturas de esquerda podem deixar de potencializar. A gente precisa se perguntar por que as mulheres votam menos em Bolsonaro do que os homens. Por que os jovens, homens e mulheres, apresentam uma rejeição muito mais alta a Jair Bolsonaro do que os segmentos mais velhos do eleitorado?
Será que não é justamente porque entre esses grupos do eleitorado a gente tem uma compreensão de que esse tipo de ativação do neoconservadorismo muito violenta, de um ataque aos fundamentos das agendas de direitos humanos, são um problema? Será que esses grupos não estão dando um recado, inclusive para a própria esquerda?
Porque me parece que pode ser equivocado reduzir esses alinhamentos ou desalinhamentos apenas a questão econômica. Inclusive, essa é uma questão: como a candidatura de Lula, por exemplo, procurou lidar com esses ataques que passam pelas agendas chamadas morais - que, na verdade, são agendas de direitos?
"Bom, vamos jogar na agenda econômica. Deixa essa agenda pra lá." E ao que parece, isso não é possível e não será. Porque a direita e a extrema direita têm ativado essas agendas. Então, será que não seria mais adequado desenvolver linguagens, possibilidades de discussão, que ativem justamente os segmentos muito amplos do eleitorado, que compreendem, por exemplo, direitos LGBT, direitos das mulheres, o próprio direito ao aborto, como algo que pode e deve sim ser parte da vida na nossa sociedade?
Eu acho que nós ainda temos um uma dinâmica que torna majoritárias algumas atitudes, sem que elas necessariamente o sejam e leva pouco em consideração a mudança e os recados que estão vindo do próprio eleitorado. Com isso, eu não estou recusando a ideia de que a pauta econômica é central. Mas dizendo que ela não define alinhamentos de maneira isolada.
E que a rejeição das mulheres a Bolsonaro, inclusive entre os evangélicos, que é de dez pontos de diferença entre mulheres e homens, pode estar nos dizendo alguma coisa. O que será isso? É uma rejeição a forma violenta que a masculinidade bolsonarista assume? Uma rejeição ao fato de que se faz pouco caso de agendas de direitos que tocam o seu cotidiano?
Como você comentou, Flávia, o Lula tem uma vantagem expressiva do eleitorado feminino, não só do eleitorado evangélico, mas também do eleitorado em geral. Na última pesquisa, a diferença era de 46% a 27%, uma vantagem considerável, que já foi maior e diminuiu nas últimas pesquisas. O Auxílio Brasil, que é em geral recebido pelas mulheres, influenciou nessa mudança?
A gente tem, como você colocou, uma redução desse gap em relação a pesquisas anteriores, cerca de 20 pontos percentuais de diferença entre as intenções de votos de homens e de mulheres em Jair Bolsonaro.
E é interessante observar, como eu falei, que mesmo no eleitorado evangélico, que é aquele em que as intenções de voto em Jair Bolsonaro se apresentam de maneira mais alta em termos de segmentos, existe uma diferença de cerca de 10 pontos entre o eleitorado feminino e o eleitorado masculino, que sempre está mais alinhado à candidatura de Jair Bolsonaro.
Bolsa Família antes, Auxílio Brasil agora, a recepção se dá, em larga medida, pelas mulheres. Nós temos uma situação, nos anos recentes, de muita precarização associada, por exemplo, a lares chefiados por mulheres. O emprego das mulheres é mais precarizado e em termos socioeconômicos seus lares, aqueles em que elas são as principais provedoras, são mais empobrecidos.
Então, é claro que essas mulheres são impactadas muito diretamente por políticas sociais que permitem, ou ampliam o suporte para necessidades básicas do seu cotidiano. Apesar disso, a gente percebe que permanece uma diferença muito significativa entre mulheres e homens. A gente tem que se perguntar por quê?
Primeiro, respondendo a sua pergunta, sim. Políticas sociais direcionadas, de transferência de renda, podem impactar a percepção que as mulheres têm do contexto em que estão vivendo, do governo federal e, no caso, de um presidente que é candidato à reeleição. Mas as mulheres são também aquelas que mais foram afetadas por uma série de processos recentes.
Mesmo antes da covid-19, a gente tem razões para compreender que as mudanças na legislação trabalhista, que retrocederam direitos, têm prejudicado mais as mulheres do que os homens. O emprego das mulheres tem se precarizado ainda mais do que o dos homens e as mulheres têm estado numa condição de maior dificuldade para conciliação entre trabalho e cuidado, que é predominantemente de responsabilidade das mulheres, dada a divisão sexual do trabalho.
A gente tem os dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, que mostram isso no Brasil e isso acontece em boa parte dos países do mundo. Então as mulheres veem sentido os retrocessos de direitos e com a regressão nas políticas sociais que afetam diretamente a elas, porque são desse universo do cuidado.
Menos recurso para creche, menos recurso para escola, menos recurso para hospital, tudo isso incide nas mulheres e vem a covid. Apesar de um um percentual importante das mulheres em situação vulnerável terem sido destinatárias dos auxílios, já no período da covid, são essas mulheres que tiveram seus filhos em casa com escolas fechadas por um tempo maior do que na maior parte dos países do mundo, sem resposta adequada do governo federal, nem no que diz respeito às condições sanitárias, pra manter a sua saúde em um período de uma tragédia tão ampla, como foi a brasileira.
Pensando no fato de que são elas que se responsabilizaram pelas crianças, em particular durante esse período em que as escolas ficaram fechadas, o Ministério da Educação pouco se responsabilizou pela situação. Se a gente olha os dados e vê quem foram as mulheres que tiveram maior dificuldade para buscar emprego vemos que foram as mulheres negras.
Se a gente compara mulheres e homens, as mulheres em relação aos homens, inclusive as mulheres brancas, tiveram maior dificuldade para buscar emprego nesse período. Por quê? Por esse contexto que eu falava. Então as eleições, agora, ecoam diferentes camadas dessa complexidade.
De um lado uma desresponsabilização do governo pelas condições em que as mulheres podem trabalhar, ao mesmo tempo que mantém a sua responsabilidade primordial na nossa sociedade pelo cuidado.
No começo da nossa conversa você falou sobre como as mulheres entraram na cena política dessas eleições. A estratégia da campanha do presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, tem colocado a primeira-dama Michelle no foco dos eventos. Por outro lado, a campanha do ex-presidente Lula também tem a Janja, sua atual companheira, como uma figura central dos atos que acontecem por todo o país. É por aí que se desenha essa nova estratégia de campanha, de mobilização do eleitorado feminino?
É isso, os candidatos e candidatas descobriram as mulheres como uma maioria eleitoral e estão atentos àquilo que as pesquisas têm mostrado e a essa clivagem de gênero que se estabeleceu, principalmente, a partir de 2018.
Eu não posso deixar de falar que as mulheres são ativadas justamente porque a nossa política permanece muito masculina. Então elas são ativadas justamente nessa condição, de esposas de candidatos e muitas vezes como candidatas a vice, vice-governadoras, vice-presidência…
Tem um dado interessante sobre isso. São 217 chapas de governos estaduais no Brasil e somente 37 têm mulheres à frente. Outras 85 estão como vice nessas chapas de governo estadual…
Aí tem um outro dado que é o seguinte: em 2020 a gente teve um crescimento que chamou a atenção no número de candidaturas de mulheres a vice-prefeitas, que foi maior do que o crescimento nas candidaturas a vereadoras, e obviamente a prefeitas. E aí a gente foi procurar entender o que é que estava acontecendo.
Tem algo que tem sido feito pelos partidos para responder à decisão de 2018, do Supremo Tribunal Federal, acompanhada de resolução do TSE, que determina o mínimo de 30% do fundo eleitoral partidário destinado a candidaturas de mulheres. Os partidos têm respondido a essa legislação utilizando recursos em chapas que têm mulheres como vices.
Essa é uma outra conversa, a gente pode falar mais sobre isso num outro momento, mas no meu entendimento, isso significa que falta regulamentação e que os partidos estão utilizando uma brecha. Uma explicação para isso é que os partidos procuraram feminilizar candidaturas masculinas, recorrendo a mulheres como vices ou ativando esposas, companheiras no processo eleitoral, para estabelecer uma conexão com o eleitorado feminino.
A Janja tem tido esse papel, mas me parece que no caso da candidatura de Lula, há também toda uma imagem que vem sendo projetada pelo ex-presidente, que é de alguém muito voltado para aquilo que é construtivo, para laços afetivos positivos.
E no caso da candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro à reeleição, a gente tem, por boas razões, se a gente observar o governo dele, que é um político que tem as costas viradas pras mulheres, para os direitos das mulheres, que assume posturas machistas, misóginas.
Então tem uma ativação de Michelle Bolsonaro para procurar feminilizar essa imagem que não é só masculina, mas misógina, e a busca de conexão com o eleitorado evangélico, com as mulheres evangélicas, isso é muito claro e tem sido analisado por uma série de colegas. Ela assume uma imagem, um modo de falar, uma linguagem que tem alvo certo. Esse alvo é o conjunto das mulheres evangélicas.
Queria trazer aqui dois dados que eu recolhi. O número de candidaturas de mulheres nessas eleições é um recorde. Segundo o TSE, são 9.415 registros, ou 33% das candidaturas. Por outro lado, um levantamento realizado pelo PSOL recentemente, aponta 34 casos de violência contra parlamentares da sigla. Desses casos, 29 foram direcionados a mulheres e a mulheres trans. Ou seja, as mulheres têm entrado na política com maior frequência, mas também têm sido vítimas de violência cada vez mais, não é?
Isso é algo fundamental pra gente discutir. A gente precisa colocar isso como uma meta. As mulheres não podem, ao participar da política, ter como custo uma violência tremenda que tem sofrido. A violência política de gênero é algo que tem se apresentado em diferentes partes do mundo, como uma reação à maior participação das mulheres na política e também à pressão das mulheres por maior participação.
E o Brasil é um dos países do mundo com as menores taxas de representação política das mulheres nos parlamentos e em cargos executivos também, a gente tem uma representação muito baixa. Mas há uma forte pressão por participação e há um incremento da nossa legislação de cotas ao longo dos anos.
As decisões recentes que determinam mínimos de financiamento no caso das mulheres, e a correspondência de financiamento no caso das pessoas negras têm revelado uma reação fortíssima, muito violenta. É uma ação para manter o domínio masculino da política, que procura desestimular e desincentivar as mulheres, inclusive aquelas que já são políticas a continuar, a se recandidatar, a se reeleger.
Mas a gente tem que observar também - e a gente ainda precisa pesquisar mais isso - os padrões que essa violência assume em um contexto de ascensão da extrema direita no país. No meu entendimento, essa violência tem atingido de maneira preferencial mulheres com certas características: mulheres ativistas, mulheres negras, mulheres trans, porque elas são vistas como dupla, triplamente, desviantes.
São mulheres na política, desafiam o status quo, são ativistas que colocam em cheque o racismo, a violência nos territórios - vamos pensar em Marielle Franco - e elas desafiam, no caso das mulheres trans, o binarismo sexual e a heteronormatividade.
A gente tem, de fato, que observar violência política de gênero como um problema para democracia e os padrões que a violência política de gênero assume em um contexto em que a extrema direita tem, de fato, sido quem orquestra as gramáticas que essa violência assume.
Edição: Thalita Pires