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Há 200 anos... dependência e morte!

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Ato simbólico defende "Independência popular" no Museu do Ipiranga, em São Paulo
Ato simbólico defende "Independência popular" no Museu do Ipiranga, em São Paulo - Junior Lima @xuniorl
A realidade do momento histórico da independência pouco ou nada mudou para as maiorias

Paulo César Carbonari*

O bicentenário da independência política do Brasil, celebrado neste 7 de setembro, serve de motivo para a reflexão sobre o que de dependência e morte segue significando e sobre os desafios para que siga sendo luta permanente por efetiva independência e pela vida.

O quadro de Pedro Américo que ilustra o que teria sido o acontecimento histórico, o “grito do Ipiranga”, mostra uma versão bastante esclarecedora do que foi a “independência” política do Brasil: um arranjo entre as elites brasileiras e portuguesas sem participação popular (o povo caminha na contramão do acontecimento ou assiste, como espectador). Infelizmente, a “independência” foi sequer descolonizadora até na famosa pintura que a retratou, já que se “reproduz” obra de um pintor francês (1875), com a qual tem muita semelhança.

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A realidade do momento histórico da independência pouco ou nada mudou para as maiorias. No momento da “independência”, negros e negras seguiram submetidos/as à escravização por mais 66 anos; indígenas seguiram sendo eliminados até os dias atuais; mulheres seguiram submetidas pelo patriarcado e só puderam efetivamente participar da vida política 130 anos depois. Assim que, o povo sequer assistiu ao evento histórico, foi dele completamente excluído. Aliás, duzentos anos depois, segue na mesma posição, assistindo às forças da “lei e da ordem” demonstrando sua supremacia, com níveis de desigualdade crescentes e que impedem às maiorias o acesso e o usufruto das oportunidades e dos direitos em favor de poucos privilegiados: segue excluído, mas em “grito dos/as excluídos/as”.

A constituição do Império do Brasil foi o que, na prática, significou o 7 de setembro, que, na verdade, foi consumado em 12 de outubro pela proclamação do novo imperador. Todavia, esta situação não rompeu os laços com a metrópole colonial, visto que poucos anos depois o próprio imperador abdicou de sua condição para disputar o trono português em favor de uma de suas filhas, deixando um infante como governante no Brasil. Junto com isso, é amplamente sabido que a independência custou o endividamento brasileiro com a Inglaterra que, efetivamente, se tornou a “nova metrópole” da qual passou a depender o novo império “independente” do Brasil.

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Ainda que possa ser considerada como o rompimento do “pacto colonial” em sentido estrito, a “independência” não significou a superação do colonialismo: até os dias atuais seguimos em luta pela descolonização e em luta decolonial. Um século depois da independência, a Semana da Arte Moderna, com suas propostas de uma nova independência, também se deu em espaço pouco popular, no seio de um “mar de analfabetos/as” e com um intuito de modernização. Dois séculos depois, a celebração oficial reforça nada mais do que a adesão às cores nacionais, o verde e o amarelo, que, mesmo que ressignificadas pela representação das matas e das riquezas, preservam as cores das famílias imperiais, os Bragança e os Habsburgos. A autodeterminação, traço forte da efetiva independência, ainda tem muito para ser realizada.

Não se trata de “falar mal” do “nosso” País. Trata-se de reconhecer que, para a realização da independência, há que se dar passos ainda muito importantes. E eles não serão dados sem que as maiorias sejam efetivamente reconhecidas e respeitadas como maiorias, sejam efetivamente representadas no exercício dos poderes e usufruam cotidianamente a vida com direitos humanos, livres da violência e de violações. O Brasil não será independente sem a superação do racismo, do patriarcado, da desigualdade, da lgbtiap+fobia e de tantas outras práticas desumanizadoras. Não bastem declarações e manifestações ufanistas e patrióticas, nem mesmo “vestir” a bandeira nacional, transformada por uns em “manto de facção”.

A liberdade, invocada como direito e proclamada como valor supremo, ainda segue impossível para pobres, pretos/as, mulheres, indígena, deficientes, lgbtiap+, quilombolas, enfim, para aqueles/as que seguem em luta por direitos, particularmente os/as que, ainda que estejam no mapa, estão no da fome, do trabalho precarizado, da violência miliciana, da tortura, do encarceramento racializado, da mineração ilegal, do desmatamento, do ataque a povos e comunidades tradicionais. Sem a superação destas condicionalidades negativas e impeditivas não se terá liberdade efetiva e nem a independência necessária a ela. Inaceitável que uns poucos se façam livres às custas da liberdade dos/as outros/as.   

Nossa história é de resistência, de enfrentamento e de conquistas. Nem o “grito do Ipiranga” foi obra de um só. Se conquistamos alguns direitos, se já demos pequenos passos na direção da igualdade, é porque temos movimentos e organizações fortes que, ao longo da história, em cada momento, mobilizaram e fizeram as lutas necessárias. Fortalecer, cuidar e ampliar estes espaços, os/as sujeitos/as que as fazem, é o que precisa ser feito. Alimentar as potências insurgentes e instituintes, combater todas as institucionalidades opressoras e vergar as potestades ao “poder obediencial” que devem às potências populares segue sendo tarefa diuturna. 

A vida, todas as vidas, não só em primeiro lugar, é condição a estar presente em todo lugar e que tenha lugar a todo o tempo. Para que a pátria não só seja “idolatrada” e para que não siga “deitada eternamente em berço esplêndido”, mas de pé e em luta pela independência realizada como exercício dos direitos humanos, das liberdades, da igualdade e da fraternidade, há um compromisso a ser repactuado. Queremos, sim, “nossa vida, no teu seio, mais amores”, mas não para poucos. Seguiremos precisando erguer “da justiça a clava forte” com o engajamento dos teus filhos e das tuas filhas na luta por um Brasil que, soberano entre os outros povos, transforme o cotidiano de cada brasileiro e brasileira em prática cidadã.

Temos uma oportunidade para da um passo nesta direção agora em algumas semanas, na eleição. Façamos do voto um uníssono não aos que não nos querem independentes e a confirmação de que faremos da “pátria amada” um “sonho intenso” que vai sendo realizado como “sonho que se sonha junto” na vida daqueles/as para quem até o sonho é subtraído. Exercitemos o direito à recusa de tudo o que nos mata, do que mata a vida e o sonho. Exercitemos o direito de querer liberdade, justiça... direitos humanos! Sigamos esperançando... não queremos mais dependência e nem morte!

 

**Doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo