Quando recebeu a conta de energia de R$ 600, Jandria Catia Rodrigues Vieira, de 38 anos, estava com um bebê recém-nascido e não tinha um centavo. “Eu quase entrei em depressão. Falei: vou fazer o quê? Se o dinheiro não dá nem para alimentar os meus filhos, eu vou pagar a conta de luz?”, conta a moradora do Jardim da União, na zona sul de São Paulo.
Assim como ela, uma parcela cada vez maior de brasileiros têm enfrentado dificuldades para pagar a conta de luz que hoje consome ao menos metade da renda de 46% das famílias do país. Um mapeamento do Instituto Pólis, ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade, mostra que a distribuição de energia nos domicílios pelo país segue um padrão de raça e classe.
Ou seja, as regiões onde há menor acesso à energia e maior duração de interrupção no fornecimento são também as regiões com predominância de população negra e de baixa renda. São também áreas onde o consumo de energia é menor. O estudo “Justiça energética nas cidades brasileiras, o que se reivindica” tomou como base dados do acesso à energia elétrica e ao saneamento básico em três cidades brasileiras: Rio Branco (AC), Rio de Janeiro (RJ) e Maceió (AL).
A pesquisa mostra que nas famílias com renda de até dois salários-mínimos a maior parte da energia é usada para a conservação de alimentos. Já em famílias com renda de dez salários-mínimos, a maior parte da energia elétrica é direcionada para a climatização do ambiente.
Jandria, por exemplo, usa a energia apenas para o essencial e possui poucos equipamentos elétricos: geladeira e chuveiro. Mesmo com o consumo baixo, a conta é desproporcional à renda da família. “Tem dia que eu não posso comprar nem fralda pro pequenininho”, conta.
Essa situação tem um nome: pobreza energética, que ocorre quando um indivíduo tem limitações tecnológicas, físicas ou econômicas no acesso à energia. Entre as limitações físicas, está a falta de energia elétrica proveniente de companhia distribuidora e com medidor com uso exclusivo. Isso ocorre principalmente nas regiões de favelas — onde, vale ressaltar, a maioria da população é negra e há maior concentração de mulheres chefes de família com renda de até um salário-mínimo, como o Instituto Pólis mapeou no relatório.
No Rio de Janeiro, apenas 67% dos domicílios nas regiões periféricas possuem energia elétrica proveniente de companhia distribuidora, observa o estudo. Nos 33% dos domicílios restantes, a energia vem de outra fonte e pode ter qualidade inferior e menor estabilidade.
Em Maceió, a realidade é ainda mais crítica: apenas 52% das residências em favelas têm energia fornecida pela concessionária, enquanto 48% têm acesso ao serviço por outros meios. Os dados são parecidos em Rio Branco: 57% das residências em favelas possuem acesso à energia elétrica fornecida pela distribuidora, ante 43% dos domicílios que têm o acesso de outra maneira.
“O não acesso [à energia] ocorre em razão da negligência do Estado em garantir o direito à energia para as famílias que residem em assentamentos informais”, explica o relatório. Ainda segundo o estudo, quando esses domicílios têm acesso à energia elétrica, o serviço é deficiente. “Tal situação resulta em inúmeras famílias submetidas a viver no escuro, no calor, sem alimentos refrigerados adequadamente e com banhos gelados.”
Nas casas com até dois salários, energia vai para conservação de alimentos
Participante do Movimento Luta Popular e moradora da Ocupação dos Queixadas, em Cajamar, na região metropolitana de São Paulo, Vanessa Mendonça conta que a ocupação possui apenas três anos e o acesso à energia elétrica é totalmente irregular. Sua principal preocupação é a segurança. “Você depender de gatos, de gambiarra, para garantir iluminação é perigoso”, diz ao citar riscos como acidentes e incêndios. Hoje, a comunidade luta pelo direito ao acesso regular à energia.
Mas para a população de baixa renda, a regularização da energia elétrica não garante seu acesso na prática. Rodolfo Gomes, diretor executivo da ONG International Energy Initiative Brasil, defende que, para encontrar dados reais sobre quem está na situação de pobreza energética, não se pode considerar apenas as pessoas que não têm acesso a redes de eletricidade. Segundo ele, uma coisa é ter eletricidade em casa, outra, o seu uso. “A eletricidade é cara, compromete boa parte do orçamento dessas pessoas. Tem uma qualidade baixa, muitas vezes tem muita oscilação da energia, muita interrupção de fornecimento”, explica. “A pobreza energética é uma das dimensões da pobreza.”
Quatro em cada dez famílias têm a conta de energia atrasada
Cerca de quatro em cada dez famílias brasileiras estão inadimplentes. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), 39,43% das famílias atrasaram a fatura por pelo menos um mês em 2021. Nubia Santana, de 42 anos, também moradora de Jardim da União, está dentro dessa estatística. Ela mora sozinha em um barraco de madeira e está desempregada há três anos. Está há quatro meses sem pagar a conta.
Ela não usa ferro de passar, trocou as lâmpadas por modelos mais econômicos e diz que procura tomar banhos rápidos. Mesmo assim, a conta é alta demais para a renda que obtém com bicos irregulares e com o auxílio mensal de sua filha para comprar alimentos. Se Nubia pagar a conta, não come.
“Um dado que nos marcou bastante é que 22% dos brasileiros estão tendo que deixar de comprar alimentos básicos para pagar a conta de luz”, diz a pesquisadora Amanda Ohara, do Instituto Clima e Sociedade, que no começo do ano realizou um levantamento sobre o peso da energia na renda dos brasileiros.
Além dos 22% que afirmaram diminuir a compra de alimentos básicos, 40% das famílias ouvidas pela pesquisa relataram diminuir ou deixar de comprar roupas, sapatos e eletrodomésticos e 14% deixaram de pagar outras contas básicas, como as de água e gás encanado para conseguir pagar a conta de luz.
Com o aquecimento global e as ondas de calor, itens que até então poderiam ser considerados de luxo, como ventilador e ar-condicionado, tornam-se cada vez mais essenciais. Essenciais, porém inacessíveis para a maior parte da população, que mal consegue pagar uma conta de energia com gastos básicos.
Autora do estudo “The multidimensionality of energy poverty in Brazil: an historical analysis”, que identificou que ao menos 11,4% dos domicílios brasileiros sofrem de pobreza energética, a pesquisadora Paula Bezerra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que a injustiça energética se propaga nessa situação porque as necessidades básicas de energia não são atendidas.
“As limitações financeiras vão além do quanto a pessoa pode pagar por mês para suprir a energia. Aí também tem a questão dos equipamentos que ela tem que usar”, diz. “Se a gente está falando, por exemplo, de um país quente como o Brasil, uma pessoa que não tem acesso a um aparelho como ventilador, ar-condicionado está numa situação em que ela está exposta, ela está vulnerável termicamente.”
Além da climatização, existe um uso ainda mais importante da energia, que é a refrigeração de alimentos. O relatório do Instituto Pólis aponta que uma forma de as famílias de baixa renda reduzirem o gasto energético seria trocar as geladeiras por modelos mais eficientes.
Mas essa população já tem toda a sua renda voltada para gastos com habitação e serviços e necessidades básicas, “o que a impede de arcar com a compra de refrigeradores mais eficientes, ainda que a longo prazo isso resultaria em uma economia de renda”, conclui o estudo.
Mais térmicas, conta mais cara
Um dos motivos do atual aumento da conta de luz é a crise hídrica de 2021. Com a escassez de água, o Estado investiu mais em termelétricas, que são uma fonte mais cara, principalmente por conta do combustível que é utilizado.
No ano passado, o governo colocou todo o parque termelétrico do Brasil operando em tempo integral por seis meses. “Foi um impacto brutal”, diz Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), ao explicar que a energia produzida por usina termelétrica pode ter um custo duas a dez vezes maior que a produzida por eólicas e hidrelétricas. “O combustível [tem] um custo extra, que não está incorporado no projeto, não está incorporado nas tarifas que todo mundo paga. Então é você ter que fazer uma nova conta.” E nessa nova conta quem paga o gasto é o público consumidor.
No Brasil, 60% da energia vem de fontes hidrelétricas. A eólica e a solar estão em segundo e terceiro lugar, respectivamente, com cerca de 10% do uso cada. “É uma participação significativa”, diz Baitelo. “Mas, comparado ao potencial que elas poderiam ter, ainda é muito menor. O Brasil não precisaria estar nessa situação de energia cara.”
Uma alternativa apresentada pelo estudo do Instituto Pólis para superar a atual condição de pobreza energética é adotar um regime de tarifas progressivas, que pode reduzir em 59,3%, em média, os gastos dos brasileiros mais pobres com a conta de luz. “A ideia é que a diferença de custos seja compensada com um pequeno aumento nas contas dos demais consumidores, de maneira proporcional ao seu consumo”, explica a pesquisa. “Ou seja, quem consome mais passa a pagar um pouco a mais.”
O mecanismo de tarifa progressiva, defendem os pesquisadores, favoreceria a justiça energética e também estimularia um consumo mais consciente de energia entre os consumidores das classes média e alta. “O modelo também corrige uma distorção do atual sistema de tarifas adotado no país, uma vez que os consumidores residenciais que usam mais energia exigem uma infraestrutura de rede muito superior à necessária para o atendimento dos consumidores de baixa renda, que, em geral, usam pouca energia”, aponta o relatório.
141 mil domicílios brasileiros não têm acesso à energia / Rudja Santos/Amazônia Real
Falta de acesso à energia em regiões isoladas
O que foi visto até aqui são famílias que não têm condições de pagar a conta de luz. A energia chega até suas residências, mesmo com qualidade menor, interrupções e preço muito além da renda familiar. Mas existem locais com limitações físicas — a energia nem chega lá.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2019 indicam que mais de 141 mil domicílios brasileiros não têm acesso à energia. O valor, no entanto, é subestimado, pois desconsidera famílias que moram em regiões remotas — principalmente no Norte do país.
Na Amazônia Legal, 990 mil pessoas não têm acesso à energia elétrica, segundo estudo do Iema publicado em novembro de 2019.
Esse estudo mostrou que 19% da população que vive em Terras Indígenas na Amazônia não tem acesso à energia elétrica. O número chega a 22% entre os que vivem em Unidades de Conservação.
O principal motivo desse isolamento energético é que, enquanto no resto do país as regiões são atendidas pelo Sistema Interligado Nacional (SIN), que fornece energia elétrica a partir das redes de transmissão, na Amazônia Legal predominam os sistemas isolados, que têm um alcance menor.
A maior parte dos sistemas isolados utiliza geradores movidos a diesel para gerar energia elétrica. São sistemas que possuem elevados custos de geração, baixa eficiência e elevada necessidade de manutenção. Eles exigem uma logística complexa de transporte do combustível e emitem gases de efeito estufa.
A falta do acesso à energia elétrica torna os povos amazônicos ainda mais excluídos. Para Arthur Baiocchi, pesquisador do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), “o acesso à energia elétrica não só é muito importante para resiliência desses povos como também [a falta do acesso] os deixa em uma situação de vulnerabilidade muito complicada”. Principalmente pela dificuldade em acessar meios de comunicação, como televisão e internet. Ele citou o exemplo da pandemia, durante a qual as redes de comunicação foram importantes para divulgar informações e desmentir notícias falsas.