Lideranças indígenas de todo o país passaram a ampliar o coro por maior celeridade no processo judicial que trata do marco temporal, tese segundo a qual os povos tradicionais somente teriam direito a áreas onde já estivessem na data da promulgação da atual Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988.
O processo corre no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2016, mas teve o julgamento adiado diversas vezes pela Corte, que hoje mantém a pauta sob paralisia. A última vez em que o caso teve o julgamento protelado foi em junho deste ano, mês para o qual o então presidente da Corte, Luiz Fux, havia previsto a avaliação do caso. O magistrado, no entanto, desistiu e retirou o processo da agenda.
O impasse está materializado no Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata de uma ação de reintegração de posse solicitada pelo governo estadual de Santa Catarina contra o povo Xoklegn. O processo é referente à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas foi classificado em 2019 pelo Supremo como sendo de “repercussão geral”. Na prática, a classificação significa que a decisão a ser tomada irá influenciar uma série de outras ações judiciais sobre o mesmo tema.
Esse é o motivo pelo qual as comunidades tradicionais mantêm os olhos atentos a todos os movimentos que ocorrem no entorno da ação. O coro dos indígenas por celeridade para o caso foi levado diretamente ao STF e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ambos presididos pela ministra Rosa Weber, recentemente. No último dia 15, ela recebeu uma comitiva de lideranças interessadas em tratar do assunto.
Segundo divulgado pela assessoria da Corte, a magistrada prometeu que colocará o tema em votação ainda em sua gestão na presidência, marcada para terminar no início de outubro de 2023. Weber disse que estuda uma data para programar a discussão do assunto.
A demora do STF em julgar a ação tem como pano de fundo o avanço conservador vivido pelo país, que tem hoje a bancada ruralista como um dos braços políticos oficiais do governo Bolsonaro. Nos bastidores de Brasília, é comum entre diferentes fontes do xadrez político e legislativo o entendimento de que o Supremo tem terreno movediço para tratar do tema na atualidade, quando os ruralistas tendem a incidir com mais força contra os interesses indígenas e desequilibrar ainda mais o jogo.
O ministro Nunes Marques, por exemplo, que foi indicado ao STF por Bolsonaro, já manifestou voto favorável à tese do marco temporal no âmbito da ação judicial. Além dele, somente Edson Fachin votou. O ministro defendeu a rejeição da tese, que opõe comunidades tradicionais e ruralistas. A respeito do restante dos magistrados da Corte, ainda não se sabe quando os posicionamentos serão conhecidos, uma vez que a colocação do tema em julgamento depende de Rosa Weber.
Uma coisa, porém, é certa aos olhos de indígenas e entre parte dos especialistas que acompanham com atenção o passo a passo do debate: uma eventual chancela à tese do marco temporal tenderia a comprometer não somente territórios que aguardam definição judicial, mas também áreas já demarcadas.
É que afirma, por exemplo, Dinamam Tuxá, um dos coordenadores-executivos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ele acrescenta que, mesmo sem ter sido avaliada ainda pelo Supremo, a tese causa uma grande ressonância negativa em ações relacionadas a áreas tradicionais. "Tem diversos processos que estão parados tanto no nível administrativo quanto judicial, porque muitas dessas situações foram judicializadas", ressalta, ao citar uma das maiores dores de cabeça da Apib.
"E, como não há um posicionamento da Suprema Corte, as instituições estão se utilizando da espera por essa decisão pra não tomarem providências a respeito de demarcações, mesmo com o nosso texto constitucional sendo claro em obrigar o Estado brasileiro a demarcar as terras indígenas. É preocupante se utilizarem de uma tese que ainda não foi julgada pra não garantirem o direito de acesso dos indígenas aos seus territórios tradicionais", desabafa o dirigente.
O conflito em torno da tese do marco temporal já atiçou debates no Supremo à época da análise do caso do território Raposa Terra do Sol, em Roraima, em 2009, quando a Corte estabeleceu o ano de 1988 como referência temporal para a demarcação. O processo de demarcação referente à área teve início no fim dos anos 1970. A homologação da terra foi feita em 2005 e, apesar de uma série de protestos judicializados que se seguiram, o Supremo manteve a demarcação.
"Embora a bancada ruralista defenda que existe um entendimento do STF sobre o marco temporal, isso é falso. O que foi definido no caso Raposa foi definido em um processo subjetivo, ou seja, que discute direitos de partes determinadas, e só vale para aquele caso. E o STF já, em diversas decisões, pronunciou que o que foi decidido nesse caso só vale pra ele. Então, a gente sequer pode falar em jurisprudência consolidada", pontua a advogada do Instituto Socioambiental, Juliana de Paula Batista.
Efeito cascata
A estagnação de processos relativos a reconhecimento de terras tradicionais faz com que a bancada ruralista ganhe tempo para tentar articular, no Congresso Nacional, a votação de uma de suas mais controversas medidas, o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que transfere do Poder Executivo para o Legislativo o papel de demarcar terras indígenas e legaliza a tese do marco temporal. A advogada do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula Batista, sublinha que a paralisia dos processos judiciais também traz incerteza jurídica a respeito da situação das áreas em questão.
"Isso gera mais conflitos porque, enquanto não se tem a segurança jurídica que o ato de demarcação confere, se cria a expectativa de que aquela área pode ser anulada, e isso gera mais invasão, mais pressão sobre as comunidades, mais ameaças."
A descrição da advogada pode ser mensurada em números: os casos de invasão possessória, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio no país saltaram de 263 em 2020 para 305 em 2021, quando 226 territórios tradicionais foram atingidos. A quantidade registrada no ano passado é quase 300% maior do que a de 2018, ano em que houve 109 casos do gênero. Os dados são do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que acompanha a escalada da violência contra os povos tradicionais e no campo em geral.
Outra comparação que chama a atenção é o fato de as mortes violentas entre a população em geral terem caído 20% no país entre 2009 e 2019 enquanto elas saltaram 22% no mesmo período quando o assunto é a perda de vidas indígenas. Os números constam no Atlas da Violência 2021, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN).
Genocídio
A assimetria escancarada nos números expõe o genocídio a que estão submetidas as comunidades tradicionais no Brasil. "Essa tentativa de impedir que os povos tenham acesso aos seus territórios tradicionais pode ser classificada, sem dúvida nenhuma, como um ato genocida. Tem várias teses jurídicas que defendem essa posição. Por isso nós afirmamos que [o marco temporal] é um nome elegante para o genocídio", atribui o porta-voz do Greenpeace na Amazônia, Danicley de Aguiar.
Ele ressalta que não é difícil encontrar exemplos de comunidades cuja dignidade foi duramente atingida por processos paralisados e consequentes conflitos que comprometem o acesso à terra. "A situação dos Guarani-Kaiowás, no Mato Grosso do Sul, por exemplo, não tem outro nome pra dar para aquilo. Que outro nome se pode dar? É um claro genocídio, porque você tem grupos de guaranis à beira de rodovias esperando pra acessar seus territórios há décadas", exemplifica.
Nesse sentido, Aguiar frisa que a tese do marco temporal piora a situação dessas comunidades, que ele ressalta sofrerem uma violência multifacetada desde a época da chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500.
"Você tem grupos sociais na Amazônia – isolados, inclusive – que até hoje não tiveram a demarcação reconhecida. Há fazendeiros invadindo e produzindo um processo de apagamento de grupos que há em alguns territórios. E aí, como você vai mensurar isso, afirmando se aqueles povos isolados já estavam lá em 1988 ou não? Isso não faz sentido algum. Então, o marco temporal é mais uma entre as diversas tentativas de impedir os direitos indígenas, além de ser uma fraude jurídica", critica.
Guarani-Kaiowá
O indígena Norivaldo Aty Guasu, uma das lideranças do povo Guarani-Kaiowá, conhece bem a realidade evocada por Aguiar. A etnia tem 60 aldeias, com apenas oito delas demarcadas. Enquanto os processos das outras 52 não andam, o abandono estatal vai dando o tom da disputa que envolve o terreno.
"Nós já tivemos uma área equivalente a 10% do estado. Hoje estamos reivindicando 0,2%, e ainda assim está difícil. O governo [federal] diz que estamos prejudicando a economia do estado, mas era nosso território", desabafa Guasu, com o cansaço de quem viu quatro companheiros tombarem somente na sua própria aldeia, que reúne uma média de 380 famílias.
Ele conta que hoje tem uma bala alojada no coração após se tornar vítima de uma das ofensivas que se abateram sobre a comunidade nos últimos tempos. "Aqui a gente está totalmente inseguro. Quem fez o massacre recentemente foi a própria Polícia Militar. Sou sobrevivente de um massacre, e só a gente sabe o que passou. A situação nossa é muito complicada aqui no Mato Grosso do Sul”, diz, ao se queixar que há várias famílias Guaranis-Kaiowás vivendo em beira de rodovias por não terem acesso à terra. “A gente espera que o STF proteja o povo indígena."
Edição: Glauco Faria