O que torna tudo muito mais brutal é que as mulheres têm relações afetivas com homens que as agridem
Apesar da queda em relação a 2020, o número de feminicídios no Brasil continua alto. Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2021, o último disponível a partir de dados compilados pelas secretarias de segurança pública do país, foram 1.340 mortes de mulheres apenas por serem mulheres.
O Brasil ocupa a 5ª posição no número de mortes de mulheres no mundo. A cada sete horas, uma mulher é morta no país por questões de gênero.
Esse é o tema da série "Não Foi Minha Culpa", que estreou em agosto deste ano no streaming Star Plus. A série conta a história real (com livre adaptação para a ficção) de 10 mulheres que foram vítimas de feminicídio, mas busca ir além da tragédia e "saudar a memória dessas mulheres" explica a roteirista da série, Michelle Ferreira.
"Esses números são tão grandes, e todo dia em jornal, internet, portais, a gente vê os feminicídios das formas mais violentas possíveis. E o que a gente tentou fazer, óbvio é contar essa história de violência, mas saudar e nos aprofundar na vida dessas mulheres, que não representam só um fetiche do entretenimento e da violência, mas que possam ter a voz para si, pra defender a própria vida delas."
Ferreira, que além de roteirista também é diretora e atriz de teatro, é a convidada desta semana no BdF Entrevista. A série, que foi escrita em parceria com a também roteirista Juliana Rosenthal, utiliza como pano de fundo o carnaval. E daí que as histórias dessas mulheres se entrelaçam.
"Essa imagem do homem cordial, que está de braços abertos, se divertindo…esses corpos seminus que, aparentemente, parecem ter toda liberdade dentro do carnaval, de extravasar, é algo que só pode ser permitido em quatro dias de carnaval. No resto do ano, sabemos como as coisas funcionam", afirma Ferreira.
"Eu acho que a gente transitou por essas similaridades e tentou encontrar algo dentro de uma festa muito popular, que pudesse simbolizar essa contradição brasileira", completa a roteirista.
Mas as violências contra mulheres não se restringem ao feminicídio apenas. Durante os primeiros meses da pandemia de covid-19, o confinamento necessário para frear o avanço do vírus também causou uma epidemia de violências domésticas. Entre 2020 e 2021, houve um acréscimo de 23 mil chamadas de emergência para o número das polícias militares, o 190, com denúncias das mais variadas.
Segundo o Anuário de Segurança Pública, "ao menos uma pessoa ligou, por minuto, em 2021, para o 190 denunciando agressões decorrentes de violência doméstica".
"Como a gente sabe, estatisticamente, a violência contra a mulher acontece muito dentro do seu ambiente de trabalho, dentro do ambiente doméstico, dentro dos ambientes que eram para as mulheres se sentirem seguras. E não são. O que torna tudo muito mais brutal e tudo mais confuso, do ponto de vista dos sentimentos, porque as mulheres têm relações afetivas com esses homens que as agridem, que as humilham, que fazem violência psicológica, violência patrimonial", aponta Ferreira.
Na conversa, a roteirista fala ainda sobre o avanço das produções nas plataformas de streaming e da resistência do audiovisual brasileiro, apesar da falta de gestão governamental para o setor.
"Eu acho que a gente só conseguiu resistir a essa maré que bagunçou muitas coisas e que deixou muitas coisas à deriva, justamente pelo talento dos nossos profissionais, a raça e a força de vontade de fazer acontecer. Como também sou do teatro, vejo isso lá também, assim como vejo no audiovisual."
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Você é roteirista da série "Não Foi Minha Culpa", que está em cartaz no Star Plus, e que retrata histórias reais de feminicídio no Brasil. Como foi o processo de adaptação dessas histórias tão tristes pra ficção?
Michelle Ferreira: Então, eu fui chamada pela Juliana Rosenthal, que é uma roteirista que é minha minha dupla, minha colega maravilhosa, um talento - e é perto dos bons que a gente fica melhor, não é? A gente já se conhecia meio de vista, dos teatros da vida, e um dia recebi esse convite da Juliana, pra fazer parte, junto com ela, da sala de roteiro dessa série sobre feminicídio.
A Ju já tinha uma ideia do que ela queria, já tinha, inclusive, vendido para o canal um pitching, que era fazer uma série sobre feminicídio, mas com um sabor brasileiro. Porque essa série, na verdade, é uma ideia latina, tem também uma versão mexicana e uma versão colombiana, mas cada país trouxe a sua cultura para a tela.
Quando a Juliana foi vender este projeto pro canal, ela levou a ideia de contar a história a partir de um bloco de carnaval, onde as histórias pudessem se cruzar. Ela trouxe a ideia pra mim, que também sou uma apaixonada pelo carnaval, e acho que o carnaval também é contraditório, em si. Nele tem todas as contradições do país, como se fosse um microcosmos, uma metonímia da gente, como povo.
A gente teve o auxílio de uma pesquisadora, a Carol Trevisan, que começou a levantar esses casos reais. A gente tinha, infelizmente, um grande volume de casos, realmente é algo brutal nesse sentido. E a gente tinha também, dentro desses casos, a preocupação de abranger a mulher brasileira.
Porque não existe a mulher brasileira, existem muitas mulheres brasileiras. Você tem um recorte de raça, você tem um recorte de orientação sexual, você tem um recorte de classe social, você tem um recorte de tudo. Então, a gente queria fazer algo bem diverso, em dez episódios para abranger isso e colocar essas dez mulheres que mais fossem potentes, para simbolizar o que é essa tal da mulher brasileira.
A gente fez uma tabela, um exercício mesmo desse recorte, e começamos a ver os casos, com o auxílio nessa pesquisa de uma psiquiatra, a doutora Cecília Gross, que foi muito importante também para esse processo, que também auxiliou pra gente entender o que seria essa codependência entre esses algozes e essas vítimas.
Como a gente sabe, estatisticamente, a violência contra a mulher acontece muito dentro do seu ambiente de trabalho, dentro do ambiente doméstico, dentro dos ambientes que eram para as mulheres se sentirem seguras. E não são. A gente tem aquela velha ilusão de que você vai estar andando no meio da rua e um desconhecido te pega e faz algum mal a você.
Mas a realidade estatística não é essa, o que torna tudo muito mais brutal e tudo mais confuso, do ponto de vista dos sentimentos, porque as mulheres têm relações afetivas com esses homens que as agridem, que as humilham, que fazem violência psicológica, violência patrimonial. Existem vários tipos de violência.
E é um tema muito sensível, muito delicado. Para pegar essas histórias reais e transformá-las em ficção, eu acho que o cuidado precisou ser redobrado, não?
Total…E eu acho que o mais importante é que a gente queria criar…Porque, assim, a dramaturgia também está viciada, também está sob o guarda-chuva do patriarcado, não há nada que não esteja sob esse guarda-chuva. E a gente tinha a oportunidade de mulheres contarem as histórias de mulheres, tirar um pouco desses estereótipos, dessas ideias pré-concebidas do que é uma mulher, do que é uma relação abusiva e tentar chegar o mais próximo da verdade.
E saudar a vida dessas mulheres, não apenas a morte, não apenas um fetiche da morte, um fetiche da violência. Porque esses números são tão grandes, e todo dia em jornal, internet, portais, a gente vê os feminicídios das formas mais violentas possíveis. E o que a gente tentou fazer, óbvio é contar essa história de violência, mas saudar e nos aprofundar na vida dessas mulheres, que não representam só um fetiche do entretenimento e da violência, mas que possam ter a voz para si, pra defender a própria vida delas.
É isso que a gente quer: Por que essa mulher morreu? Que ela morreu, a gente sabe. Que ela foi violentada, a gente sabe. Mas como? E o que aconteceu? Quem é ela? Quais são as suas contradições? Quais são as contradições desses relacionamentos entre marido e mulher, entre mãe e filho, entre patrão e colaborador, enfim.
Com certeza, é um tema muito sensível, mas só foi possível porque tem muito da gente lá. Porque nós também somos mulheres e sabemos o que é sofrer o abuso, em maior ou menor grau. E não conhecemos, infelizmente, nenhuma mulher que nunca passou por pelo menos um tipo de abuso, do considerado mais light, que na verdade é tão perigoso e mina a relação tanto quanto, como, por exemplo, a violência psicológica - hoje tipificada como crime - até a violência mais brutal, que resulta no feminicídio.
A gente estava conversando aqui um pouquinho antes de entrar no ar, e a série já está no ar e vocês têm colhido relatos. Queria que você falasse um pouquinho de como está esse pós-trabalho, que também é muito importante.
Exato. O roteirista está muito nos primórdios de qualquer trabalho. Depois que a gente faz o nosso trabalho vem o trabalho da produção, a direção, a direção de arte, a fotografia, mas com uma equipe majoritariamente feita por mulheres. Isso também foi muito importante.
É um ato político poder falar sobre mulheres e tê-las no set, como chefe dos departamentos, enfim. Então, sim, a gente tem colhido relatos desde o começo do processo, tanto de todo mundo que participa, desde a sala de roteiro, até a direção da Susana Lira.
Pra que que a gente faz [a série]? Nós fazemos para as pessoas, para a audiência brasileira. E pra audiência brasileira como um todo, não apenas para as mulheres, mas para os homens também. Porque nós precisamos dos aliados, nossos homens são nossos aliados.
Assim como a luta antirracista não é uma luta só da negritude, a branquitude precisa se comprometer nessa luta, a luta contra o machismo, o patriarcado, o feminicídio, a violência contra a mulher, não é uma luta só das mulheres. Os homens também precisam se comprometer nessa luta ou não vamos ganhá-la nunca. Não há como.
Antes esse fenômeno fosse só brasileiro. A gente sabe que é um um fenômeno mundial, em maior ou menor grau, é mundial. Então a gente tem colhido relatos muito interessantes, muito importantes, temos feito lives, conversas. Por isso é tão importante estar aqui com você. A gente tem que falar sobre isso, a gente tem que ver a série e falar sobre ela.
Ela se desdobra, não é uma série que fica na TV, no streaming. Ela atravessa as pessoas, justamente pelo seu grau de importância, seu grau de realidade e sua função social. Mais do que tudo, eu acho que ela tem uma missão. Se a gente conseguir salvar uma mulher, já terá valido a pena fazer tudo isso. Mas eu acho que a gente é capaz de fazer muito mais.
Temos tido relatos emocionantes de homens, de mulheres, de todas as idades, de diferentes classes. A gente sabe que é um produto de streaming, que ainda precisa se popularizar mais, mas a gente tem muita esperança e muita fé no trajeto dessa série e acho que a gente vai conseguir alcançar bastante gente.
Como você falou, ela é uma franquia, ela existe em outros países como Colômbia e México. Infelizmente, é uma questão mundial. Mas no Brasil, o caso é ainda mais triste. Nós somos o quinto país em morte de mulheres, somente por serem mulheres. O que vocês colheram de relatos de outras experiências mundo afora?
Como a gente estava dizendo, inclusive, os modus operandi são muito parecidos, porque em todas as partes do mundo, o ciclo da violência, quando você tem uma relação de afeto com esse agressor, ele é muito similar para brasileiras e estrangeiras. Porque vem misturado com uma coisa que falam pra gente que se chama amor.
E o que é essa forma de amor? O que é a maternidade? Ou os vários estereótipos femininos, que são repetidos universalmente? Isso me faz pensar na Silvia Federici maravilhosa autora italiana feminista que diz que "o que vocês chamam de amor, eu chamo de trabalho não remunerado".
O patriarcado, o capitalismo, o machismo, o racismo, eles estão todos intrincados numa grande rede que serve às estruturas de poder. E se temos diferenças entre todas as culturas, há uma similaridade atroz, que é justamente o patriarcado. Quando falamos de um matriarcado, a gente só se refere a culturas muito antigas e muito pequenas e que se você pensar no aspecto geral, o matriarcado nunca existiu, de fato. O que existiu foi o patriarcado e a opressão.
Então, temos muito mais semelhanças do que diferenças. Eu acho que nossa grande diferença, e por isso a sapiência de escolher o carnaval, é justamente as nossas contradições. O homem cordial brasileiro não é nada cordial, somos violentíssimos.
Essa imagem do homem cordial, que está de braços abertos, se divertindo…esses corpos seminus que, aparentemente, parecem ter toda liberdade dentro do carnaval, de extravasar, é algo que só pode ser permitido em quatro dias de carnaval. No resto do ano, sabemos como as coisas funcionam.
Então eu acho que a gente transitou por essas similaridades e tentou encontrar algo dentro de uma festa muito popular, que pudesse simbolizar essa contradição brasileira, não na sua integralidade, porque eu acho que é impossível, mas pelo menos alguns aspectos. A gente tentou apontar essas contradições.
Falando um pouco sobre a tua carreira, você teve recentemente um outro trabalho de muito sucesso também para o streaming, na Netflix. Esse modelo de reprodução virou um dos principais meios de produção audiovisual no mundo todo. Ele tem tomado o espaço dos cinemas tradicionais?
Olha, eu acho que existe essa impressão, toda vez que chega alguma coisa nova existe, de que ela tomará o lugar de outra coisa, já estabelecida. Eu me refiro muito a isso quando a gente está pensando, por exemplo, no surgimento do cinema. Todo mundo dizia: "agora os teatros vão esvaziar, não vai ter mais teatro, só vai ter cinema". Ou até quando vem a guitarra elétrica pra música brasileira, "agora a guitarra elétrica vai acabar com a música brasileira".
Eu tenho uma visão um pouco diferente. Eu acho que ninguém toma espaço. Óbvio que nós temos uma crise, principalmente no Brasil, das salas de cinema, que é algo grave. Mas essa crise não vem com os streamings, é algo que vem anterior a essa explosão, já faz muito tempo que nós temos essa dificuldade de abrir novas salas, de sustentar essas salas de rua mais populares, com exceção aos cinemas que estão dentro de shoppings, onde você já está compelido a comprar e comprar e comprar.
Essa é uma crise que a gente tem por causa do nosso país, do investimento na cultura, coisas que abalam todas as artes. Mas eu tenho uma visão de que, não, a experiência coletiva do cinema nunca vai morrer, porque é muito diferente você assistir…e nem só por causa do tamanho da tela e a qualidade do som, é algo que o cinema pode proporcionar. Essa experiência coletiva é muito importante e as pessoas sentem falta dessa experiência, de estarem juntos, assistindo ao mesmo tempo, uma obra.
E ao mesmo tempo, os streamings estão sendo ótimos para nós, profissionais de audiovisual. Eu acho que, no Brasil, nunca se produziu tanto. Nós temos uma produção com muito volume e de muita qualidade também para essa variedade de plataformas e formatos, de invenção de formatos, que a gente tem.
Não digo que eu sou otimista, porque eu também não sou boba. Mas eu acho que vai ser muito bom poder ter, numa tela de computador, um acesso a um produto que talvez você não pudesse chegar até ele de uma outra maneira. É por isso que é tão importante democratizar a internet, levar para as escolas, para o Brasil profundo, para além das capitais, para além dos grandes centros urbanos assim.
E dá pra gente fazer séries, coisa que no cinema a gente não consegue fazer, a gente tem que contar a história em 120 minutos ou um pouquinho mais, um pouquinho menos. No streaming, a gente pode fazer um trabalho seriado, que também é muito importante.
Você falou uma coisa interessante, sobre a gente ter uma profusão de produções brasileiras, sejam séries ou filmes. A gente teve, nos últimos dois anos, uma série de filmes premiados em festivais internacionais, uma exposição da arte brasileira para o mundo, apesar de o momento da gestão artística do país estar muito abaixo do que se esperava, mesmo com o que a gente já sabia que viria de 2018 pra cá. Como as produções, os streamings, as produtoras, conseguiram driblar esse grande problema de falta de gestão governamental para área do audiovisual?
Eu boto muita fé nos artistas e nos realizadores brasileiros. Não tenho nenhuma síndrome de vira-lata. Não acho que ninguém é melhor do que a gente. Também a gente não é melhor que ninguém, mas ninguém é melhor do que a gente em termos de capacidade técnica, em termos humanos. Eu boto muita fé na arte brasileira.
Eu acho que a gente só conseguiu resistir a essa maré que bagunçou muitas coisas e que deixou muitas coisas à deriva, justamente pelo talento dos nossos profissionais, a raça e a força de vontade de fazer acontecer. Como também sou do teatro, vejo isso lá também, assim como vejo no audiovisual.
A gente tem, claro, um sucateamento, um perrengue muito grande, que não precisava ser assim. Não temos nem mais ministério, como você bem disse, nem tampouco gestão. E o que tivemos de gestão, nós vimos para o quê ela servia, assustadoramente. Mas eu acho que a gente está conseguindo resistir, porque a gente está produzindo, está fazendo e não vai parar de fazer.
Os caras têm medo de nós e não é à toa, tem que ter mesmo. Os primeiros a ir no paredão são os artistas. Que aí você para de falar, para de representar, para de contar histórias. Mas a gente tá aqui, a gente vai contar a nossa história, somos frutos do nosso tempo, vamos resistir como muitos de nós, como muitos já resistiram antes e resistirão depois.
A gente faz parte de uma linhagem, tem muita gente que veio antes e tem que preparar o terreno para quem vem. E as nossas elites, que eu não chamo de elite - porque como diz o Emicida, elite é uma coisa que é boa, a nata é uma coisa boa - as pessoas com mais poder aquisitivo precisam ser educadas também, porque elas são muito mal educadas. Elas não sabem o que é o Brasil e a cultura brasileira. Elas têm essa síndrome de vira-lata, esse olhar sempre pra fora. E nós vamos ter que mudar isso.
Vi você comentando sobre a responsabilidade dos artistas em um período político como esse que a gente vive. Há quem fique em cima do muro, não queira se posicionar, mas você acredita que é importante que o artista tome um lado, que se manifeste, inclusive coloque seu trabalho a serviço desse todo político?
Eu acredito que é necessário que o artista se coloque, porque eu acho que é necessário que todos se coloquem. Entretanto, existe uma diferença numa obra dramatúrgica, seja ela para o audiovisual ou para teatro. Uma obra dramatúrgica é uma guerra de forças antagônicas. Ela precisa ser.
Se você, ao invés de fazer dramaturgia, faz um manifesto, você não mostra a contradição. E se você não mostra a contradição, você está mentindo. E se você está mentindo, você está longe da arte. Porque a arte não precisa ser sobre a realidade, mas ela é sobre a verdade, ou pelo menos a busca da verdade - talvez a verdade a gente nunca tenha acesso, mas a busca da verdade.
Então, como artista sim, mas a obra, quando contada uma história, é necessário que se crie as contradições de todos os lados. Senão, você não está falando do ser humano como ele é. Você está fazendo uma obra maniqueísta, você está chegando perto do manifesto. Não há nenhum problema em fazer um manifesto. Apenas chame-o do nome que tem. É um manifesto.
Agora, quando você está falando de dramaturgia, é muito importante que o artista possa se posicionar, mas ele não pode esquecer que todos são seres humanos. Não existem monstros, seres humanos são capazes de atitudes monstruosas. Mas não existem monstros. Todas as pessoas nasceram, foram crianças, brincaram.
Aí existem os psicopatas, existem pessoas com patologia, de verdade. Mas a maioria de nós não é psicopata ou tem uma patologia, a maioria de nós só é humana, falha, contraditória. Então, eu acho que isso é muito importante de ser levado em conta em uma obra dramatúrgica.
A tua carreira, como você citou, vai do teatro ao cinema. São produções que você faz de maneira simultânea, ou você precisa virar alguma chavinha pra poder acessar um e o outro?
Não tem divisão, é tudo borrado. Eu não tenho hobby, Zé, nem de seda e nem uma coisa que eu gosto de fazer - eu gosto de correr, na verdade, que é bom pra escrever, uma espécie de meditação ativa. Mas meu hobby, minha paixão, o que eu gosto mesmo de fazer é produzir, é criar histórias, é inventar histórias, seja pra onde for, pra quem for.
Eu começo no teatro, é a minha primeira casa, com certeza. E eu começo ainda criança, uma história bem clichê daquela criança exibida que gosta de fazer teatro e escreve as próprias peças e tortura seus amigos pra que façam essas peças junto - eu ainda estou torturando meus amigos até hoje fazendo as coisas.
Então, tornei a minha grande brincadeira, a minha profissão. Tenho muita sorte de fazer algo que me dá tanto prazer, me enlouquece também, trabalha-se muito. Porque você tem que fazer várias coisas ao mesmo tempo, para que os boletos não fiquem empilhados na sua escrivaninha. Mas para além dos boletos, que é uma realidade para todos, só tenho muita sorte de fazer algo lúdico que me dá muito prazer.
Mas não tem chavinha. Assim como também não tem chavinha entre a minha vida e o meu trabalho. É meio que isso, estou sempre pensando em deixar alguma coisa boa, no sentido do belo, para quem vem assim. Como eu não quero morrer, então eu quero fazer alguma coisa pra ficar por aí, mesmo quando não eu não estiver mais aqui.
Edição: Thalita Pires