'Curva pra direita, Zé', 'olha a esquerda', 'olha uma vaca na beira do barranco'
O meu amigo Zé Alencar nunca foi cego de tudo. Ele sempre dizia:
— Sou cego só de um olho... o outro é de vidro.
Tinha mesmo um olho de vidro. E pro outro, que dizia que era cego porque enxergava pouco, usava óculos com uma lente bem grossa. Mas quase ficou cego de verdade.
Precisou operar esse olho e ficou pior. O médico errou. Ficou com uma visão de 5% neste olho que era o único que enxergava. Depois a coisa melhorou um pouco. Usando um colírio especial e, ao mesmo tempo, lente de contato e óculos, enxergava um pouco mais.
No tempo que estava com esses 5% de visão resolveu mudar de São Paulo e passar a escrever livros, usando o que podia da vista.
Decidiu que São Luiz do Paraitinga seria um bom lugar para isso. Era uma cidade bonita e calma. Ainda não tinha festas como o Carnaval, que atrai muita gente.
Um dia me chamou pra ir a São Luiz, ajudar a procurar uma casa para alugar, já que eu conhecia bastante gente lá.
De manhãzinha, saímos num jipe dirigido pela Guida, companheira dele. Ele ao lado dela e eu no banco de trás.
Vimos algumas casas pra alugar, mas logo percebi que a Guida não estava nem um pouquinho a fim de mudar pro interior. Fingia que queria só pra agradar o Alencar.
Aí propus que em vez de ficar procurando casas, a gente fosse passear um pouco. Uma boa alternativa seria ir até a cidade de Cunha. Toparam. Cunha fica a uns 80 quilômetros de distância.
Na época, a estrada só tinha 25 quilômetros de asfalto, até a cidade de Lagoinha. O resto era de terra batida. Tomamos uma cerveja lá e pegamos essa estrada. Mal saímos da cidade, a Guida virou-se para o Alencar:
— Quer dirigir um pouco, Zé?
— Quero! Tô com saudade de dirigir...
Achei que estavam brincando. Não estavam! A Guida parou o jipe, deu a volta para sentar-se no lugar do Alencar enquanto ele pulava para o lugar dela.
Foi feito vaca braba pela estrada, a gente gritando “curva pra direita, Zé”, “olha a esquerda”, “olha uma vaca na beira do barranco”. E assim fomos até Cunha.
Imaginem a minha situação! Viajei mais de 50 quilômetros numa estrada de terra, num jipe conduzido por um cara que não enxergava quase nada, com a gente gritando o que ele tinha que fazer.
Olha... ele era só meio cego, mas eu fui doido de tudo pra topar viajar assim. Quem toparia uma aventura dessas?
*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Gomes