Uma provável vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais daria força ao movimento progressista na América do Sul e terminaria com o isolamento da Venezuela na região. Essa é a opinião de especialistas venezuelanos consultados pelo Brasil de Fato na semana que antecede o primeiro turno do pleito brasileiro.
Para o cientista político Charles Giuseppi, a normalização das relações diplomáticas da Venezuela com vizinhos sul-americanos passa não apenas pelo retorno de partidos de esquerda ao poder, mas também pelo resgate de organismos de diálogo como a Unasul e a Celac.
“Lula representa a última peça de uma equação continental necessária e urgente para reequilibrar as forças na região. Eu acho que ele terá um papel determinante porque vai permitir que a Venezuela volte aos esquemas de diálogo continental, mas além disso deve levar ao resgate da Unasul e, mais importante, da Celac”, disse.
Nos últimos anos em que a Venezuela enfrentou uma das piores crises econômicas da história, o país acabou excluído de instâncias regionais de diálogo. O movimento foi encabeçado por governos de direita da região que haviam chegado ao poder em países como Argentina, Chile, Equador e Brasil.
A estratégia, que também contou com apoio ativo do ex-presidente colombiano Iván Duque, culminou na criação do Grupo de Lima, entidade criada para pressionar e forçar a saída de Nicolás Maduro da presidência venezuelana. Além disso, todos esses países deixaram de reconhecer o governo do chavista e passaram a apoiar o ex-deputado Juan Guaidó em sua tentativa de criar um “governo paralelo” na Venezuela.
Caracas, por sua vez, passou a procurar apoio em potências emergentes, como Rússia, China e Irã. Ao mesmo tempo, buscou dialogar com a oposição interna de direita, chefiada por Guaidó e apoiada pela Casa Branca de Donald Trump e pelos direitistas sul-americanos.
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Hoje, após o “presidente autoproclamado” perder força e o presidente norte-americano Joe Biden considerar a eliminação de algumas sanções em busca do petróleo venezuelano, Caracas deve ter mais poder de negociação nos diálogos. Para Giuseppi, um possível governo de Lula no Brasil poderia ter um papel importante na mediação desses conflitos internos e externos da Venezuela.
“Eu consigo ver Lula mediando esses conflitos, mas quem eu não vejo sentado em uma mesa de negociação é o governo norte-americano, porque ele não quer uma América Latina unida. Lula e Maduro querem, mas os Estados Unidos querem evitar a construção de canais de comunicação próprios da região”, afirmou.
Retorno ao Mercosul e retomada comercial
Giuseppi ainda disse acreditar que uma das primeiras medidas de um provável governo de Lula que beneficiaria a Venezuela seria permitir o retorno do país ao Mercosul. A entrada no bloco ocorreu em 2012, ainda durante o mandato do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, mas em 2016, após o impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, o país teve todos os seus direitos e obrigações suspensas.
“O resultado das eleições poderia mudar essa situação, porque a Venezuela traria um equilíbrio ao Mercosul, que é um bloco caracterizado pelas assimetrias. Há países muito grandes, como Argentina e Brasil, que têm que fazer comércio com economias pequenas, e a presença da Venezuela significaria um equilíbrio entre esses países por ser uma economia mediana, com grande poder de exportação, principalmente de petróleo e de gás”, disse.
O especialista também destacou a importância da reativação comercial bilateral entre Brasil e Venezuela, que alcançou níveis históricos durante os governos de Lula e de Chávez, mas que foi muito afetado pelo afastamento iniciado em 2016 no governo de Michel Temer e pelo rompimento de relações empreendido pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, em 2020.
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Entre 2003 e 2006, as exportações brasileiras à Venezuela passaram de US$ 600 milhões para US$ 3,55 bilhões. O pico das vendas do Brasil ao país vizinho foi registrado em 2008, quando as exportações atingiram a marca histórica de US$ 5,13 bilhões. Já entre os anos de 2014 e 2017, o índice passou de US$ 4,56 bilhões para US$ 469 milhões, níveis mais baixos dos que os registrados no primeiro ano do governo Lula.
“A normalização de relações entre nossos países mudaria também a dinâmica econômica bilateral, que há 15 anos alcançava um intercâmbio comercial inédito. Então é óbvio que o retorno de Lula significaria não só o restabelecimento de relações diplomáticas, mas também a reativação de relações econômicas”, afirmou Giuseppe.
A Venezuela ‘queima’
Apesar de avaliar o cenário como positivo para a Venezuela, o sociólogo Ociel López, professor da Universidade Central da Venezuela (UCV), não aposta em uma mera repetição dos laços como foram estabelecidos há 20 anos e diz que a estratégia que deverá hegemonizar as diplomacias de governos progressistas na região será o pragmatismo.
“O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, se moveu muito mais rápido do que imaginávamos e está agindo com muito pragmatismo frente aos temas de reabertura de fronteira e retomada de relações. É possível esperar de um provável governo Lula algo parecido, para além das identificações ideológicas que os governos possam ter”, afirmou.
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Para López, a proporção que a crise venezuelana adquiriu nos últimos anos, aliada à pressão e aos ataques da direita latino-americana, converteu a Venezuela em um fator de desestabilização no debate interno em outros países, o que poderia reforçar a ideia de uma reaproximação pragmática entre Brasília e Caracas.
“A Venezuela queima, ou seja, quem se mete no tema venezuelano, por bem ou por mal, termina queimado, as pessoas não entendem o problema, não entendem a temática. O próprio presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, teve que se afastar um pouco da Venezuela porque a aproximação não foi tão fácil como ele acreditava. As condições para a normalização de relações com a Venezuela estão dadas, mas temos que esperar, temos que ser muito cautelosos inclusive com Lula, com Petro e com López Obrador no poder”, afirmou.
Entretanto, o professor não nega os impactos que uma vitória da esquerda nas eleições presidenciais brasileiras teriam no país vizinho, principalmente para as relações de Caracas com Washington, que se tornaram mais tensas ao longo dos últimos anos.
“Para a Venezuela, o triunfo de Lula seria uma espécie de colchão que amorteceria os golpes e sobretudo as ameaças que vêm de fora, mas isso também pode mudar a depender do que aconteça nos Estados Unidos, principalmente depois das eleições de meio mandato”, disse.
Edição: Arturo Hartmann