Os nossos corpos vão agradecer a nossa alma também
Kelma Zenaide cresceu vendo o avô preparar as comidas de casa. Assim como outras famílias que cresceram no Quilombo de Pinhões, em Santa Luzia (MG), seu quintal era repleto de porcos e galinhas.
O avô chegava do trabalho, pegava um pilão de madeira, e macerava pimenta, cebola roxa, e temperava as carnes para cozinhar no fogão a lenha.
"Outra coisa muito interessante também que meu avô trazia e que é muito da região era cansanção. Folhas de cansanção que é a urtiga, uma folha que queima. E se socava ali também, usava no pilão e tirava o sumo daquela folha e se cozinhava costelinha de porco. Então são alguns elementos e tecnologias, formas de se preparar, que a culinária afro-brasileira nos apresenta", lembra Kelma.
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A culinarista hoje coordena o restaurante Kitutu, que desde sua criação, busca levar afeto às pessoas por meio das tecnologias ancestrais de matriz afro-brasileira.
"Algumas pessoas acham que eu trabalho com culinária africana. Eu trabalho com a questão da diáspora. Então tem muitas papas também. Eu trabalho muito com milho branco e com dendê também que não tem plantação em Minas Gerais. Mas eu trabalho muito com isso por quê? Porque é esse resgate mesmo do que vem do outro continente, dessa transformação que a gente faz aqui e vai utilizando porque o nosso corpo pede, porque o DNA sente essa falta do que a gente carrega do outro lado", explica.
Para a psicóloga e amante do Kitutu, Larissa Amorim, refletir sobre a soberania alimentar a partir dos quilombos é mais do que fundamental em um momento que boa parte da população brasileira volta a passar fome.
"Nas famílias negras brasileiras a possibilidade da gente compartilhar o alimento, da gente se nutrir definiu e ainda hoje define a nossa sobrevivência. Então alimentar também é um ato de amor, de resistência. É um ato de sobrevivência que vem sendo transmitido entre as gerações das famílias negras. Então para a gente a cozinha tem centralidade" afirma a psicóloga.
O Kitutu hoje não tem um espaço físico, trabalha com eventos sociais e corporativos. Alguns pratos mais comuns, e que vem dos antepassados de Kelma, são o frango ensopado, o macarrão com urucum e o tutu de feijão, servido com ovos cozidos e cebola em rodelas. Essa combinação é típica das festas de casamento e de congado.
Para Kelma, a preservação dos alimentos orgânicos, dos grãos e das sementes crioulas, como o angu, o fubá e a farinha de mandioca, é uma forma de resgatar a saúde física e mental que antes era vivenciada nos territórios quilombolas.
"É importante a gente olhar para os nossos descendentes. E olhar para os nossos ancestrais e pensar em que tipo de alimentação a gente vai fornecer. Quanto mais a gente volta para pra terra e pensa nessa terra uma produção que seja sem agrotóxico, o melhor possível de uma criação mais saudável, os nossos corpos vão agradecer a nossa alma também", ressalta Kelma.
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O Quilombo de Pinhões, localizado em Santa Luzia, na Grande Belo Horizonte, tem mais de 300 anos de histórias e tradições culturais. Formada por descendentes de negros ecravizados, a comunidade hoje é o lar de 400 famílias, que ergueram moradias na região após a lei da abolição ser promulgada, em 1988.
Edição: Daniel Lamir