O anúncio da mobilização e a anexação de novos territórios ucranianos à Federação Russa criaram um cenário imprevisível de escalada do conflito e aumentaram os riscos da ameaça do uso de armas nucleares por parte da Rússia.
A Rússia entrou em uma nova fase de escalada na guerra da Ucrânia. Após o início da contraofensiva ucraniana em setembro, retomando uma série de territórios na região de Kharkov, Moscou reagiu e anunciou, em 21 de outubro, uma mobilização parcial dos cidadãos russos para a guerra, que prevê a convocação de 300 mil reservistas para o conflito.
Ao mesmo tempo, o presidente russo, Vladimir Putin, determinou a realização de referendos sobre a adesão à Rússia nos territórios ucranianos de Kherson e Zaporozhye, bem como nas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk. Nesta semana, Putin oficializou os últimos protocolos sobre a anexação destes territórios à Federação Russa.
Não é por acaso que esses movimentos do Kremlin tenham sido acompanhados por uma série de declarações de autoridades russas evocando a possibilidade de uso de armas nucleares em caso de ataques contra territórios russos.
Em um pronunciamento na televisão na semana passada, Putin afirmou: “Se a integridade territorial de nosso país estiver ameaçada, sem dúvida usaremos todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e nosso povo. Isso não é um blefe”. Em uma manifestação de apoio à anexação dos territórios ucranianos na última sexta-feira (30), em Moscou, Putin citou os EUA, afirmando que eles “criaram um precedente” para ataques nucleares nos atentados de Hiroshima e Nagasaki na Segunda Guerra Mundial.
Já o ex-presidente e vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev, foi mais explícito, dizendo que a Rússia tem o direito de se defender e pode atacar a Ucrânia com armas nucleares, se for “forçada”.
O cientista político Pavel Usov, em entrevista ao Brasil de Fato, destacou que a ameaça nuclear é um mecanismo de barganha da Rússia em um contexto em que o país vem sofrendo derrotas no campo de batalhas, perdendo territórios no leste da Ucrânia que foram controlados por suas tropas no início da guerra.
“Isso está ligado ao fato de que a Rússia não pode perder esta guerra. Não exatamente a Rússia, mas Putin não pode perder essa guerra, porque a derrota de Putin nesta guerra significaria a queda de seu regime e o regime de seu poder particular, bem como do seu círculo próximo que o impulsionou. É claro que nessas circunstâncias, estou certo de que o Kremlin fará uso de todos os recursos que não permitam uma completa derrota da Rússia na guerra”, afirmou.
De acordo com ele, todos esses mecanismos – a mobilização, anexação de novos territórios, ameaças de armas nucleares – são utilizados pela Rússia “como uma forma de influência psicológica” sobre o Ocidente para que, dessa forma, possa “forçar os países europeus, e em menor grau os EUA, a sentar à mesa de negociações, e sob a ameaça de uso de armas nucleares, forçar todos a congelar esse conflito no estágio atual em que ele se encontra”.
A doutrina militar russa permite o uso de armas nucleares se foi identificado um risco da "existência do Estado estar em perigo". Assim, ao declarar as regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporozhye e Kherson, que estão em disputa militar, como parte da Rússia, o Kremlin pode enquadrar qualquer êxito militar da Ucrânia como uma ameaça à "integridade territorial" da Rússia.
Reformulação da guerra
Durante uma manifestação de cunho nacionalista organizada pelo Kremlin em apoio à anexação dos territórios de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye, à Federação Russa, em Moscou, na sexta-feira (30), o presidente Vladimir Putin discursou falando de uma luta do país “pelo território russo, pela Rússia”.
O cientista político Pavel Usov observa que houve uma reformatação na agenda referente ao conflito por parte de Moscou. Segundo ele, não se trata mais de uma “libertação dos territórios ucranianos de fascistas e nazistas”, mas agora é “uma libertação das terras russas e do povo russo”. “Ou seja, vira uma "guerra santa", e com isso buscou-se um aumento da motivação entre os russos no plano da mobilização”, acrescenta.
“E isso deveria representar uma demonstração de vitória, de que não foi uma luta à toa, pois territórios foram anexados. Então esse regime sustenta a sua legitimidade apenas pela demonstração de ampliação do seu espaço geopolítico. E essa ampliação deve ser um sinal de que ‘nós não perdemos essa guerra’, independente do fato de que, após a anexação, as tropas ucranianas libertaram mais de 20 assentamentos no avanço sobre Lyman”, destaca o analista.
Após o anúncio do início da contraofensiva da Ucrânia em setembro, o país continuou a reconquistar terreno no campo de batalha contra a Rússia. Na última semana foi declarada a retomada do controle de uma vila estrategicamente importante na região sul de Kherson, forçando as tropas russas a recuar da linha de frente.
O cenário que a Rússia busca promover, portanto, é de que a anexação de novos territórios representa uma vitória geopolítica. Com isso, é esperado um efeito tanto externo quanto interno. Externamente, a Rússia fixa certos objetivos para conseguir sentar-se à mesa de negociações e barganhar condições favoráveis para terminar a guerra. Internamente, há uma construção de narrativa para legitimar uma operação militar que se prolonga há mais de sete meses e arrasta centenas de milhares de jovens russos para a guerra.
A pesquisadora da Fundação Carnegie, Tatiana Stanovay, em um artigo publicado pela revista Foreign Affairs, aponta que a anexação dos novos territórios pela Rússia "transformou artificialmente sua guerra de destruir a Ucrânia como um Estado independente em uma guerra de autodefesa contra forças militares estrangeiras".
Com isso, segundo a analista, as ameaças militares às posições russas na Ucrânia, com base nos erros de cálculo do Kremlin, "chegaram ao ponto em que o Kremlin efetivamente emitiu um ultimato ao mundo: ou a Rússia vence a Ucrânia ou recorrerá à escalada nuclear".
Resposta do Ocidente
O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, por sua vez, reagiu às ameaças russas, prometendo "consequências graves para a Rússia" em caso de uso de armas nucleares.
“A retórica nuclear do presidente Putin é perigosa, é imprudente. A Otan está, é claro, vigilante, monitoramos de perto o que a Rússia faz. A Rússia deve entender que uma guerra nuclear nunca pode ser vencida e nunca deve ser travada e terá graves consequências para a Rússia se usar armas nucleares”, disse.
Já o presidente dos EUA, Joe Biden, também fez uma declaração enfática na última quinta-feira (6), sobre os perigos das ameaças nucleares do presidente russo, Vladimir Putin. Segundo ele, “pela primeira vez desde a crise dos mísseis cubanos, temos uma ameaça direta do uso armas nucleares se de fato as coisas continuarem no caminho que estão indo”.
Ao comentar a possível reação do Ocidente no caso de um ataque nuclear tático na Ucrânia por parte da Rússia, o cientista político Pavel Usov observou que a resposta não deve ser com armas nucleares. Segundo ele, por todos os parâmetros, não seria um ataque contra um país da Otan, mas um ataque contra o território da Ucrânia.
O pesquisador destaca que um cenário já exposto por fontes da CIA e do Pentágono indica que, em caso de um ataque nuclear tático, os EUA poderiam eliminar a Frota do Mar Negro por armamento convencional, além da possibilidade de um ataque contra a frota do báltico no enclave russo em Kaliningrado. “E isso poderia encaminhar a guerra para uma Terceira Guerra Mundial”, alerta o cientista político.
Ao mesmo tempo, as autoridades norte-americanas afirmam que as chances de Putin usar armas nucleares ainda são baixas, não tendo ainda evidências concretas sobre movimentações no arsenal russo. No entanto, na medida em que Moscou possa sofrer novas derrotas no campo de batalha da Ucrânia, pode se impor a necessidade da própria sobrevivência do regime do Kremlin, aumentando o risco de medidas drásticas.
‘Excluir hoje a possibilidade do uso de armas nucleares táticas não é possível, infelizmente. Porque nenhum parâmetro racional sobre a tomada de decisão do governo russo e de Putin está funcionando. As decisões são tomadas não do ponto de vista dos benefícios e da racionalidade, mas exclusivamente do ponto de vista da sobrevivência do regime de Putin”, completa Usov.
Edição: Vivian Virissimo