As duas ideias eram grandes, assim como as outras que marcaram sua trajetória - como a criação, durante a ditadura militar que imperava em 1978, do bloco Afoxé Badauê em Salvador. Pois em outubro de 2018, pouco antes de ser brutalmente assassinado, mestre Môa do Katendê, como era conhecido Romualdo Rosário da Costa, estava às voltas com dois projetos. A produção de um disco em parceria com artistas de renome da música popular brasileira em torno da sua obra e, também, um documentário sobre sua vida.
Os planos foram bruscamente interrompidos, a facadas, na noite de 8 de outubro de 2018, um dia depois do primeiro turno das eleições que alçariam Jair Bolsonaro (PL) à presidência da República. A discussão política era justamente sobre isso, num bar no Dique Pequeno do Engenho Velho de Brotas, onde Môa nasceu, fez história e, naquela noite, morreu. O educador, compositor e percussionista, mestre de capoeira angola, do afoxé e da dança afro-brasileira foi assassinado pelas costas pelo bolsonarista Paulo Sérgio Ferreira de Santana.
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“Quando morre um capoeira / morto assim à traição / fica íngreme a ladeira / e mais pesado o caixão”, compôs Chico César, dias depois: “Mesmo que a gente não queira / trinca o dente e o coração / Môa nem de brincadeira / vamos te esquecer irmão”.
E não foi esquecido mesmo. Os projetos do disco e do filme seguiram e são lançados agora, no marco dos quatro anos da morte do mestre. Nas voltas que o mundo dá, a data chega em um contexto, de novo, de tensão política e de uma polarização eleitoral com ares de encruzilhada.
Raiz afro mãe
Criolo, BaianaSystem, Emicida, Chico César, Fabiana Cozza, GOG, Kimani, Lazzo Matumbi, Luedji Luna, Márcia Short, Mateus Aleluia Filho, Rincon Sapiência, Jasse Mahi (filha de Môa), Edgar, BNegão e Letieres Leite participam do álbum Raiz Afro Mãe. Produzido pela Mandril Áudio, as 14 canções foram disponibilizadas nas plataformas digitais nesta sexta-feira (7).
Depois do assassinato de Môa, nome fundamental da afirmação das origens africanas nos blocos de carnaval da Bahia, a Mandril assumiu o compromisso, como disse em nota, de “honrar seu sonho”. E, assim, “trazer a esse mundo as composições de um gênio”.
O legado de Môa em filme
Com cenas da trajetória de mestre Môa da década de 1970 até 2018, o documentário Môa, raiz afro mãe foi filmado em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. A pré-estreia do longa-metragem dirigido por Gustavo McNair, inicialmente para convidados, está marcada para o próximo dia 18 na capital paulista.
A produção da Kana Filmes combina imagens de arquivo, fotos de Pierre Verger e Arlete Soares, registros do surgimento dos blocos afro na Bahia com depoimentos de artistas, familiares e amigos do mestre. Entre eles, Gilberto Gil, Vovô do Ilê, Emilia Biancardi, Negrizu, Lazzo Matumbi e mestre Plínio Ferreira, do Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Sinhô. Ao lado de Plínio, mestre Môa fundou, em 1995, o bloco Amigos de Katendê em São Paulo.
“Do jeito que o Brasil está, como a gente está vendo aí, o que está segurando a força do povo é a cultura. Por mais massacre que tenha recebido, é a cultura que ainda se dá as mãos, que improvisa ali”, afirma mestre Môa, em entrevista que deu para o filme. “Tudo isso é proporcionado por essa herança africana que, por falta de entendimento e conhecimento foi deturpada, ignorada. Mas a gente vai mudando”, avalia Môa. E finaliza, quase profético: “Está na hora de vocês fazerem a parte de vocês. Certo?”
Assista ao trailer:
Edição: Vivian Virissimo