Uma onda de informações falsas sobre terras indígenas e quilombolas está assustando a população do interior do Rio Grande do Sul. A tática de amedrontamento não é nova com relação aos povos tradicionais, mas ganhou impulso nesse período eleitoral.
Entidades consultadas pela reportagem ressaltam que esse tipo de estratégia espalha o medo e acirra os conflitos, resultando na possibilidade de mais violência. Porém, é uma tática que resulta em frutos positivos para lideranças e políticos que colhem votos em meio a essa disseminação de notícias falsas.
Um áudio, por exemplo, que a reportagem do Brasil de Fato RS teve acesso, conta que determinado cidadão teria realizado uma reunião com o prefeito de uma pequena cidade da região Norte do RS. Nesta reunião, o prefeito teria alertado que estaria sendo requerido mais de 20 mil hectares de terra para demarcação para povos indígenas na região. Segundo o autor do áudio, isso faria "a terra indígena pegar toda a região. Vai acabar a cidade". A cidade em questão, segundo o IBGE, possui cerca de 290 quilômetros quadrados.
Além disso, no áudio compartilhado, o autor pede que os destinatários da mensagem ajudem "os amigos a votarem" em um deputado que "destinou muitas verbas para o município". Também fala com muita preocupação sobre as eleições presidenciais.
"Temos que eleger o Bolsonaro de qualquer jeito. Se ganhar o Lula, as casas onde pode morar uma família eles vão pegar, e se invadir, tu não vais poder entrar na justiça, simplesmente vai ter que aceitar, qualquer um vai poder entrar na tua propriedade e tu não vai poder fazer nada", diz o autor.
Área não tem sequer estudo concluído
De fato, o município citado no áudio possui em seu território uma terra indígena demarcada nos anos 1990, onde vivem cerca de 200 pessoas, numa área de aproximadamente 6 km².
Um especialista consultado pelo Brasil de Fato RS disponibilizou um levantamento de dados sobre as terras indígenas em processo de homologação, demarcação, estudo e reivindicação no RS. De acordo com estes documentos, o que existe, de fato, é uma solicitação formal de 2013 para a criação de um Grupo Técnico (GT) da Funai para estudar a ampliação da área.
A solicitação somente teve andamento em 2022, com uma portaria da Funai determinando a constituição de GT para "realizar estudos de natureza antropológica, etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental necessários à identificação e delimitação das áreas de ocupação indígena".
A partir disso, há um prazo de aproximadamente 4 meses para entrega de um relatório com essas informações. Ou seja, não há sequer relatório completo para aumentar o tamanho da terra indígena em questão. Além disso, não há como afirmar que o povo indígena da região esteja solicitando de fato 20 mil hectares.
Desinformação beneficia políticos e agronegócio
"O fato de os indígenas reivindicarem determinada quantidade de área, não significa que a área seja reconhecida. E, sendo reconhecida, não significa que seja na totalidade reivindicada", explicou o especialista consultado.
Ele ainda opina no sentido de ressaltar o fato do tema ter "incendiado" justamente em setembro, durante o período eleitoral, o que teria ocasionado a nova onda de informações falsas.
"Interessa ao chamado 'agronegócio' e seus representantes esquentar e politizar o tema, e não buscar solução, pois é uma das pautas que ajuda a eleger prefeitos e parlamentares", opina.
Estratégia para espalhar o medo
Roberto Antônio Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário, explica que esse tipo de mensagem visa causar pânico e medo na população, especialmente aquelas que mantém relação com as comunidades tradicionais e originárias.
"As informações falsas têm como característica jogar a população local contra comunidades indígenas, quilombolas e sem-terra. Este movimento propõe o conflito entre os pequenos", afirma.
Segundo Roberto, as lideranças locais precisam agir com serenidade e esclarecimento, para evitar que as mentiras contribuam para acirrar um ambiente de violência.
"O objetivo deste movimento político é a desarmonia e a desagregação gerada por uma máquina da mentira. Não há nenhuma movimentação indígena ou quilombola que vise retirar as pessoas de suas terras, casas ou trabalho", ressaltou Roberto.
Mentiras geram um caldo de ódio
Segundo o advogado Onir Araújo, da Frente Quilombola RS, os áudios que circulam em grupos de Whatsapp geram preocupação pela possibilidade de aumento de casos de violência.
“É grave essa situação, é um potencial de conflito muito grande. Já existe muito racismo em relação a indígenas e quilombolas, não só no Interior. Se criminaliza um pleito que está na Constituição Federal”, explica Onir.
O advogado afirma que a Frente acompanha os casos, inclusive informando Defensores Públicos, pois a situação envolve disseminação de calúnias e falsas informações, agravadas pelo fato de terem sido repassadas por agentes públicos. Reforça que a situação é preocupante devido ao cenário de violência política que vive o país, agravado pelo compartilhamento de notícias falsas.
“É um caldo de cultura muito complicado, esse áudio deve estar circulando entre os moradores dessa cidade, nossa preocupação é que isso potencialize agressões e violências contra os indígenas da região", alerta.
Na concepção de Onir, essa estratégia é uma forma de "terrorismo", na tentativa de estabelecer um "clima de guerra". Nesse sentido, as comunidades tendem a se voltar contra os grupos quilombolas e indígenas, que já são minoritários e que convivem com a sensação de insegurança.
"É importante que as autoridades tomem as devidas providências, assim como os partidos envolvidos, no nosso modesto entendimento, isso aí é também crime eleitoral. Há pressão em empresas, com o argumento de que vai falir, como se falou em relação ao município, de que caso se regularize as terras indígenas o município acaba. Isso pode ter um desdobramento grave, considerando essa polarização que tá colocada", alertou.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko