Há uma semana, o governo argentino é alvo de denúncias pelo despejo da comunidade mapuche Lafken Winkul Mapu em Bariloche, na província de Rio Negro, na Patagônia. Violência física, prisão, ação arbitrária e quebra de protocolos pintaram o panorama que tem mobilizado organizações de direitos humanos e provocou a renúncia de mais três ministros do presidente Alberto Fernández.
A operação foi realizada pela Polícia Federal e pela Gendarmeria (polícia militar argentina) durante a madrugada da última terça-feira (4). Cerca de dez famílias foram expulsas de seu território, considerado sagrado pelos mapuches.
Sete mulheres foram detidas sem apresentação de provas ou qualquer justificativa legal. A justiça determinou sigilo no processo e, até hoje, a defesa, assumida pela Gremial de Abogados, não teve acesso a provas ou às acusações que sustentem a detenção.
Uma das detidas é a machi da comunidade e a única em território argentino, uma autoridade espiritual que domina as práticas medicinais com plantas e cerimônias, figura extremamente importante para a tradição mapuche.
Do grupo de detidas, ainda há uma gestante em estágio avançado. Ela precisou ser dirigida ao hospital após a operação policial. Outras duas são mães e foram detidas com seus filhos, um bebê de um mês e outro de quatro. Nas primeiras 48 horas, não tiveram acesso a um advogado e ficaram incomunicáveis.
“Entraram e queimaram nossas roupas”, contou a machi Betiana Colhuan em uma gravação de áudio, na noite da detenção, antes de ser levada pelos policiais. “Bateram em nós, fomos maltratadas e há crianças perdidas na montanha. Informam que há ordem de disparar com bala de chumbo.” As crianças, que fugiram durante a operação, posteriormente foram encontradas.
As mulheres detidas foram deslocadas ao Presídio de Ezeiza, em Buenos Aires, a 1.600 km de distância de suas casas, sob o pretexto de que em Bariloche não havia prisão feminina.
A gestante foi a única detida que não foi deslocada a Buenos Aires. No sábado (8), o pedido de prisão domiciliar por parte da defesa foi concedido pela juíza responsável pelo caso, Silvina Domínguez.
"É surpreendente a decisão da juíza Domínguez, que sempre teve uma atitude garantista, que garante direitos", comenta um dos advogados de defesa, Eduardo Soares, ao Brasil de Fato. Considera este o que chamam de um caso armado.
"Apareceu um contêiner vazio da Gendarmeria queimado, e logo pessoas supremacistas racistas da comunidade se manifestaram. Essa comunidade de Bariloche é um lugar de muito racismo", ressalta.
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"O presidente da Junta de Vizinhos denunciou que [os mapuches] ocuparam seu território. A Justiça foi, não encontrou nada, mas armou este processo. Com este pretexto, a Justiça Federal entrou no território há uma semana, território este que estava protegido pela própria Justiça."
Sem saber as acusações das quais precisam defender as detidas, os advogados são também impedidos de ingressar no território do despejo. “Veja a arbitrariedade. O sigilo de justiça é um procedimento processual, previsto no Código Penal, mas para casos muito graves, como homicídio, narcotráfico, terrorismo”, pontua Soares.
Na segunda-feira (10), ao tentar entrar no local com alguns integrantes da comunidade mapuche, os advogados receberam como resposta gases lacrimogêneos das forças de segurança que estão no local. “Somos os defensores, temos que ver o lugar dos fatos, que provas coletaram. Nos corresponde. É o que se chama igualdade de armas”, afirma o advogado.
Violação de direitos humanos
As mães estão em prisão domiciliar com seus filhos, enquanto a machi e as outras três mulheres foram levadas de volta à Patagônia. Estão presas em dependências da Polícia de Segurança Aeroportuária (PSA) de Bariloche, e cumprem hoje o sétimo dia de greve de fome por seu direito à liberdade.
“Tudo o que aconteceu estes dias remete à história de nossos antepassados. Arrancados de seus territórios, humilhados, torturados”, relatou em gravação desta segunda-feira (10) uma das detidas pela PSA, referindo-se à prática colonial que obrigou milhares de indígenas a caminhar de pontos extremos do país até Buenos Aires.
"Ante el desalojo del día de ayer de la comunidad Lafken Winkul Mapu, en la zona de Villa Mascardi, insistimos en que la forma de dirimir los conflictos debe ser a través de una Mesa de Diálogo entre las partes y no con el recrudecimiento de políticas represivas" 🧵👇🏽 pic.twitter.com/g4MpD45j0k
— APDH ▪Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (@APDHArgentina) October 5, 2022
Este macabro histórico é o que nomeia uma cidade na província de Buenos Aires: Quilmes, local onde foi levado o exterminado povo indígena Quilmes, de Tucumán, à costa do Rio de la Plata, 1.500km a pé. Um castigo pelos anos de resistência dos originários ao avanço dos homens brancos na região nortenha do país. Dos 100 mil que partiram, chegaram 10 mil indígenas Quilmes ao destino.
Diversas organizações de direitos humanos se manifestaram na semana passada em uma marcha em Buenos Aires, denunciando a atuação da polícia federal e a omissão do governo nacional. Exigem a abertura de uma mesa de diálogo em lugar do uso da violência.
Referência das Mães da Praça de Maio - Linha Fundadora, Nora Cortiñas expressou seu repúdio pelo caso. “Negar que houve repressão é um ato falho. Não podem continuar negando a repressão: crianças foram maltratadas”, alegou. Neste sentido, viu “com satisfação” o gesto de renúncia de Elizabeth Gómez Alcorta, ex-ministra de Mulheres, Gêneros e Diversidade. “Finalmente, diante de um acontecimento assim, alguém renunciou.”
Renúncia da ministra de gêneros
Na sexta-feira (7), três dias após o despejo, a Ministra de Mulheres, Gêneros e Diversidade, Elizabeth Gómez Alcorta, apresentou sua renúncia ao presidente Alberto Fernández. A agora ex-ministra já havia expressado sua contrariedade à atuação policial contra os direitos das mulheres e das crianças mapuches em Villa Mascardi.
"Os acontecimentos de público conhecimento em Villa Mascardi, pelo despejo ordenado contra a comunidade Lafken Winkul Mapu, em que se produziram detenções de mulheres e crianças, com participação das forças federais, me resultam incompatíveis com os valores que defendo como projeto político", defendeu Alcorta, em uma dura mensagem ao governo nacional.
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Por sua vez, o Ministro da Segurança, Aníbal Fernández, defendeu a atuação das forças de segurança e negou o uso de violência. “As normas convencionais internacionais em direitos humanos obrigam satisfazer as demandas de interesse geral mediante o menor sacrifício possível das garantias individuais”, escreveu em sua rede social. “Essa foi a instrução política às forças de segurança, que cumpriram seu papel de maneira exemplar e realizando as medidas, provocando o menor dano possível.”
Ainda que não tenham manifestado motivo semelhante para justificar a saída, outros dois ministros seguiram a renúncia de Alcorta: Juan Zabaleta, da pasta de Desenvolvimento Social, e Claudio Moroni, do Ministério do Trabalho. Os novos nomes já foram designados, e a posse deverá acontecer na próxima quinta-feira (13).
Interesse em terras patagônicas
Os mapuches, comunidades originárias da região ao sul da Argentina e do Chile, vivem há anos com as investidas de extorsão de seus territórios dado o interesse de multinacionais e do próprio Estado em viabilizar projetos extrativistas, turísticos e imobiliários na região.
Na província de Rio Negro, em particular, foi onde se produziu o caso de Santiago Maldonado, em 2017, que ficou conhecido internacionalmente. O artesão, que foi acompanhar protestos contra projetos extrativistas em apoio às comunidades originárias locais, desapareceu após a operação da Gendarmeria contra os manifestantes, que bloqueavam uma estrada, em Chubut.
Sob forte pressão de organizações de direitos humanos, o corpo de Maldonado apareceu meses depois, no rio Chubut. A perícia concluiu morte por afogamento, o que não convenceu a família. Em resposta a dois recursos apresentados pela família, a Corte Suprema concluiu na semana passada que o caso continua aberto e que não há uma sentença definitiva sobre a morte de Maldonado.
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Foi também em uma operação contra o Lof Lafken Winkul Mapu que ocorreu o assassinato do mapuche Rafael Nahuel por um policial, com um tiro nas costas. Nahuel pertencia a outra comunidade mapuche, mas ajudava a levar comida e itens básicos a mapuches que ficavam ilhados no território após despejo, em Villa Mascardi.
Em 2017, sob o governo de Mauricio Macri e a gestão do ministério de segurança de Patricia Bullrich, foi lançada uma campanha de criminalização dos mapuches entre o governo nacional e os meios de comunicação massivos.
Desde então, foi iniciado um processo, chamado por Eduardo Soares de "caso-mãe", que engloba uma série de violações contra a comunidade Lafken Winkul Mapu em seu território recuperado.
"Eram procedimentos bem parecidos ao que vimos agora: gás lacrimogêneo, muita violência, separação de mães e filhos. Foi inclusive, pela violação de direitos das crianças que chegamos a este caso", conta Soares.
"Vínhamos ganhando todos os processos, e a audiência final seria, calculamos, no final deste ano ou no início do próximo", relata o advogado. "Este processo deveria determinar, em primeiro lugar, se houve um delito e, em segundo, se este delito é atribuível à comunidade mapuche. Estávamos quase certos que ganharíamos este processo. E acredito que eles também. Assim, adiantaram o despejo."
A primeira audiência pela prisão das mulheres mapuches foi realizada no sábado (8), e as detidas foram ouvidas pela juíza Domínguez. A defesa tampouco teve acesso ao conteúdo da audiência. Agora, aguardam os dez dias úteis após a audiência, previstos pelo Código de Procedimento Penal, para ter acesso ao conteúdo do processo em curso.
Edição: Thales Schmidt