O Supremo Tribunal Federal (STF) pode ser reformulado para se curvar a Jair Bolsonaro (PL) em um eventual segundo mandato. O próprio presidente ameaçou aumentar o número de ministros na Corte e foi seguido por parlamentares do seu entorno, que já falam em abrir investigações contra magistrados. Um cálculo eleitoral considerado arriscado por juristas e cientistas políticos ouvidos pelo Brasil de Fato, mas que mira atrair quem ainda flerta com a antipolítica no conturbado cenário político do país.
Fortalecido no Congresso Nacional, o atual presidente sabe que depende de uma virada sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para gozar de um Congresso bastante receptivo às suas ideias. Já no STF, as coisas podem ser mais difíceis, já que - em suas próprias palavras - ainda possui apenas dois ministros a seu favor.
Leia também: Ipec mostra estabilidade: Lula tem 54% dos votos válidos contra 46% de Bolsonaro
A almejada reconfiguração da principal corte do país, responsável por guardar a Constituição e inclusive em casos que envolvem presidentes da República, poderia ser conduzida de algumas formas. O jurista Lenio Streck, membro do grupo Prerrogativas, destaca o vínculo entre declarações lançadas como bombas durante as últimas duas semanas.
“O Ricardo Barros (líder do governo na Câmara dos Deputados) disse ‘tem que enquadrar o Supremo’, o (Hamilton) Mourão disse ‘tem que aumentar o número’ e o Bolsonaro disse que, ‘se o Supremo não baixar a temperatura’… são três coisas importantes, que somadas são muito graves. E mostram que, se o Supremo não baixar a temperatura, eles aumentam o número de magistrados”, aponta Streck.
Nesta sexta-feira (14), a nova investida contra Alexandre de Moraes, a quem já se referiu como “vagabundo” e “imbecil”, foi motivada por outra decisão do juiz que também é presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O mandatário do Palácio do Planalto acusou o ministro de agir em favor do vice de Lula, Geraldo Alckmin (PSB), por uma suposta ligação que viria desde que Moraes foi secretário de Segurança Pública no seu governo, em São Paulo.
O sociólogo Paulo Silvino Ribeiro, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), defende que o presidente “ora ataca, ora afaga” os magistrados como método de atuação dos últimos 4 anos. A intenção seria calibrar a sua conduta conforme as decisões proferidas, disfarçando suas manobras autocráticas com o uso de signos democráticos, como liberdade e direitos.
"Ele (Bolsonaro) está vilipendiando o STF, dizendo que não tem a capacidade de analisar, que todas as decisões são pessoais. Bolsonaro se coloca numa posição de vitimização como se ele, para a figura de Salvador da Pátria, de Messias, estivesse sendo tolhido, massacrado e perseguido por aqueles que, segundo ele, não querem o bem do país”, detecta.
O jurista Álvaro Jorge, professor da FGV Rio e autor do livro Supremo Interesse (2020), relembra que, em setembro de 2021, Bolsonaro chegou a dizer que não obedeceria mais as decisões do STF. Um discurso que já havia se espalhado em países “que têm sido considerados menos democráticos como Polônia, Hungria e Venezuela”.
“No mundo inteiro existe um movimento nos países onde se tem constatado uma diminuição do processo democrático, essa fórmula de se atacar o Judiciário. Tenta-se controlar não só o número (de ministro), mas fazer nomeações de ministros e outras intervenções. Essa tem sido uma fórmula que não é nova também no Brasil - já foi usada pelo Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945)”, exemplifica Jorge.
História é repleta de episódios de tentativas de interferência
Desde a primeira Constituição republicana do Brasil (1891), os postulantes ao cargo de ministro do STF devem cumprir alguns requisitos, como ser dotado de notável saber jurídico, ter reputação ilibada e idade acima de 35 anos. A nomeação é feita pelo presidente e depois precisa ser referendada pelo Senado para garantir autonomia e independência.
Álvaro Jorge lembra que o Brasil se inspirou na fórmula dos EUA, cuja inspiração remonta aos conceitos iluministas de configuração do Estado. “Quando Montesquieu imaginou lá atrás esse conceito de separação dos poderes, ele previa que a concentração de força na mão de uma só pessoa naturalmente levaria a um abuso do poder. Por isso, você precisa dividir o poder no Legislativo, Executivo e no Judiciário e que eles se controlem, se chocando, um controlando e eventualmente desautorizando o outro”, explica.
Streck relembra que, nos anos 1930, durante a efetivação de uma política nos Estados Unidos que ficaria conhecida como New Deal, Franklin Delano Roosevelt tinha suas intervenções na economia questionadas judicialmente. “A Suprema Corte era ultra liberal e cortava todo o embalo das iniciativas de Roosevelt. E o que ele faz? Ameaçou adicionar dois ministros, passando de 9 para 11. Esse impasse durou 167 dias e sabe como se resolveu? Dois se aposentaram, ele não precisou inflar a Corte para ter maioria”, descreve.
Ainda no país que, anos mais tarde, teria sua estrutura política chacoalhada por Donald Trump, Jorge cita outro episódio relevante, que remonta ao fim da década de 1960. “Quando (Richard) Nixon aceitou ser o nome do partido Republicano à presidência, uma das frases do discurso dele foi justamente de ‘frear o que as cortes vêm fazendo (..) e nós precisamos rever isso, apontar juízes que tenham uma visão mais restritiva e conservadora do direito’”, rememora.
Trazendo para o contexto brasileiro mais contemporâneo, o jurista acredita que o bolsonarismo cria o mesmo tipo de pressão sobre juristas, mas se valendo de um “problema” do STF atualmente: a tendência de julgar monocraticamente.
“Um ministro dá uma liminar pela manhã, outro suspende o processo porque pede vistas à tarde... Esse tipo de questão é o que faz o poder se apresentar como um conjunto de indivíduos pautados por visões políticas diferentes. (...) Dizer que tal ministro é o problema é mais forte do que dizer que o poder Judiciário é o problema”, teoriza Jorge.
Esquerda paga preço por preservar autonomia
Em 2015, quando ainda era presidenta mas com a popularidade já em baixa, Dilma Rousseff sofreu uma derrota no Congresso que a impediria de indicar 5 nomes ao STF. A PEC da Bengala, como foi eternizada, elevou a idade de aposentadoria dos ministros de 70 para 75 anos - uma demonstração de força do presidente da Câmara à época, Eduardo Cunha, e que sinalizaria para sua perda de prestígio no Parlamento.
Seu governo, interrompido pelos próprios congressistas em 2016, também seria marcado pelo início da operação Lava-Jato. À época, ainda não havia toda a carga midiática dos anos seguintes e nem a petista aparecia como investigada pela força-tarefa criada em Curitiba. Para Jorge, havia ali uma separação clara entre Poderes e grande autonomia dos magistrados.
“Se você olhar as decisões que foram tomadas pelos ministros (Luis Roberto) Barroso e (Edson) Fachin, elas desagradaram completamente interesses do partido da Dilma, que os havia indicado. Esse é um exemplo normal de funcionamento. Se você é nomeado para a Corte, o seu papel é outro, você não tem uma dívida a pagar e não é um brinquedinho de um presidente”, ressalta Jorge.
Streck também lamenta o que considera uma confusão criada por Bolsonaro, com forte vocação patrimonialista sobre instituições de Estado. “Nunca um presidente pode dizer ‘eu tenho lá dois ministros meus’. Isso é ruim para a Suprema Corte. Nenhuma Suprema Corte do mundo funciona desse modo. Já escrevi tantas vezes sobre o perigo da antipolítica. Tudo isso é produzido pela antipolítica e os outsiders que alimentaram esse ódio”, opina.
Segundo o jurista, a responsabilidade por esse cenário tem origem na inação da própria esquerda, que teria cometido erros e “desdenhado” da importância do Direito. “O lawfare (guerra jurídica) surge quando você se descuida do Direito e deixa a política fagocitá-lo. Aí você vai ser vítima disso e foi o que aconteceu: o Lula foi vítima do lawfare”, afirma Streck, fazendo referência ao uso do sistema jurídico como parte de uma estratégia contra adversários desempenhado pelo ex-juiz Sergio Moro e procuradores da Lava-Jato.
Para ambos os juristas, a tensão entre o Executivo e o STF escalou até o nível atual após decisões da Corte a favor da Ciência durante a pandemia da covid-19. Parte da sociedade reconhece que algumas medidas extremas, como os lockdowns, ajudaram a evitar um número ainda maior de mortes pela covid. Outra parte, se apegou aos ataques de Bolsonaro sobre o que passou a chamar de “ditadura da toga”.
Em guerra permanente também com a justiça eleitoral, a campanha de Bolsonaro atua nessa espécie de “revisionismo” sobre a tragédia recente no país, que vitimou mais de 680 mil pessoas. Uma postura, que misturada com ameaças a direitos de minorias, ao meio-ambiente e ao sistema democrático, ajudou Lula a atrair antigos adversários para o seu lado.
“Lula e Bolsonaro têm campanhas diametralmente opostas quanto a projetos e conteúdos pela democracia e, no caso do Bolsonaro, o que a gente tem são fake news alimentadas por esse mesmo espírito antidemocrático. É como se o desejo pela manutenção do que esses eleitores acreditam seja muito maior do que o desejo pela democracia”, encerra Ribeiro.
Edição: Rodrigo Durão Coelho