O dia do professor, celebrado no último dia 15, foi soterrado pela avalanche das eleições brasileiras, apesar de a Educação ter estado no último debate entre candidatos à presidência da República. Lula (PT) e Bolsonaro (PL) foram questionados, na noite do último domingo (16) sobre a defasagem educacional dos alunos durante a pandemia.
Grande parte dos alunos da rede pública de ensino no Brasil terão dificuldades em garantir a aprendizagem de conteúdos especificados nas grades curriculares, por conta do período em que as escolas permaneceram fechadas e, as crianças, por sua vez, não receberam as reposições necessárias para o prosseguimento das atividades escolares.
Para além da impossibilidade de que os alunos se conectassem à internet durante o isolamento, muitos professores apontaram a falta de auxílio e treinamento por parte do poder público, para lidar com esse momento especial.
Há, no entanto, educadores que carregam o espírito do professorado por onde caminham. É o caso do escritor - e professor - Jeferson Tenório. Ganhador do Jabuti de 2021 com o romance O avesso da pele, que conta a história do professor Henrique e seu filho, Pedro, que tenta resgatar as memórias do pai, enquanto se dá conta do racismo estrutural brasileiro.
O tema também é pano de fundo de outros dois romances do escritor, Beijo na Parede (2013) e Estela sem Deus (2018) - ficções que ajudaram a colocar Tenório no mapa dos grandes escritores contemporâneos do país.
“Eu acho que a sala de aula sempre me ajudou muito e talvez eu tenha me tornado escritor em função da sala de aula, das trocas que eu tive com os alunos, do ambiente escolar, das narrativas, das histórias que chegavam até mim, os problemas que surgiam e de toda a discussão também que se tem dentro do ambiente escolar”, explica Tenório.
Convidado desta semana no BDF Entrevista, o escritor tentou deixar as salas de aula do Rio Grande do Sul em junho do ano passado, onde lecionava aulas de português, para impulsionar a escrita de mais um romance. Mas a tentativa foi parcialmente interrompida por mais uma influência da educação em sua vida.
“Eu deixei a sala de aula, de fato, para acelerar um pouco a escrita do próximo livro. Mas no início desse ano eu recebi um convite pra dar aula aqui na Brown University (em Rhode Island, nos Estados Unidos) e estou de novo em sala de aula”, conta.
Mas erra quem pensa que o próximo romance ficará na gaveta. “E é muito curioso, porque o meu próximo livro se passa no ambiente acadêmico. Então, pra mim, está sendo uma experiência bastante importante estar, nesse momento, num outro país, dando aula sobre literaturas luso-africanas, escrevendo um livro que se passa num ambiente acadêmico”, diz o escritor.
Na conversa, Tenório fala também sobre a política de cotas nas universidades, o racismo estrutural brasileiro e o reconhecimento da intelectualidade negra nas últimas décadas, fruto das mobilizações e resistências do movimento negro organizado no país.
“Houve um avanço, no sentido de ter mais espaços de representatividade nesses lugares de prestígio como a academia, como um espaço de produção de conhecimento, produção de ideias e de reconhecimento também dessa produção intelectual negra, que por muito tempo não havia”.
“Isso permite que a gente consiga chegar de maneira mais contundente, mais forte e também mais coletiva, embora ainda ache que estamos no começo. Se a gente for olhar para toda a produção acadêmica, para toda a produção intelectual, a gente ainda tem uma produção muito branca, muito eurocêntrica, colonial”, completa Tenório.
A representatividade, alerta Tenório, também pode pregar peças aos desavisados. Segundo o escritor, é importante que ela esteja “alinhada com as pautas identitárias, com as pautas raciais e tudo isso que a gente vem reivindicando há muito tempo”.
“A representatividade também pode ser uma armadilha, porque se você tenta, de algum modo, ocupar esse espaço, que é um espaço de poder, de decisões, ele também tem que ser acompanhado de dois outros elementos, que é o saber e o ser. O saber é você ter um conhecimento epistemológico, um conhecimento mais aprofundado sobre as questões que te colocaram ali. E o ser que é de reconhecimento. ‘Bom, eu sou uma pessoa negra e, portanto, tenho aqui uma responsabilidade’. Então, não é uma mera representação”, afirma.
A destruição paulatina da Fundação Zumbi dos Palmares por nomes alinhados ao bolsonarismo é um dos exemplos citados por Tenório para falar de uma falsa representatividade. O bolsonarismo, explica o escritor, deixa um legado de destruição
“É uma destruição em todas as áreas que você possa imaginar, na área ambiental, na área educacional, na área de relações internacionais, nas pautas de gênero e de raça. É, assim, terra arrasada. A gente só não chegou no fundo do poço porque nós tivemos movimentos de resistência”, explica Tenório.
“E esses movimentos de resistência foram muito importantes para que a gente conseguisse ainda manter uma ‘certa democracia’. Eu digo uma ‘certa democracia’, porque um país em que mata pessoas negras, não é um país democrático”, completa.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Queria começar o nosso papo falando sobre o teu último livro, ganhador do Jabuti de 2021, o O avesso da pele, uma escrita fluida, linear, instigante. Mas um trecho me chamou a atenção e acho que resume muito do que é o livro, onde o Henrique, o pai, conversa com o filho, Pedro, e fala que “é necessário preservar o avesso, preservar aquilo que ninguém vê, porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo”. Essa é a ideia central do livro, Jeferson, entender como a cor da pele atravessa nosso corpo e determina a maneira como encaramos o mundo?
Jeferson Tenório: É, eu posso dizer que talvez seja um dos temas centrais, porque há ali uma série de discussões que vão desde a educação, passando pela violência policial, pelas relações familiares. E claro, também tem a ver com o título do livro, O avesso da pele. A ideia era também discutir o quanto o racismo estrutural incide na vida das pessoas negras e na subjetividade dessas pessoas negras.
Por isso essa conversa que o Henrique está está tendo com o filho de nove anos de idade, em que ele tenta explicar que a cor da pele, nesse ambiente racista que nós vivemos, no Brasil, é um fator determinante até do nosso modo de estar no mundo, no modo como nós atuamos, na sociedade, mas que é preciso preservar algo que esteja além disso, além da cor da pele. E por isso essa conversa que ele tem com o filho. É uma conversa muito difícil, dura, mas necessária.
E o Henrique vai tomando consciência do racismo aos poucos. Quando ele namora a primeira mulher branca, a relação com os familiares dela. Como é que foi esse amadurecimento também para você, Jeferson, no teu processo de entendimento do que era o racismo, do teu lugar no mundo. Como é que essas histórias se cruzam?
Eu acho que ela é, também, um pouco geracional, no sentido das discussões que nós temos hoje, dessa gramática antirracista que já é bastante disseminada hoje em dia. A minha geração, da população negra, não teve acesso com tanta facilidade, como a gente tem hoje. Eram pautas que, se existiam, estavam num lugar muito específico, talvez dentro da universidade, mas não era uma pauta social.
O modo como a minha geração foi se apropriando dessa gramática antirracista e dessa consciência racial foi de maneira bem paulatina, e até tardiamente também. Então, talvez seja um livro que represente também o quanto essa geração nascida na década de 1970, que vai passar os anos 1980 e os anos 1990, sem que essas pautas sejam abordadas.
É uma geração que vai viver essas violências e aos poucos é que ela vai se dando conta que essas violências tem a ver com a cor da pele, com o racismo estrutural. É um livro que representa, digamos assim, essa geração.
E hoje, nós temos uma grande linhagem de escritores e intelectuais negros que, a passos curtos foram se firmando e que as gerações anteriores, por exemplo, não tiveram contato, com essa literatura, com essa intelectualidade. Hoje nós temos Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Luiz Gama, Sueli Carneiro, Silvio de Almeida, mais recentemente, Djamila Ribeiro também. Todos têm um lugar reservado à intelectualidade. Eles não falam única e exclusivamente sobre racismo. Como é que você tem visto essa afirmação da intelectualidade negra?
Houve um avanço, no sentido de ter mais espaços de representatividade nesses lugares de prestígio como a academia, como um espaço de produção de conhecimento, produção de ideias e de reconhecimento também dessa produção intelectual negra, que por muito tempo não havia.
E isso é fruto também de lutas históricas, coletivas, comunitárias, dos movimentos negros, que começa lá na década de 1960, 1970, com vários intelectuais negros e negras e que possibilitaram que a gente pudesse chegar nos anos 2.000 com uma produção muito sólida referente aos estudos das questões raciais no Brasil.
E isso permite que a gente consiga chegar de maneira mais contundente, mais forte e também mais coletiva, embora ainda ache que estamos no começo. Se a gente for olhar para toda a produção acadêmica, para toda a produção intelectual, a gente ainda tem uma produção muito branca, muito eurocêntrica, colonial.
E a gente precisa ainda de alguns bons anos e de muitos outros intelectuais negros e negras ocupando esse espaço.
Eu conversei pouco tempo atrás com o Eloy Terena, um grande intelectual, acadêmico, indígena. E ele dizia que, na academia, ele era tido não como um acadêmico, mas como um ativista político. Em alguns momentos, isso também acontece com a questão racial?
Isso tem a ver com a mentalidade acadêmica brasileira, talvez da América Latina. Porque esse rótulo de ativista, em outros lugares como aqui nos Estados Unidos, ou na própria Europa, você tem intelectuais negros e negras, escritores negros e negras que se colocam como ativistas e isso não é um problema.
A gente tem, por exemplo, o James Baldwin, escritor norte-americano que se colocava como um escritor ativista e isso não diminuía o valor literário, ou o valor estético da produção intelectual dele. O que acontece no Brasil é justamente ao contrário, ou seja, o ativismo é um xingamento. Colocar uma pessoa como ativista, quer dizer que ela não produz conhecimento.
E me parece que é um erro a gente colocar, ou separar essas duas formas de produzir conhecimento, porque o ativista também constrói conhecimento, só que essa produção de conhecimento ela é mais direta, ela é política, é mais aparente. Você precisa comunicar de maneira mais direta com a população.
E é importante você exercer o ativismo político. Agora, quando isso é visto como sinônimo de diminuição de produção intelectual, aí a gente tem que parar tudo e dizer: “olha, a gente também faz o que vocês fazem, não é pelo fato de a gente aqui levantar a bandeira, que nós não produzimos conhecimento sério, rigoroso.
O avesso da pele ganhou o mundo, tem traduções em vários idiomas e vai virar filme também. Já tem data, pessoas envolvidas no projeto? Como é que está esse processo?
É um projeto que começou logo antes do livro sair, em 2020, quando ele teve os direitos comprados pela RT, do Rodrigo Teixeira. E, desde então, já houve movimentações pra ir atrás de diretores, roteiristas e, até onde eu sei, a última conversa que eu tive com o diretor, no mês passado, as gravações começam no ano que vem.
Ainda sem uma data, mas provavelmente vai ser ainda no primeiro semestre. Depois teremos a divulgação do elenco, da equipe que vai começar a fazer as filmagens. A equipe está bastante entusiasmada e eu acho que teremos coisas boas aí pela frente.
Você deve participar desse processo? Vai acompanhar?
Ainda não sei como vai ser a minha participação, mas talvez eu participe, pelo menos observando.
Assim como o Henrique, você é professor da rede pública de ensino e deixou as salas de aula para se dedicar integralmente à escrita. Você sente falta dessa rotina em sala de aula, é algo que você pensa em retomar no futuro?
Eu deixei a sala de aula em junho do ano passado e queria, de fato, acelerar um pouco a minha escrita do próximo livro. Mas no início desse ano eu recebi um convite pra dar aula aqui na Brown University e estou de novo em sala de aula. Agora como professor visitante, trabalhando com a minha pesquisa.
E é muito curioso porque o meu próximo livro se passa no ambiente acadêmico. Então, pra mim, está sendo uma experiência bastante importante estar, nesse momento, num outro país, dando aula sobre literaturas luso-africanas, escrevendo um livro que se passa num ambiente acadêmico.
Então acho que é um um momento bastante importante. Queria estar no Brasil agora, pra poder participar de todo esse processo eleitoral tenso. Mas tenho acompanhado tudo daqui.
Mas é interessante que você esteja escrevendo um livro sobre o ambiente acadêmico e na academia, dando aula, mesmo como professor visitante. Esse processo deve ser muito rico. Como ele te ajuda no processo de escrita? Vai apurando o teu texto de alguma maneira?
Eu acho que a sala de aula sempre me ajudou muito e talvez eu tenha me tornado escritor em função da sala de aula, das trocas que eu tive com os alunos, do ambiente escolar, das narrativas, das histórias que chegavam até mim, os problemas que surgiam e de toda a discussão também que se tem dentro do ambiente escolar.
Eu tive algumas experiências dando cursos em universidades, mas agora é uma experiência em que eu me coloco como professor universitário e as trocas começam a ganhar um nível de mais complexidade e, talvez, mais sofisticação. O que me ajuda a refletir melhor sobre as minhas certezas, sobre a minha própria produção.
E a academia sempre me ajudou a escrever ficção, desde o primeiro livro Beijo na Parede passando pelo Estela sem Deus, chegando no O avesso da pele, todos eles sempre estavam de algum modo amparados por discursos e argumentos das pesquisas que eu estava fazendo no momento. Eu não consigo separar muito bem a teoria da ficção, tanto que o meu doutorado é uma mistura dos dois, é ficção mas também é teoria
Você entrou na universidade pela política de cotas e inclusive tem acompanhado o programa de alguma maneira, documentando alunos cotistas. Como essa política transformou o teu destino e como você tem acompanhado seus êxitos até aqui?
Bom, ela foi fundamental para que eu pudesse seguir a minha vida acadêmica. Sempre foi uma vida bastante acidentada, no sentido de não ter muito tempo para estudar, e o vestibular é uma grande barreira para que você consiga ter um ensino de qualidade. Então, foi um momento muito importante e crucial na minha vida, pra que eu pudesse seguir a vida acadêmica.
Eu já havia desistido de continuar e as cotas vieram pra que eu seguisse. E o que eu tenho visto é uma mudança bastante significativa dentro da universidade pública, ainda não é o ideal, mas a gente sabe que ela está muito mais diversa, muito mais colorida, principalmente nos cursos de humanas, onde você percebe que as discussões giram em torno das questões raciais.
Os programas dos cursos também estão mudando. Você tem uma demanda do colegiado acadêmico, dos alunos negros pedindo outras bibliografias, outras epistemologias e isso reflete depois na sociedade.
O fato de nós termos Itamar Vieira Júnior, Paulo Scott, Cidinha da Silva, Ana Maria Gonçalves, todos esses escritores negros e negras, também é fruto dessa demanda acadêmica, porque ela é um lugar de validação do que é bom e o que não é, o que deve ser lido ou o que não deve ser lido. Então, acredito que as cotas tenham e tem tido um papel muito importante para que a gente chegue a uma certa igualdade.
Eu estava acompanhando, há pouco tempo atrás, uma discussão exatamente sobre como o ambiente acadêmico não tinha acompanhado as mudanças da sociedade, que o corpo acadêmico não estava preparado pra isso. Você acha que isso já tem se alterado de alguma maneira?
É uma alteração, mas não é pacífica. Primeiro, porque o ambiente acadêmico é um ambiente hostil. O ambiente acadêmico não é um lugar de circulação de afetos, é um lugar de circulação de desafetos. E isso é um problema quando você tem, por exemplo, alunos indígenas ou alunos negros que não tiveram uma formação eurocêntrica, branca.
E aí você tem um choque de culturas, de entendimento de realidade. Há essa mudança e acho que é um caminho sem volta, mas ela não é pacífica. E o meu próximo livro mostra justamente esse momento em que começam a ter esses embates dentro da universidade. Ou seja, quando começam a ter os primeiros questionamentos de “opa, por que que não tem autores negros ou intelectuais negros nesse seu programa, professor”. A ideia é tentar discutir em que momento essas demandas começam a existir dentro da universidade.
Jeferson, você já se consagrou como um dos mais promissores escritores contemporâneos do país. E a gente vive uma realidade de um país em que pouco se lê, que ainda engatinha na questão educacional. Como é ocupar esse espaço como escritor?
Eu acho que me coloquei em um lugar consciente de oferecer uma literatura que, de certo modo, possa formar leitores. Eu acredito que a literatura também tenha esse papel e por isso eu ofereço uma linguagem que seja fluente, numa linguagem que não ofereça dificuldades ao leitor. E já tenho recebido muitos relatos de professores, de alunos, dizendo que aquele foi o primeiro livro que ele leu até o fim.
Então, me coloco nesse lugar de tentar, de algum modo, contribuir para que a gente tenha uma população mais leitora no Brasil. Mas não acredito que esse seja o único modo de você criar leitores ou formar leitores. Eu estou falando de um determinado tipo de leitor e eu olho pra esse leitor como aquele que talvez nunca tenha lido um livro até o fim e possa se tornar leitor depois.
Mas, a gente pode também ter livros com uma linguagem mais sofisticada como, por exemplo, o Guimarães Rosa e você formar um outro tipo de leitor e assim por diante. A gente pode formar vários tipos de leitores, mas ao que eu me vinculo é justamente olhar pra esse leitor, que é um um leitor em potencial.
Falando agora sobre eleições, o número de candidatos negros foi recorde. Mas destrinchando um pouco os dados, a gente vê que essa realidade se reservou apenas às candidaturas estaduais. Nos cargos executivos, no entanto, Presidência, Governo e inclusive pro Senado, a realidade é completamente diferente e esse universo cai para 35% dos cargos. Somos uma maioria de negros, mas ainda não conseguimos a representatividade necessária nos cargos necessários pra mudar esse panorama, não é?
E a questão não é nem só a representatividade, porque você precisa ter também uma representatividade que esteja alinhada com as pautas identitárias, com as pautas raciais e tudo isso que a gente vem reivindicando há muito tempo. E a representatividade também pode ser uma armadilha, porque se você tenta, de algum modo, ocupar esse espaço, que é um espaço de poder, de decisões, ele também tem que ser acompanhado de dois outros elementos, que é o saber e o ser.
O saber é você ter um conhecimento epistemológico, um conhecimento mais aprofundado sobre as questões que te colocaram ali. E o ser que é de reconhecimento. “Bom, eu sou uma pessoa negra e, portanto, tenho aqui uma responsabilidade”. Então, não é uma mera representação.
Porque se você não tem esses três elementos, o poder, o saber e o ser conjugados, você vai ter, por exemplo, um Sérgio Camargo, que é um homem negro, mas que não tem nenhuma ligação com as pautas negras e as reivindicações da população negra. Acho que é importante a representatividade e o que tem acontecido ainda é muito incipiente, principalmente nos cargos executivos, nos cargos onde, de fato, as coisas acontecem e são decididas.
A gente já tem um sistema de cotas dentro dos partidos políticos e isso já é um um avanço. Inclusive, o orçamento eleitoral passa também pelas questões raciais. Mas ainda me preocupa, porque a gente tem uma população negra muito grande, mas no fim das contas, quem chega, de fato, nos lugares de poder, são as pessoas brancas.
Em alguns casos, pessoas brancas se autodeclarando negras ou pardas para tirar proveito também disso. O corpo negro ele está sempre sendo explorado, sistematicamente. É uma exploração quando convém, essa afro conveniência. Isso é algo que a gente precisa também prestar atenção e se preocupar.
Para além do Sérgio Camargo, tem essa questão da ACM Neto, entre tantas outras que foram aparecendo durante esses últimos quatro anos. Queria saber de você qual é o legado que o bolsonarismo deixa após essas eleições? O debate, apesar de sequestrado pela pauta de costumes e fake news, teve também elementos progressistas…
O bolsonarismo deixa um legado de destruição em todas as áreas que você possa imaginar, na área ambiental, na área educacional, na área de relações internacionais, nas pautas de gênero e de raça. A gente vê um desmonte impressionante, a diminuição do número de verbas, por exemplo, pra violência doméstica, para a violência contra as mulheres.
É, assim, terra arrasada. A gente só não chegou no fundo do poço e com o alçapão para abrir o fundo do poço, porque nós tivemos movimentos de resistência. E esses movimentos de resistência foram muito importantes para que a gente conseguisse ainda manter uma “certa democracia”. Eu digo uma “certa democracia” porque um país em que mata pessoas negras, não é um país democrático.
Acredito que a gente tem muitos anos ainda pela frente pra gente conseguir retomar todos os projetos que estavam melhorando o Brasil. Vai demorar um pouco, mas temos que ficar atentos porque o bolsonarismo não termina aqui, ele vai continuar.
Edição: Rodrigo Durão Coelho