é uma transformação e uma mudança de paradigma, no sentido da agroecologia
A luta contra a fome vai além da contagem de nutrientes no prato. Antes do consumo, o debate envolve os meios e condições de produção dos alimentos. Nesse sentido, há décadas, o conceito de soberania alimentar defende a autonomia e autossuficiência dos povos para garantir a comida como um direito.
Entre a fome mundial e os lucros globais, movimentos campesinos denunciam as políticas neoliberais que favorecem a constituição de verdadeiros impérios alimentares pelo mundo. É nesse sentido que, em 1996, o termo soberania alimentar se originou no movimento da Via Campesina. O conceito ainda foi referendado no Fórum Mundial de Soberania Alimentar, em 2001, em Havana.
"Temos desafios muito importantes. Por exemplo, a concentração de patentes em relação às sementes, a concentração de terra e dos canais de comercialização. Tudo isso vai ferindo a nossa autonomia e, consequentemente, vai ferindo a nossa soberania [alimentar]", afirma Elisabetta Recine, do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília.
Na perspectiva da soberania alimentar, a luta para que os povos decidam o que produzir e comer está baseada nos princípios agroecológicos, juntando a diversidade de culturas.
No Brasil, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) faz parte da Via Campesina, defendendo a Soberania Alimentar através de diversas iniciativas, como o projeto de Reforma Agrária Popular.
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Débora Nunes, da coordenação nacional do MST, explica a importância de contraposição do movimento ao modelo de agricultura baseado no agronegócio, que produz commodities e favorece o contrário da soberania alimentar.
"A nossa proposta para a agricultura brasileira está alicerçada no debate da preservação dos bens comuns, da produção diversificada de alimentos. Então, são alimentos saudáveis para alimentar o povo brasileiro, levando em consideração o respeito, que é algo muito forte e proposto no debate da Soberania Alimentar, respeitando a cultura alimentar desse povo", define Débora.
Para Débora Nunes, a defesa da soberania alimentar - e outros temas inseparáveis, como a Reforma Agrária Popular - impacta positivamente para toda a sociedade, ao se considerar os fluxos inseparáveis entre campo e cidade e a defesa da comida de verdade com um direito popular permanentemente garantido.
Além disso, ao questionar as macropolíticas do setor, a soberania alimentar defende a natureza, os territórios dos povos originários e comunidades tradicionais impactando nos centros urbanos e propondo novas práticas de produção e consumo de alimentos.
"Ao fazer isso [defender a soberania alimentar], nós também estamos contribuindo para resolver problemas estruturais de toda a sociedade, porque há uma série de problemas que a sociedade brasileira vive imersa, sobretudo nas grandes e médias cidades, em decorrência daquilo que aconteceu no campo, com a expulsão de famílias", destaca Débora.
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A coordenadora do MST reforça que as bandeiras da soberania alimentar e da Reforma Agrária Popular são urgentes diante da fome e dos desafios no campo e na cidade.
"Há um contingente grande de brasileiros e brasileiras no campo brasileiro. E jogando esse povo na cidade, sem condições de trabalho, de moradia, de acesso à habitação digna, saneamento, água potável [temos problemas urbanos]. O tema da saúde pública no que se refere ao alimento não saudável, alimento envenenado com uso intensivo de agrotóxicos parte do setor do agronegócio", explica.
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Enquanto o conceito de segurança alimentar está resumido a buscar respostas contra a fome sem discutir os meios, a soberania alimentar vai além.
“[A soberania alimentar] é uma transformação e uma mudança de paradigma, no sentido da agroecologia, onde a questão da sociobiodiversidade, do que é plantado e como é plantado. A riqueza que gerada é compartilhada, a relação de quem produz e quem consome está em outros patamares, em patamares muito mais cooperativos e muito mais horizontais", define Elisabetta Recine.
Na edição de 2021, a Cúpula de Sistemas Alimentares da Organização das Nações Unidas (ONU) foi definida pela Via Campesina como antidemocrática e aparelhada com as elites do setor. Ou seja, o evento que tem como objetivo lutar contra a fome mundial foi taxado como distante das vozes populares e diversas nas culturas alimentares.
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Por sua vez, a Via Campesina não ficou de braços cruzados diante da articulação de poder decisório das grandes corporações do sistema agroalimentar mundial, que impõem medidas que fragilizam a autossuficiência dos povos. Além de denunciar o lobby corporativo entre estados e multinacionais, foi organizada uma contra-cúpula, denominada Cúpula dos Povos sobre Sistemas Alimentares Justos Equitativos, Saudáveis e Sustentáveis.
O encontro foi mais um passo no sentido de encarar a balança entre superávit e índices de desnutrição global, exigindo sistemas alimentares sustentáveis.
"Os sistemas alimentares servem principalmente para o seu objetivo essencial, que é alimentar as pessoas. Não apenas os corpos, mas alimentar uma vida digna para todas as pessoas envolvidas", define Elisabetta.
Edição: Rodrigo Gomes