O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que apresentou um projeto de decreto legislativo (PDL) para tentar suspender a nova resolução que amplia as restrições ao canabidiol medicinal no Brasil, disse que a decisão do Conselho Federal de Medicina (CFM) tem teor bolsonarista e que teria sido expedida para afetar o jogo eleitoral, atualmente polarizado entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Lula (PT).
“Essa decisão tem a cara de uma decisão bolsonarista e tentou incidir sobre as eleições. Ela é uma decisão negacionista. O presidente atual do CFM foi o mesmo que pregou a [utilização de] coloroquina e agora é contra o uso medicinal da cannabis pra outras patologias”, disse ao Brasil de Fato.
Empossado na presidência do CFM em 1º de abril deste ano, José Hiran da Silva Gallo tem feito diferentes movimentos de aceno a Bolsonaro. No mesmo mês em que assumiu o cargo, por exemplo, ele chegou a dizer que Bolsonaro “se desdobrou” no combate à pandemia e ainda culpou o Poder Judiciário e a imprensa pelos estragos observados da crise sanitária.
O médico já havia feito outros gestos favoráveis ao presidente. Em 2018, por exemplo, escreveu um artigo no site institucional do Conselho Regional de Medicina de Rondônia (Cremero) comemorando a vitória de Bolsonaro nas urnas e afirmando que “a esperança venceu o medo”.
De lá pra cá, outros movimentos ficaram evidentes: entre outras coisas, o médico assinou convite para que Bolsonaro participasse de uma reunião na sede do CFM, em Brasília (DF), em julho deste ano, para tratar do que o documento dizia ser pauta com “assuntos de interesse da categoria”.
O evento acabou sendo publicamente rechaçado pela Associação Brasileira de Hematologia Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) e pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Em nota, a primeira chegou a se referir ao evento como “comício” porque, entre outras coisas, foi feita alusão a candidaturas de deputados e senadores e porque a reunião estampou o que a entidade chamou de “claro alinhamento do CFM com as ações do atual governo”.
“Por isso eu sinto que a resolução do CFM sobre o canabidiol foi uma atividade eleitoral, apesar de ser um tiro que pode sair pela culatra porque, se você me diz que toma um medicamento à base de cannabis, não há aí uma opção política ou ideológica. As pessoas têm uma necessidade de saúde”, argumenta Paulo Teixeira.
Defensor da invalidação da medida, o parlamentar apresentou o PDL na Câmara dos Deputados na última sexta (14). O pedido ainda não tem data para apreciação, mas Teixeira afirma que a ideia é batalhar pela pauta logo após o dia 30, quando terminar o segundo turno das eleições. “Eu acho que essa resolução tem que ser cassada, e nós vamos também procurar um meio judicial para ela ser cassada”, acrescenta.
Questionado se a configuração majoritariamente conservadora do atual Congresso pode atrapalhar os planos de derrubada da resolução, o deputado acredita que não: “Acho que tem ambiente [para aprovar o PDL]”.
Movimentos
O tema movimentou também outras instituições. A Associação Brasileira da Indústria Canabinoide (BRCann), por exemplo, divulgou que estuda medidas judiciais contra a resolução, que já existia desde 2014, mas passou a ser ainda mais restritiva agora para a classe médica.
Por esse motivo, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento preparatório na última segunda-feira (17) para investigar se a Resolução nº 2324/2022 é compatível com o direito social fundamental à saúde, previsto na Constituição Federal.
O pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Danilo Morais, também professor da pós-graduação em Direito da faculdade Ibmec, afirma que o conselho extrapolou as próprias atribuições ao editar a resolução.
“O CFM é uma entidade regulatória da profissão, portanto, eles podem estabelecer regulamento para o comportamento e as posturas médicas, mas eles não podem estabelecer medidas regulatórias – por exemplo, prescrever ou não prescrever, definir qual posologia e em que circunstâncias – quanto a fármacos porque isso é incumbência da Anvisa, que é a entidade regulatória do setor”, explica.
“Nesse sentido, ela excede o poder regulamentar do CFM, portanto, é ilegítima e pode ser anulada no Judiciário ou pode ser sustada pelo Poder Legislativo por meio de um PDL”, acrescenta o professor.
Limites
Ao impor novos limites para a indicação do canabidiol medicinal por parte dos médicos, o CFM decidiu que o produto agora só pode ser prescrito para o tratamento de epilepsias refratárias em crianças e adolescentes com síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa.
Fundador e atual diretor-executivo da Abrace Esperança, entidade localizada em João Pessoa (PB) e primeira associação a obter liminar judicial no Brasil para plantar maconha e produzir o óleo medicinal para os pacientes, Cassiano Gomes destaca a grande variedade de casos para os quais o canabidiol já é indicado e aplicado no país.
“Dos 37 mil pacientes que a gente tem na Abrace, já são mais de 200 condições, não só para epilepsia”, ressalta. Ele cita casos de autismo, Alzheimer, dores crônicas, psoríase, esclerose múltipla, ansiedade, depressão, mal de Parkinson e muitos outros como integrantes dessa lista.
“Por isso eu entendo que não foi uma decisão colegiada. Foi uma decisão monocrática, fascista. Foi uma coisa abrupta, uma decisão unilateral. Eles decidiram por eles. O presidente do CFM, que é um bolsonarista de campanha, da noite para o dia, disse ‘vou agradar o meu presidente e fazer uma maldade’. É isso que a gente está achando”, critica.
Pesquisas
Ao se queixar da decisão do conselho, Gomes afirma que a Abrace participa atualmente de “pesquisas sérias” feitas por universidades públicas do país que estudam a aplicação do canabidiol para casos de autismo e Alzheimer, por exemplo, e mostram bons resultados. Uma delas é a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que estuda os impactos em pacientes autistas. “E nenhum desses estudos foi considerado antes da decisão do conselho”, reclama.
Dados da Anvisa mostram que a procura pelo canabidiol cresceu consideravelmente recentemente, com aumento de 15 vezes no número de pessoas que importaram o produto nos últimos cinco anos, por exemplo. Atualmente são mais de 100 mil pacientes entre esse público no Brasil e a projeção é de que em 2023 já haja 200 mil.
“Atualmente, há quase 30 mil pesquisas sobre o uso medicinal da cannabis na PubMed, uma das maiores bases de dados científicos. Com uma simples busca no site é possível verificar que, entre 2018 e 2022, foram produzidos cerca de 10 mil artigos sobre o uso da cannabis como medicina. O fato é que as pesquisas que embasam a regulamentação da cannabis em mais de 50 países ainda são desconhecidas pelos conselheiros do CFM”, disse a InformaCANN, uma rede de apoio aos pacientes, em texto divulgado nesta semana.
A entidade está ajudando a organizar um protesto que será realizado na próxima sexta-feira (21), em Brasília (DF), em frente à sede do CFM. A ideia é que pacientes e familiares se manifestem contra a resolução.
No Distrito Federal (DF), por exemplo, uma legislação formatada em 2016 já incluiu o canabidiol na lista de remédios distribuídos de forma gratuita pela rede pública de saúde. É a Lei 5.625. E foi também por esse motivo que a chegada da nova resolução do CFM chocou pacientes e pais que acompanham filhos usuários do produto.
É o caso da empreendedora Paula Paz, que vive em Brasília, onde cuida do filho, Daniel, que tem autismo severo, um dos casos não incluídos pelo CFM entre as exceções da nova norma. Atualmente com 14 anos, ele faz uso de canabidiol desde 2017. Na época, Daniel fazia uso de quatro medicações que acabaram sendo progressivamente abandonadas graças aos bons efeitos do canabidiol.
“[Antes] quando a gente tentava tirar esses medicamentos, ele não suportava. Foi aí que entrei com o óleo e em 10 dias a gente já notou melhora nele. Ele reduziu totalmente as crises convulsivas, ficou sem dar nenhuma crise. Ele melhorou a concentração, a hiperatividade, a coordenação motora. O sistema cognitivo dele foi a coisa mais sensacional que eu vi”, comemora Paula, que há cerca de um ano coordena na capital federal um grupo de acolhimento que atende 70 pessoas, entre pacientes, pais e mães de usuários do óleo.
Ela conta que já se prepara para comparecer à manifestação da próxima sexta-feira e que ficou bastante preocupada quando surgiu a notícia a respeito do novo texto do CFM. Uma chuva de interrogações tomou conta da cabeça de outros vários pacientes ou familiares pelo Brasil: com a proibição, o segmento ficou em dúvida sobre se continuaria tendo acesso ao óleo.
“Se tirarem, para mim, vai ser muito difícil porque ele não deu certo com as outras medicações. Se acontecer isso, ele vai voltar a ter piora no quadro dele, vai regredir. Isso é tudo que a gente não quer”, desabafa a mãe.
“Isso me deixa muito preocupada e temerosa, porque, quando o óleo dele acabar, como eu vou fazer? Ele precisa ter um acompanhamento médico, inclusive pra eventuais ajustes de dose, e onde eu vou conseguir um médico que prescreva?”, questiona Paula.
Entidades
Apesar da aflição, diferentes entidades que hoje produzem o óleo por conta própria sob autorização judicial se pronunciaram publicamente junto aos pacientes para tranquilizar o público-alvo no sentido de avisarem que irão continuar produzindo o produto e vendendo aos pacientes.
Foi o que fizeram a Abrace e a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), por exemplo. Esta última, que tem mais de 4 mil associados, sendo 80% deles com males excluídos pela norma do conselho, realçou, inclusive, que a decisão do órgão não irá impactar o agendamento de consultas com médicos cadastrados pela entidade que prescrevem o canabidiol.
Para o diretor-executivo da Abrace, tende a ficar tudo como já estava no segmento. “A verdade é que a resolução do CFM já era bem restritiva, já proibia os médicos de receitarem, mas eles faziam isso ‘off-label’ (contexto em que o profissional analisa a relação custo-benefício e se responsabiliza pela indicação), com base na autorização já dada pela Anvisa. A resolução ficou mais restritiva agora, mas eu acho que os médicos irão continuar prescrevendo porque já há comprovação dos benefícios em muitas pesquisas”, diz Cassiano Gomes.
CFM
O Brasil de Fato tentou ouvir o CFM a respeito do tema, especialmente o presidente da entidade, por meio de sua assessoria de imprensa, mas não foi dado retorno à reportagem até o fechamento desta matéria. O espaço continua aberto caso o órgão queira se manifestar.
Edição: Vivian Virissimo