A campanha para o segundo turno da eleição presidencial rapidamente mostrou sua cara: acusações relacionadas ao satanismo e o vídeo na maçonaria reiniciaram a disputa que pautou-se ininterruptamente por ataques relacionados às questões religiosas. Apesar da máxima que apregoa o contrário, os brasileiros sempre discutiram política e religião. A poucos dias do segundo turno da eleição presidencial, os dados mostram que 49% dos eleitores dão muita importância para a religião ou fé do candidato na hora de definir o voto, de acordo com dados do Datafolha. Mas, para além do debate, que até poderia ser saudável, vimos aumentarem os episódios de perseguição, de fundamentalismos e de racismo religioso, situações que agravam um já deficiente cenário de garantia de direitos, especialmente para as religiões de matriz africana.
O ditado que orienta que não devemos debater essas questões só reforçou a ideia de que somos um povo pacífico, que evita conflitos. Mas nunca fomos pacatos. Apenas durante décadas acreditamos que nossos problemas se resolviam na base do “jeitinho” e da malandragem. Se já era bastante óbvio para muitos que essa ideia nunca funcionou, com a recente disputa eleitoral esse mito recebeu sua última pá de cal. A boiada passou, produziu um bom estrago, e agora há que se olhar com atenção seus impactos.
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A população brasileira é diversa e tem múltiplas formas de manifestação religiosa. Quando dizemos que o Brasil é um estado laico, isso significa que deixou de adotar uma religião oficial. Mas a laicidade “à brasileira” se caracteriza há séculos por proteger os cristãos - católicos e evangélicos - por meio da concessão de inúmeros benefícios, inclusive isenções fiscais. Laicidade é, portanto, um processo pelo qual se busca definir os limites entre as religiões e a política, uma parte importante da democracia. Não é um pacto fechado, nem pode se restringir aos interesses da maioria. Trata-se de um modo político de construir fronteiras com a participação de diversos grupos religiosos, incluindo os ateus e agnósticos, de limites sobre o uso do espaço público. No qual ninguém pode ser beneficiado exclusivamente.
O que estamos vendo, no entanto, está bem longe disso. Presenciamos os desdobramentos da política do “Deus acima de todos”. O mote da campanha de Bolsonaro em 2018 revelou uma forma extremista de pensar. A partir dessa máxima, criada pelo Exército, nos anos 1970, deduz-se que determinados grupos sociais podem se sobrepor aos demais, e, em sua forma mais extrema, essa autorização implicaria até mesmo na eliminação do outro, como não raro tem ocorrido com as religiões de matriz africana em todo o país.
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Agora, temos um novo mote: “com Deus no coração, ninguém segura essa nação”. Por trás da “novidade”, está a reprodução da mais velha forma de se fazer política no Brasil, e que remete à canção “Eu te amo, meu Brasil”, lançada pelo grupo Os Incríveis na ditadura militar. Os versos “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil / Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Ninguém segura a juventude do Brasil” eram entoados obrigatoriamente em todas as escolas públicas. Junto dos Hinos Nacional, à Bandeira e da Independência. Novamente o Brasil do futuro, ufanista e mágico reaparece por meio da teologia da prosperidade, inspirada na “direita cristã” estadunidense e seus ideais supremacistas.
Mas esse país “insegurável” é muito diferente daquele no qual vivemos. Um Brasil arrasado por 700 mil mortes oficiais provocadas pela COVID 19, porque se optou por demorar a comprar as vacinas. Onde a fome espreitou 61 milhões de habitantes, entre 2019-2021, por escolha de uma política econômica e do desmonte de políticas sociais de assistência construídas a muitas mãos, por diferentes partidos políticos em gestões anteriores.
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Não existe democracia sem a construção de limites para as liberdades individuais. Um Brasil que ninguém segura e que tem Deus acima de todos já é assustador, mas fica pior quando se pensa que há quem pretenda atropelar qualquer um que não se enquadre. O extremismo que essa política toda poderosa evoca não é novo. Fake news sobre satanismo, maçonaria e fechamento de igrejas vistos nas redes esta semana, se somam à produção de ofensas por meio do uso de imagens de terreiros e seus símbolos com o objetivo de provocar o terror.
Mas não se trata nem mesmo de uma guerra religiosa. Até mesmo na guerra existem limites. O que vemos é o uso de estratégias de contrainformação militar, a difusão de informações de forma criminosa que resultam em ataques a qualquer grupo que não esteja encaixado no perfil de um evangelismo-pentecostal específico, uma espécie de manipulação que visa tão somente eliminar quem não se coloque embaixo desse Deus.
A ideia força do “Deus acima de todos”, associada à tradição, à segurança, à propriedade e à família produz resultados que estão para além do campo religioso. Elas ajudaram a construir procedimentos administrativos típicos de monarquias absolutistas. O estabelecimento de sigilo de 100 anos em relação aos atos de governo e orçamentos secretos servem apenas aos interesses dos que governam para seus próprios interesses. O resultado da soma “Deus acima de todos” com “Ninguém segura esse Brasil” para Bolsonaro admite o desrespeito completo às leis. E remonta ao lema impresso não faz muito tempo atrás nas paredes dos muros de grandes cidades: “Bíblia sim, Constituição não”. Uma frase que representa um modo muito específico e contemporâneo de se fazer política: o modo cristofascista, que corresponde à legitimação ideológica do poder autoritário.
Esse modo pode e deve fazer tremer todos os cristãos que não se encaixam neste modo de pensar e agir. Aqui não se trata mais de converter, de salvar as almas. Mas de destruir outras formas de vida, e, no limite, a democracia, como apregoa esse neofascismo.
Se sabemos que nossa democracia tem limites, e que o mito de fundação do Brasil como esse país diverso é incompleto, não podemos comprar a ideia de uma fábula ainda mais alienadora e terrível: a de uma nação monolítica, cristã, branca e conservadora. Precisamos, para ontem, reafirmar pactos, mas não com Deus, nem com o Diabo. Precisamos de firmeza na defesa de valores que recusem a construção de um maquinário político-religioso. Necessitamos de uma defesa inabalável do nosso país na reafirmação de sua imensa pluralidade, do mesmo modo que precisamos urgentemente impedir que as grandes corporações religiosas sigam perseguindo e destruindo as tradições de matriz africana.
O atraso da realização do Censo, em 2020, impede que tenhamos dados atualizados sobre o pertencimento religioso da população brasileira. A fonte mais recente a que podemos nos referir no Brasil foi realizada pelo Instituto Datafolha, em 2019 e publicada em 2020. Nela os católicos seguem sendo a maioria da população (50%), mas identifica-se um significativo crescimento de evangélicos (31%) e um aumento também dos que se autodeclaram como pertencentes à religiões de matriz africana (2%). Trata-se de um segmento minoritário da sociedade, mas que não pode ser desqualificado.
Quando Bolsonaro diz que o “Brasil é laico, mas o presidente é cristão”, não está apenas defendendo seus valores pessoais, mas produzindo um problema político que se instala a partir de constrangimentos que se explicitam na esfera pública, que deveria ser regulada por regras seculares e laicas. O presidente não pode esquecer que a Constituição Federal, no seu art. 5º, afirma ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício de todos os cultos religiosos, o que implica na proteção ao território, às liturgias e às manifestações de todos os grupos, não apenas os cristãos.
Ele não parece lembrar do juramento que fez ao tomar posse - “manter, defender e cumprir a Constituição”. Não nos importa qual é a religião do presidente. Ela não é salvo conduto para que sua campanha resulte em perseguição a qualquer grupo. Cabe a nós também cobrar que o Estado brasileiro assegure a proteção legal para as religiosidades e culturas afro diaspóricas. Discutir sem destruir ou perseguir. Esse é o caminho.
*Ana Paula Miranda, professora de Antropologia e coordenadora do Ginga UFF.
*Este é um artigo de opinião. A visão da autor anão necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo