“O país está polarizado pelo ódio. Superar isso vai exigir de nós enfrentar a violência política em todos esses espectros. E derrotar dentro do Parlamento também a sede de continuidade que alguns tem. E por isso moveram o orçamento secreto. Não está só no Bolsonaro a mobilização do ódio, está hoje em quem comanda o Congresso Nacional e o tal orçamento secreto. Isso é tão danoso à democracia, quanto uma ditadura escancarada”, observa a deputada federal Maria do Rosário, reeleita com 151.044 votos.
Alvo da misoginia de Jair Bolsonaro, em 2014, e de ataques constantes de manifestantes da extrema-direita, a parlamentar recentemente acionou o Ministério Público Federal que investigue Bolsonaro por prevaricação. Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Maria do Rosário pontua que faz os enfrentamentos com a extrema-direita porque cresceu com a consciência do que foi a ditadura e do significado do fascismo. Ela também destaca que toda a opressão de uma sociedade inicia pela opressão à mulher. "Ao tentar nos subjugar, nos coisificar, nos definir, eles movem todas as formas de fundamentalismo contra todos os demais. Mas começa pelo nosso corpo, pelo juízo das nossas posturas.”
Professora, mestre em Educação e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi ministra de Direitos Humanos durante o governo da presidenta Dilma Rousseff. Filiada ao Partido dos Trabalhadores, além de ser deputada federal pelo Rio Grande do Sul, foi vereadora e deputada estadual. Atualmente é Secretária Nacional de Formação do PT. É casada com o professor Eliezer Pacheco e mãe de Maria Laura.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, ela fala sobre a configuração do Congresso a partir de 2023, o prejuízo do orçamento secreto assim como a importância da mobilização para a retomada da democracia.
Abaixo a entrevista completa.
Brasil de Fato RS - Qual tua avaliação do novo Congresso Nacional, que não é tão novo assim, mas traz algumas novidades.
Maria do Rosário - Não é verdade que o Congresso espelha a sociedade brasileira. Muitas vezes nós escutamos isso no senso comum. O Congresso carrega os votos da sociedade brasileira, porque no sistema proporcional, como ele existe, todos aqueles e todas aquelas parlamentares que são eleitos, são parte de partidos e dos votos que os seus partidos receberam, que o conjunto dos parlamentares receberam.
É verdade que o conjunto dos votos está ali representado. Mas não a composição social e cultural do Brasil. E este Congresso, sobretudo, não traz uma composição que simbolize já de imediato a necessidade de transformação do Brasil. Porque ele é, em muito, fruto do setor conservador que chegou a eleição. Ele mostra o efeito do orçamento secreto. Do poder concentrado. Das guerras contra a população que têm sido travadas a partir do Palácio do Planalto, a partir do poder.
A composição do Congresso, até onde eu pude observar, traz novidades positivas, com o crescimento dos setores populares das bancadas que têm compromisso com a vida da população. Mas traz também, reforça elementos que são associados ao bolsonarismo. Nos demonstra que no próximo período, nos próximos dias, vamos ter que derrotar Bolsonaro e nos próximos quatro anos derrotar o bolsonarismo que seguirá representado politicamente no Congresso Nacional.
BdFRS - Ao mesmo tempo, por exemplo, vai ter uma bancada com fortes representantes dos povos indígenas. Vai ter representantes de movimentos importantes como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, representantes da negritude, mulheres trans... Tu achas que de alguma forma esses novos deputados e deputadas podem mexer com essa estrutura, já tão calcificada?
Maria do Rosário - Eu vejo que é preciso confirmar essa representação, não apenas a partir da dimensão da especificidade de cada bloco, ou de cada grupo social. Mas ligar cada vez mais essa dimensão da negritude, dos povos indígenas, das mulheres à dimensão de classe no enfrentamento da opressão no Brasil. Isso faz toda a diferença.
Nós não podemos atuar mais como grupos pulverizados. Nós precisamos afirmar o direito mais diverso à existência de culturas, de identidades, mas nos ligarmos pela dimensão de, afinal de contas, qual é o povo brasileiro que nós representamos? É tão diverso quanto essa possibilidade de vermos um Congresso mais negro, com mais mulheres, com mais população indígena. Mas ainda muito distante de ser um Congresso da classe trabalhadora e das mulheres trabalhadoras, dos povos indígenas, dos negros e negras, dos estudantes da juventude.
O país está polarizado pelo ódio. Superar isso vai exigir de nós enfrentar a violência política em todos esses espectros. E derrotar dentro do Parlamento também a sede de continuidade que alguns tem. E por isso moveram o orçamento secreto. Não está só no Bolsonaro a mobilização do ódio, está hoje em quem comanda o Congresso Nacional e o tal orçamento secreto. Isso é tão danoso à democracia quanto uma ditadura escancarada. Porque é uma forma de ditadura se apropriar do orçamento como fizeram os líderes políticos do centrão, que aderiram ao Bolsonaro, e o presidente da Câmara dos Deputados. Esse conjunto que se moveu aqui visa a permanência deste projeto de poder, independentemente da vitória de Bolsonaro à Presidência da República.
O país está polarizado pelo ódio. Superar isso vai exigir de nós enfrentar a violência política em todos esses espectros
Estamos fazendo tudo que é possível para derrotá-lo. Mas dentro do Congresso esse poder ainda é muito pulverizado. Nós não vamos conseguir enfrentá-los só pelas identidades. Vai ser preciso também conhecimento político e conexão com as necessidades do povo brasileiro para que essas identidades se transformem, façam uma disputa de hegemonia de uma cultura no Brasil.
BdFRS - Aliás, hoje [dia 14] estourou uma ação da Polícia Federal em relação as verbas do orçamento secreto, no Nordeste. Queria que tu falasses um pouco sobre isso? Como é que funciona realmente esse orçamento secreto? Acho que a população em geral não entende.
Maria do Rosário - O orçamento secreto significa a redução do orçamento público nos Ministérios da Educação, da Saúde. O manejo daquele teto de gastos, o conjunto da redução de recursos vai para duas áreas: para o pagamento dos serviços da dívida, então irriga, na verdade, os setores já com muito dinheiro no Brasil.
Há quem ganhe muito com a redução do orçamento público nas áreas fundamentais desde que foi implementado o teto de gastos. E há também a manipulação do orçamento para retirar recursos justamente carimbados dos ministérios de programas, por exemplo, do Plano Nacional de Educação, do Sistema Único de Saúde, de programas específicos. E dentro destes programas, destes planos, que deveriam ser de Estado, formados com as prioridades públicas de interesse nacional, ali dentro fica carimbado o recurso daqueles deputados que são do governo. E aí o recurso é retirado daquela meta, que seria para atender a população e colocado naquilo que o deputado do governo acha que é o melhor.
Não interessa qual é o plano de desenvolvimento, por exemplo, para assegurar o funcionamento das universidades, dos institutos federais ou construir creches. Ou para citar a área da educação, melhorar a merenda escolar para todos e todas, ou investir em bibliotecas ou laboratórios, repassar para os estados. Dentro daquele dinheiro que deveria ser feito isto, passa a ser o parlamentar da base do governo que diz onde colocar aquele recurso, e não na necessidade da população.
E o que o deputado, então faz? Deputado da base do governo, é dizer que ele que levou o orçamento, deixa de ser público e passa a ser um orçamento privado. Ele passa a ter muito dinheiro e as metas de Estado, as metas para um país, que enfrente as desigualdades, são todas destruídas. Não interessa se naquela cidade já existe um hospital, se aquele deputado decidir construir um outro o fará, mas o objetivo é simplesmente ganhar votos e apoio para a sua base eleitoral. Os recursos, em geral, portanto, ficam concentrados de acordo com o interesse privado. E não há mais planejamento de nada que é público.
Por isso, se corta recursos das universidades, dos institutos federais. O orçamento secreto não é um dinheiro depositado na conta do deputado, ainda que o que a Polícia Federal esteja identificando são desvios. É um recurso que deveria ir para construir alguma coisa que é transformado em dinheiro de corrupção direta. Mas é uma forma de corrupção também, utilizar o orçamento de acordo com o seu plano individual e não de acordo com o interesse público da nação brasileira. Então é uma forma de apropriação do orçamento. Orçamento secreto, portanto, significa transformar o orçamento público em orçamento privado.
BdFRS - A Simone Tebet falou que ainda vão descobrir que o orçamento secreto é o maior esquema de corrupção que já se ouviu falar no país...
Maria do Rosário - Já começaram a descobrir. Olhamos a corrupção como apenas, dizemos assim, a corrupção é se apropriar do público para o indivíduo. Mas na verdade, todo o orçamento que escoa de áreas essenciais, que tem planos para serem cumpridos, que estão desconsiderados como um Plano Nacional de Educação e outros, quando não é cumprido aqui para atender o interesse daquele parlamentar, não é só parlamentares no orçamento secreto.
O orçamento secreto dos parlamentares é “o toma lá dá cá” que destrói a política. Eles apoiarem a destruição dos direitos trabalhistas, previdenciários, a privatização da Eletrobras, o desmonte da Petrobras, que está sendo privatizada de forma fatiada. São os golpes que eles estão dando todos os dias, na medida em que segura o preço da gasolina, às vésperas da eleição.
Hoje mesmo, é insuportável olhar os noticiários e não se dá conta do tamanho das filas que estão na frente dos CRAS (Centros de Referência em Assistência Social) para fazer o tal do recadastramento do CAD Único. Por que isso não existia no tempo do Lula? Por que isso não existia no tempo da Dilma? Porque o CAD Único era um instrumento de gestão constituído para melhorar a vida das pessoas.
O orçamento secreto dos parlamentares é “o toma lá dá cá” que destrói a política
E o que o Bolsonaro está fazendo com esse CAD Único agora? Foi colocar todo mundo em uma fila para verificar o endereço, fazer com que as pessoas se movam para tentar fazer uma mobilização em torno de: “olha estamos pagando isso”, ou seja, deixa de ser um direito para ser algo que o governante tenta utilizar, desmerecer e humilhar aquelas pessoas, que ele próprio jogou na miséria. Esse é o bolsonarismo. Vai demorar um tempo para a gente derrotar essa lógica. Mas nós temos que fazer isso com muita dedicação política ao povo brasileiro e autonomia do povo. Não podem os representantes que são eleitos se sentirem representantes da vida das pessoas e esquecerem que as pessoas devem ter seu próprio protagonismo.
Por isso que eu acredito mesmo, me dirijo aqui ao Brasil de Fato sobretudo, porque eu acredito que nós temos que incentivar uma política de formação de comitês populares de luta que possam ter significação para a formação de uma cidadania ativa no próximo período. Onde as pessoas sejam donas não apenas no seu voto na hora da eleição, mas donas da cidadania depois da eleição para conversar com o Lula, tomara eleito, com a nossa força do povo, com os deputados, com as deputadas. Mas também reivindicar o que eles pertencem.
É preciso ativar a cidadania brasileira para o grau de autonomia que ela não exerceu ainda, dado que a democracia brasileira é muito limitada. É uma democracia de representação muito pequena, muito reduzida ao momento da eleição e com golpes permanentemente no processo eleitoral também, que impedem as pessoas de verdade se sentirem representadas no próprio processo diretamente por elas próprias.
BdFRS - Tu és uma das deputadas mais atacadas por fake news, que sentiu muito fortemente na pele o bolsonarismo e a cultura do ódio com enfrentamentos muito fortes inclusive com o próprio Bolsonaro dentro do Congresso Nacional. Como tu avalias que se deu essa construção? Como é que deixamos isso acontecer?
Maria do Rosário - Esses limites da democracia brasileira que estão colocados no atual momento, e ao longo destes anos, eles foram sendo mais ainda sublinhados e marcados ao longo do último período. Quando o ódio contra as mulheres, o racismo, o ódio contra as pessoas GLBTQIA+, quando o ódio era localizado, parecia ser localizado, grande parte dos setores do campo popular também não se mobilizou suficientemente para enfrentar este ódio. E o próprio Poder Legislativo, eu acho que é o principal responsável pelo crescimento dessa construção fascista na política.
Porque, afinal, não apenas Bolsonaro, mas a extrema direita atacou o Brasil e desrespeitou a Constituição Brasileira e os direitos humanos por anos a fio. E o Parlamento brasileiro nunca tomou uma atitude sequer para barrar este tipo de impostura, de violência.
Então, o que acontece no caso comigo não é comigo. Eu realmente olho para a minha vida e me dou conta, eu sei quem eu sou na vida política desse país, no contexto da minha caminhada no meio às camadas populares, de onde é que eu venho, eu sou uma professora, eu sou uma mulher de esquerda, eu sou uma socialista, eu sou uma feminista. Então eu faço enfrentamentos com a extrema direita porque eu cresci com a consciência do que foi a ditadura e do significado do fascismo.
Eu faço enfrentamentos com a extrema direita porque eu cresci com a consciência do que foi a ditadura e do significado do fascismo
Mas em alguns momentos, principalmente no início desse processo todo quando o desrespeito era justamente contra os familiares dos mortos e desaparecidos políticos eram poucos os que se levantavam contra a extrema direita. Muitos avaliavam como alguma coisa caricata. Mas não era uma caricatura. Era a formação de uma disputa fascista na sociedade brasileira. E essa disputa se constituiu por dentro de um parlamento e com uma Constituição democrática.
Eles usaram da democracia para disputar contra a democracia. Contra a democracia mais burguesa inclusive, mais limitada, a extrema direita não convive com a democracia de nenhum tipo, mas faltou os democratas compreenderem isso. Porque ele não foi enfrentado dentro do Parlamento brasileiro por ninguém, só pelas mulheres. Não fui sozinha. Foram as mulheres, as mães dos desaparecidos, as irmãs, mulheres parlamentares, mulheres advogadas, são inúmeros os exemplos de mulheres que fizeram esse enfrentamento por uma visão de conjunto. Mas por entender também que aquilo ali não é só contra nós, muito menos contra cada uma. Era uma disputa da sociedade sobre qual é o nosso lugar.
Toda a opressão de uma sociedade inicia pela opressão a mulher. Ao tentar nos subjugar, nos coisificar, nos definir, eles movem todas as formas de fundamentalismo contra todos os demais. Mas começa pelo nosso corpo, pelo juízo das nossas posturas. Sinceramente, só as mulheres se levantaram. Então eu acho que a Câmara dos Deputados como instituição é responsável atualmente por isso que aconteceu.
BdFRS - Eu fico pensando, aquela sessão do golpe que cassou a presidenta Dilma...
Maria do Rosário - Claro, o elogio ao torturador dela.
BdFRS - Sim, o voto em nome do torturador dela, pra mim foi o momento da ruptura.
Maria do Rosário - Então tu vês que não é sobre uma pessoa. A agressão, obviamente, à pessoa da Dilma, era sobre toda a sociedade brasileira. Sobre oprimir toda a sociedade. Porque a tortura contra uma pessoa, quando é aceita dessa forma, naquele ambiente público, entre tapinhas nas costas, aplausos, ou inoperância, falta de iniciativa de enfrentamento, é uma tortura que é contra a humanidade mesmo, é aceitação.
Então dentro do Parlamento houve a aceitação do fascismo e do ódio político antes dele tornar-se uma construção, para tomar a hegemonia cultural do Brasil como eles fazem agora através de igrejas, de movimentos conservadores, do poder, das fake news, tudo e tudo mais, né? E como fizeram em relação à prisão do Lula também. Porque esse conjunto de golpes teve apoio popular a partir desta disputa de ideias. Eles fizeram uma fascistização do país. Isso não é uma força de expressão, é exatamente o que eles fizeram, tornando as pessoas todas vestidas iguais.
Nós não vamos conseguir enfrentá-los só pelas identidades. Vai ser preciso também conhecimento político e conexão com as necessidades do povo brasileiro para que essas identidades se transformem, façam uma disputa de hegemonia de uma cultura no Brasil
BdFRS - Se apropriando de símbolos...
Maria Rosário - Sim. Terrível ver isso, mas isso estava diante de nós. Isso demonstra que nós não podemos olhar para a democracia simplesmente como ela se encontra no âmbito do Parlamento e dizer, bem, nós vamos lidar com ela e fazer com que ela permaneça como está. Porque toda a democracia que fica parada como está, tende a refluir. O que nós precisamos fazer com a democracia, é aprofundá-la. Assim como a extrema direita disputou a democracia para destruí-la e levá-la a uma simulação a tudo o que aconteceu no Brasil, usando do poder e do voto até para fazer tudo o que faz.
O que nós deveríamos fazer é, utilizar, estar nos mandatos parlamentares, estarmos nos governos, ocupar os espaços de poder para democratizar mais o poder. Não basta suprir o básico. Eu sei muito bem que o presidente Lula vai chegar ao governo e vai olhar para os que têm fome. Eu sei muito bem que ele vai olhar para a luta das mulheres, contra a violência das populações indígenas, para as demarcações, para lutar pela terra. Eu sei muito bem todo o programa econômico e social que ele carrega. Mas é preciso também uma dimensão cultural no Brasil.
E realmente faça aquilo que nós não fizemos, que é disputar ideias na sociedade brasileira para um país com generosidade, respeito ao ser humano, direitos humanos e afirmação da participação das pessoas na transformação das suas vidas.
BdFRS - E para isso há três pilares, na minha opinião, que são fundamentais, a cultura, a educação e a comunicação. E são justamente pilares que o Bolsonaro ataca ferrenhamente.
Maria do Rosário - Eles operaram um plano não só dele, mas do fascismo e dos aproveitadores. Porque ele unificou uma linha política de mobilização pelo ódio, de galvanização de apoios pelo ódio e com um projeto de destruição nacional.
Todo o discurso feito olhando para a Bandeira do Brasil é, na verdade, um discurso que serve como um biombo para a destruição de toda a soberania, da Constituição, de tudo o que existe nesse país com algum grau de autonomia ainda. E este período da eleição está mostrando ainda de forma mais cruel, a gravidade dos processos do fundamentalismo religioso.
BdFRS - Esse aprofundamento da democracia seria pela participação social?
Maria do Rosário - Com certeza. Uma participação consciente e transformadora, uma educação política. O Brasil não tem uma tradição democrática, com valores democráticos, não é? E construir isso cabe a nós. Não serão os outros que a construirão.
A vitória do Lula abrirá a possibilidade de construirmos isso. Mas não sejamos ingênuos e ingênuas. Se não tomarmos providências para mudar essa realidade, a extrema direita continuará operando a partir da lógica do ódio, do fundamentalismo religioso, de decisões que eles produziram no Brasil.
Eles vão continuar operando porque o que há em jogo, para eles, não são os valores verdadeiramente, mas quem lucra também com a disseminação desses valores.
Por trás de tudo isso também há uma máquina de corrupção como a próprio Simone Tebet falou, referindo-se ao orçamento secreto, que eu acho que nós não temos como discordar. Mas é uma máquina de corrupção que vai muito além do orçamento secreto, que é o uso de tudo que existe para o interesse de alguns, e para uma estratégia de manutenção do poder. Seja através da presença nas corporações, nas Forças Armadas, grupos religiosos, determinadas igrejas, por dentro das igrejas.
O que nós vimos em Aparecida agora, não é algo sem planejamento. É a tentativa de disputar por dentro a igreja Católica
Agora nós entramos em uma fase, inclusive de confronto tão aberto que o bolsonarismo joga o confronto dentro das próprias igrejas. São inúmeros relatos de evangélicos que não frequentam mais ou que deixam de ir determinado culto, procura um outro para se sentirem mais respeitados, diante da utilização da fé, porque não concordam com essa utilização da fé. Nós não podemos dizer que todos os evangélicos, todas as evangélicas têm esse mesmo pensamento do uso, do fundamentalismo religioso. Da mesma forma dos católicos.
O que nós vimos em Aparecida agora, não é algo sem planejamento. É a tentativa de disputar por dentro a igreja Católica. De desrespeitar, inclusive, autoridades da própria igreja. Por não ter maioria entre os católicos, eles desafiam a autoridade dos líderes religiosos. Foi isso que ele foi fazer lá, desrespeitar objetivamente a data de homenagem à Nossa Senhora Aparecida. Isso não é qualquer coisa. É o fundamentalismo levado à exacerbação. Porque ele, e eles se colocam no lugar de Deus, como interlocutores, e como o Próprio. Reduzindo o próprio sagrado das pessoas ao interesse, a um serviço de seu interesse. Isso é muito perverso, porque negam as pessoas, inclusive a possibilidade ao seu sagrado. É muito, psicologicamente, psiquicamente muito perverso o movimento que eles fazem no Brasil.
BdFRS - Este movimento mostra que eles estão buscando uma hegemonia. Porque se dá através dos meios de comunicação, tipo ocupando espaços na política, junto ao povo. É muito claro esse projeto.
Maria do Rosário - Nós temos que encontrar o nosso próprio projeto e nossa própria metodologia. Eu vejo que ao longo dos últimos anos o PT, por exemplo, ao criar um programa chamado Nova Primavera na formação política, procurou alimentar as nossas bases sociais de uma forma de militância, existência, que nos conecte à população.
Ao procurar no Paulo Freire, inclusive, o sentido da militância política com afetividade, amorosidade e despertar de consciências. Eu acho que o próprio PT precisa aprofundar este caminho que ele tomou a decisão de fazer, independentemente de estar no governo ou não, há um papel que tem que ser realizado pelos partidos políticos.
E no caso do PT, esse papel, não tenho qualquer dúvida disso, é um papel que deve ser aprofundado, assim como os movimentos sociais têm as suas escolas nacionais, o MST tem a Florestan. O PT também fortaleceu a sua escola nacional ao longo do último período. Avalio que é a disputa política da sociedade para além do que se possa fazer pelo exemplo e em políticas públicas de governo, cabe aos partidos políticos fazerem. Serem escolas de participação.
Nós devemos, nesse momento, pensar que governar o Brasil vai exigir do PT, dos demais partidos também a continuidade do aprofundamento do vínculo com a população para fazer, assim como os movimentos sociais fazem, uma relação de formação política permanente.
BdFRS - Porque a extrema direita está dentro das comunidades, ela está nas periferias fazendo curso de formação. Eles aprenderam conosco também.
Maria do Rosário - E ocuparam o espaço, utilizam elementos da subjetividade. Eles criam o pânico para oferecerem o armamentismo. Criam o pânico da violência e eles mesmo promovem a violência. Eles promovem a violência, criam o pânico da violência e se retroalimentam, colocando-se como quem vai solucionar. A extrema direita ataca as famílias, joga as famílias na miséria, divide pais e filhos pelo julgamento moral, pelo ataque à juventude, pelo ataque à diversidade sexual. Todas essas formas de desrespeito à juventude que eles têm, eles acabam criando cisões nas próprias famílias. Mas criam essas cisões e dizem que defendem a família. Jogam as famílias na miséria e dizem que defendem a família.
A extrema direita do Brasil tem um discurso exatamente vinculado ao que ela promove do mal. Ela promove o mal e apresenta-se como uma solução para o mal
Uma das coisas que mais me chamou atenção naquele movimento Escola Sem Partido, com o nome totalmente falso, incentiva as crianças a atacarem seus professores e professoras. Ela cria um desrespeito aos educadores e educadoras. Cria uma situação de caos na vida escolar. Não assegura uma merenda escolar digna, não assegura salários dignos, não assegura a melhoria da escola de forma digna. Destrói a escola pública. Acusa violentamente os educadores, educadoras e ao mesmo tempo que faz isto, ela apresenta então uma escola cívico militar. Como se a ordem fosse só militar, e os professores e professoras fossem todos incompetentes. Como se a pedagogia fosse incompetente. Eles sempre criam o caos para oferecer alguma coisa.
Eu tenho me incomodado tremendamente com essas falas, como daquela pessoa abaixo da crítica, uma figura lamentável na política nacional em todos os sentidos, que é a Damares. Ela utiliza das formas mais abjetas para chamar um horror sobre a violência contra crianças, porque na verdade ela não se importa com o cotidiano de violência que as crianças estão sofrendo. E ao discursar sobre o horror, ao dizer coisas absurdas na frente, inclusive de crianças, em um culto, o que ela faz com esse discurso é desrespeitar todo um país. Desrespeitar a infância e utilizar do horror para que as pessoas não se choquem com mais nada, não se choquem com ela própria, que foi parte de um governo e nada fez contra o horror.
Há uma diferença muito grande. É triste dizer que existem nós e eles, mas sim. Nós representamos agora o sentimento de humanidade, de ética na política. E figuras como essa Damares representam o horror. A banalização do mal. A banalidade do mal é uma forma de te acostumar com ele. Então, quando ela cita aquelas situações, aquelas circunstâncias sobre as quais eu nem vou tecer comentários, sobre formas de abuso e de violência sexual, na verdade, o que ela busca com aquilo é criar um horror para fazer o seu discurso que na verdade, ela é a própria promotora do mal e do ódio. É horrível pensar sobre isso.
BdFRS - Os direitos humanos sempre foram o tema central nos teus mandatos. E também foram muito atacados nessa desconstrução do que sejam direitos humanos dizendo que é direitos humanos para bandidos. Como resgatamos esse debate na sociedade?
Maria do Rosário - Essa questão é importantíssima. Porque o discurso bolsonarista tem como um dos pontos de partida, além do ataque às mulheres, da tentativa de subjugar, de nos dizer como nós devemos ser, quem nós devemos ser, dizer do poder que tem de ser violento contra nós mulheres, o discurso bolsonarista sempre fomentou o ataque aos direitos humanos. Sempre tentou desconstituir. É que os direitos humanos sempre estiveram na centralidade de tudo o que nós conquistamos no Brasil. Mesmo da democracia limitada que nós temos.
Foram os defensores e defensoras de direitos humanos que adentraram nos espaços de tortura e violência para salvar as pessoas que eram vítimas, ao longo de toda a história brasileira, particularmente contra a ditadura. Então quando a extrema direita, o bolsonarismo ataca os direitos humanos, fez um discurso para atacar o cerne, o núcleo central do pensamento humanista.
E ao sermos pessoas humanas, diante do sofrimento do próximo e protegermos uns aos outros como parte de uma família humana, nós nos importamos e agimos.
E quando eles atacam os direitos humanos, dizendo que os direitos humanos defendem bandidos, eles desumanizam as pessoas de um modo tal. O que mais me impressionou ao longo desse período, os ataques bolsonaristas aos direitos humanos, foi muitas vezes ver focalizado esse ataque em pessoas, até mesmo cujo o perfil era atacado pelo bolsonarismo
Porque quando eles atacam os bandidos, eles nos colocam, todos nós que não concordamos com eles, como os bandidos. Nós mulheres, nós negros, as pessoas que vivem nas periferias. Quem discorda é bandido. É a mesma lógica que a ditadura teve do inimigo interno. Com isso, eles justificaram toda a violência política do último período. Aos defensores de direitos humanos, as organizações não governamentais. Vamos lembrar quantas vezes tentaram fazer CPI das ONGs, CPI contra os movimentos, como atacaram a lei Rouanet para atacar a cultura, como tudo o que pudesse chegar à população. Quantas vezes tentaram atacar os movimentos sociais? Há quanto tempo tentam criminalizar a luta do povo? Quem luta pela terra, quem luta pela moradia, quem luta.
Porque quando eles atacam os bandidos, eles nos colocam, todos nós que não concordamos com eles, como os bandidos. Nós mulheres, nós negros, as pessoas que vivem nas periferias. Quem discorda é bandido
O bolsonarismo cria a banalidade do mal, da violência e age sobre ela, e onde eles foram mais eficientes quanto a isto, foi onde a democracia brasileira não chegou, nas forças policiais de um modo geral. Então, ao discursar contra os defensores de direitos humanos, eles criaram uma falsa ideia de que defendem a vida dos policiais e das policiais. É totalmente falso, porque na verdade o que preside na formação das polícias no Brasil é, desde sempre, o mesmo discurso bolsonarista. São raros os momentos em que as polícias brasileiras tiveram uma formação diferente no seu âmago, disso do que eles discursam.
Mesmo no marco da Constituição de 1988, quantas violações aos direitos humanos são produzidas pelas polícias? Mesmo com o crescimento da democracia, quanto tortura permaneceu existindo nas delegacias, nos presídios. No entanto, o bolsonarismo que forma ideologicamente as polícias para a continuidade da tortura, nunca conseguiu se importar ou fazer diminuir a violência contra os policiais. Tanto é que este é o país que continua sendo onde mais a polícia mata e onde mais morre. Esta é uma lógica que eles têm. Mas a cada triste morte de um policial, ao invés de fazer superar esse raciocínio, eles aprofundam este raciocínio.
E nós não fomos também como campo popular, esquerda, movimentos, competentes para desfazer esse discurso existente nas polícias. Mas não é porque nós não abordamos adequadamente o tema da segurança pública. Há determinados setores que criticam a esquerda, dizendo que a esquerda não abordou adequadamente a segurança pública. Eu acho que a esquerda não abordou adequadamente o militarismo e a formação da segurança pública.
Não há na esquerda nenhuma leniência ou apoio a violência de quem quer que seja. A esquerda não investe em milícias, não fomenta criminosos, não apoia nenhuma forma de violência. Ser uma pessoa de esquerda e ser uma pessoa defensora de direitos humanos é, por óbvio, posicionar-se contra a violência. Então, é falsa a crítica existente na própria esquerda muitas vezes de que nós não conseguimos abordar as polícias porque tratamos da segurança pública a partir dos direitos humanos. Nós tratamos pouco a partir dos direitos humanos.
Nós precisávamos ter formado mais as forças de segurança e misturado mais segurança com as demais políticas públicas do Brasil. Eu acho que é disso que o nosso país carece. De compreender, não a segurança pública como algo separado da educação, da saúde pública, das universidades, das comunidades, da sociedade, de um modo geral. É preciso incluir esses profissionais da segurança na vida da sociedade, garantindo a eles que nós nos importamos com as suas vidas. Mas que é preciso reduzir toda a violência para que eles, inclusive, como nós queremos, estejam a salvo da violência também.
Bolsonaro armou as milícias. Todo o crime organizado hoje está mais armado que as polícias. Mas o que ele oferece as polícias então? Unicamente uma coisa: impunidade diante do abuso de autoridade e da violência. Por isso a violência só cresce no Brasil. Porque ela cresce por todos os lados. Ela cresce nos amigos milicianos do Bolsonaro, naqueles que utilizam das armas que ele liberou para o crime e cresce também nas polícias. Não há solução. Não há saída para a população em um sistema governado pela extrema direita no que diz respeito a violência, porque o núcleo central ideológico da extrema direita é a coação armada da população, seja pelo crime, seja pelas polícias. É uma ordem contra cidadania.
Bolsonaro armou as milícias. Todo o crime organizado hoje está mais armado que as polícias. Mas o que ele oferece as polícias então? Unicamente uma coisa: impunidade diante do abuso de autoridade e da violência
BdFRS - Para finalizar, quais serão os seus principais projetos nesse novo mandato que tu chegas como uma das deputadas mais votadas aqui do estado?
Maria do Rosário - Olha, eu sou bem votada porque esses votos pertencem a muitas pessoas. Eu estou muito satisfeita com este resultado, mas eu preciso compartilhar com muitos movimentos sociais, com todas as pessoas que participam das causas nas quais eu trabalho junto com elas.
Eu levo muito a sério profundamente que a tarefa de representação jamais pode substituir a população. E esse mandato aqui debate o orçamento, debate emenda da parlamentar com os movimentos populares, escuta propostas nas periferias, trabalha na formação política. Se inspira na luta das mulheres, das feministas, na luta das mulheres da agricultura familiar, das mulheres do MST, da Contag, da Fetraf, da luta antimanicomial, na luta dos negros e negras Das crianças e adolescentes, que é minha origem de trabalho da educação.
Eu quero compartilhar a votação com todas para dizer que no meu caso, eu acho que as pessoas não votam em mim, elas estão votando em causas. Elas estão votando nas causas que eu acredito ter a responsabilidade de ser uma pessoa exercendo o mandato ao lado das outras pessoas que exercem outros mandatos.
As pessoas exercem mandatos nos sindicatos, nas associações de bairro, nos movimentos populares, na comunicação, tantas causas que elas carregam. E o que eu tenho feito é ser uma pessoa no meio de muitas outras tentando então trazer esse trabalho do Parlamento. E eu gostaria de, no próximo período, radicalizar isto. Radicalizar em um sentido democrático de atuação no Parlamento para que as pessoas saibam que nós podemos disseminar uma educação política que não dependa dos eleitos. Mas que faça como que o poder da sociedade chegue às eleições, oriente as políticas públicas.
Passando por diferentes mandatos eu vejo que, ou se radicaliza a democracia ou nós seremos reféns da lógica de destruição que o Brasil tem experimentado cada vez que a população levanta a cabeça para garantir seus direitos.
Então eu quero me dedicar muito a fomentar e apoiar os comitês populares de luta. E quero debater isso, debater a formação política, utilizar este mandato para debater a formação política de forma direta com a população, criando novas representações, novas formas de exercício da política. Ou seja, eu realmente quero que este mandato, e a minha participação seja muito dentro de uma dimensão coletiva. Carregando as causas que a gente tem, mas fazendo com que o protagonismo dessas causas, não seja pessoal, mas seja de uma coletividade cada vez maior e mais consciente de que o poder só é limpo quando ele é transparente e é serviço e capaz de trazer as pessoas ao exercício dele e não ser exercido de forma individual.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko