Fazer da defesa um verdadeiro ataque parece ser uma estratégia contínua da Casa Branca, independentemente de seu líder. É o que ficou claro com a publicação da "Estratégia de Defesa Nacional", um documento de 48 páginas assinado por Joe Biden, onde o presidente dos Estados Unidos descreve como sua "administração aproveitará esta década decisiva para promover os interesses vitais da América, posicionar os Estados Unidos para superar nossos concorrentes geopolíticos, enfrentar desafios compartilhados e colocar o mundo em um caminho em direção a um amanhã mais brilhante e mais esperançoso".
O texto é bastante nominal sobretudo na parte dos "concorrentes geopolíticos", onde Biden coloca a Rússia e a China como principais ameaças ao interesse estadunidense. Em conversa exclusiva com o Brasil de Fato, Eric Gomez, consultor sênior para a Cato Institute para assuntos militares, deu seu parecer sobre o documento.
"O governo Biden parece estar dando continuidade ao pensamento de longa data dos EUA, que sempre disseram que querem poder competir militarmente e se defender da Rússia, da China e do terrorismo – tudo ao mesmo tempo". Ainda segundo Gomez, essa "ideia expansiva" existe sobre o enquadramento democracia versus autocracia. Ou seja, em alguns casos, os Estados Unidos lançam mão de um sistema político para definir seus inimigos – mas só quando lhe convém.
"Os sauditas não vivem sob uma democracia, mas eles não estão tentando arrancar pedaços de territórios no Oriente Médio, o que significa que podemos trabalhar com eles, certo? É assim que Biden meio que tenta justificar essa 'aliança'", continua Gomez, que acha que essa é uma ponderação importante a se fazer, mas não necessariamente honesta. "Não é exatamente democracia versus autocracia, é democracia versus revisionismo. E aí acho importante dar nomes aos bois e ser transparente: assumir que os EUA quer manter o status quo territorial ou quer manter um certo nível de estabilidade internacional".
Uma leitura semelhante vem do pesquisador, autor e palestrante Ashley Smith, que conversou com a reportagem do Brasil de Fato depois de assinar um texto intitulado "A estratégia de segurança nacional de Biden é uma defesa da dominação dos EUA, não da democracia".
Smith abriu a conversa dizendo que não estava surpreso com o documento, e explicou porquê: "ele (Biden) se cerca de um grupo bastante talentoso de imperialistas estrategistas, que entenderam que as estruturas do capitalismo global e a dinâmica da competição imperial mudou profundamente. Agora, a hegemonia americana é ameaçada por dois grandes concorrentes: a China e a Rússia. A Casa Branca apresentou uma estratégia de desenvolvimento econômico que se apoia em investimentos em manufatura de alta tecnologia, modernização das forças armadas dos EUA e a união de aliados para uma grande competição de poder com China e Rússia. Então, tudo o que Biden disse em sua Estratégia de Segurança Nacional, eu acho, foi apenas uma declaração mais nítida e clara do que ele prometeu durante a campanha".
Ainda de acordo com Smith, faz sentido que o documento assinado pelo presidente dê a entender que os chineses são uma ameaça superior à Rússia, mesmo o país de Putin fazendo ameaças nucleares e promovendo ataques às tropas ucranianas. "Essa é a primeira vez que os EUA enfrentam um verdadeiro desafio econômico, porque a China é agora a segunda maior economia capitalista do mundo. Tem capacidade crescente e indústria de alta tecnologia. Não é apenas um produtor de baixo custo, e é um financiador gigante do desenvolvimento em todos os tipos de partes do mundo através da iniciativa Um Cinturão e Uma Rota. A China está desenvolvendo suas forças armadas para competir com os Estados Unidos na Ásia e na Ásia-Pacífico, e cada vez mais procurando bases em outros lugares. Assim, os EUA estão preocupados que sua posição de liderança global esteja ameaçada", disse Smith.
O recebimento deste documento pelas partes envolvidas é o que preocupa Gomez. "Me parece que os chineses vão olhar para este documento como evidência da estratégia americana de contenção da China. Eles (os chineses) vão dizer 'estávamos certos o tempo todo em não confiar neles (os americanos). Estávamos certos o tempo todo, em continuar fazendo o que estamos fazendo no front militar'. Isso tudo é o grande dilema de segurança: você faz uma coisa que você entende como defensiva, mas que o oponente interpreta como ofensiva, o que provoca uma reação. Nós estamos nisso agora, e eu não vejo uma saída. Vai ser um grande e difícil inverno para a China e para os Estados Unidos", declarou o especialista.
O sinal de alerta também acende para Smith, que pede união da esquerda para evitar o pior. "Se você olhar para o que eles estão falando sobre política industrial, sobre modernização competitiva das forças armadas dos EUA e reunir estados para disputar com a China e a Rússia, o que nos coloca no caminho para o tipo de dinâmica que levou à grandes guerras do século 20 – é aterrorizante. E eu acho que a esquerda ao redor do mundo tem que acordar, prestar atenção e começar a descobrir como resistir a esse impulso para uma grande competição imperialista, gravemente assustadora".
O escritor relembra, porém, que a esperança vem da força popular. De acordo com Smith, a sociedade nunca esteve tão ativa como agora, e relembra os movimentos de Black Lives Matter, Occupy Wall Street, a Primavera Árabe e outras revoltas populares que impulsionam grandes mudanças mundo afora. "Temos que ter esperança na ação da sociedade frente aos desafios políticos. Vamos construir organizações internacionais, partidos políticos, movimentos sociais e organizações sindicais para nos unir através das fronteiras contra a loucura de nossos inimigos comuns, que são as classes dominantes e os estados dos diferentes países ao redor do mundo?".
Edição: Thales Schmidt