Não basta perguntar por que um Presidente da República consegue ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo.
Ivann Lago
O Brasil está em processo de desagregação democrática desde os "distúrbios" de 2013, atravessando a destituição da Presidenta Dilma Rousseff, a prisão política do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a eleição de Jair Messias Bolsonaro, em 2018, através da mais escancarada fraude virtual de nossa biografia política, pactuada com a mídia corporativa, a sociedade alienada, um magistrado parcial, um Ministério Público traiçoeiro.
Desde então, o país tremula entre ameaças de golpe, militarização de cargos públicos, negação de direitos, recuo de conquistas civilizatórias, aprofundamento das desigualdades sociais, escuta da linguagem de um simulacro de presidente pífio, desnutrido de capacidade cognitiva, sem postura ética e que se deleita com o discurso de ódio, a desumanidade, a necropolítica. Tudo isso culminando com o vexame das disputas eleitorais, em um dos processos mais aviltantes de nossa caminhada política, protagonizada pela caterva bolsonarista, na perspectiva arrogante de sua reeleição para presidente.
Ivann Carlos Lago, doutor em sociologia e professor da Universidade Federal da Fronteira do Sul (UFFS/RS), em seu artigo O Jair que há em nós, acredita que o Brasil precisa de décadas "para compreender" o que aconteceu em 2018 com a escolha de um presidente que respondeu a processo administrativo no Exército, foi acusado de organizar ato terrorista, com denuncia de "rachadinha", envolvimento com milícias, "ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar". Alguém que o sociólogo identifica como "o lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro".
Expressa Ivann Lago que o "homem médio/cidadão comum" se enxerga no presidente ofensivo com mulheres, indígenas, nordestinos, homossexuais. Sente-se pessoalmente no poder quando "enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais", que veem o mundo com uma dimensão que esse "homem comum" não consegue alcançar. E esse cidadão se sente empoderado quando seu líder prega que bandidos e opositores têm de morrer.
Diogo Bogéa, doutor em Filosofia, professor da UERJ, autor da obra Psicologia do bolsonarismo: porque tantas pessoas se curvam ao mito? refere-se ao imaginário bolsonarista que define a esquerda como "inimigos" que dominam as instituições. E remete o leitor a uma reflexão sobre as expectativas de violência bolsonarista nas eleições de 2022, indagando se a famiglia atualmente no poder vai aceitar possível aniquilamento institucional.
Bogéa anuncia não apenas sua perplexidade, como também expõe questionamentos que devem permear por todos os diagnósticos sobre esse apavorante tempo que estamos experimentando no Brasil. Sem a pretensão de usurpar a excelência das análises de cientistas políticos, temos que disputar, em nome das liberdades democráticas, a resposta ao que indaga o filósofo:
"Como explicar que pessoas muito bem formadas em nossas universidades – professores, engenheiros, advogados – recusem vacinas, acreditem em versões alternativas delirantes da História do Brasil e do mundo e tomem as fake news mais toscas como as mais puras realidades? Como explicar que médicos rejeitem vacinas e invistam em medicamentos que os próprios laboratórios fabricantes (haveria alguém mais interessado em promovê-los?) já desacreditaram para o tratamento da covid?"
A narrativa sobre o plano infeccionado e letal de Jair Bolsonaro estarrece parte do país que repudia sua figura sinistra que ameaça as democracias do mundo. Não basta a esse protagonista impar da sordidez política de maior pontuação em nossa história pisotear a dignidade de nosso povo, tripudiar sobre a honra de quem se nega a dar palco para suas encenações medíocres e vergonhosamente construídas no falso "jeitão" de homem reto e crente. Essa versão desprezível de Chefe de Estado se portou como um bárbaro em território indígena, em 2016.
Rubens Valente elucida o episódio que a Campanha de Jair Bolsonaro trata como "descontextualizado", sobre a doentia curiosidade do presidente em assistir ao que sua ignorância antropológica definiu como "cultura" dos indígenas. Em entrevista ao New York Times, Bolsonaro relatou estar em Surucucu, (Terra Indígena Yanomani) e alguém disse que estavam "cozinhando" um índio. Relatou ao jornal o desejo de "ver o índio sendo cozinhado", mas ninguém da comitiva quis aceitar o convite, então não quis ir sozinho. "Aí não fui. Senão comeria o índio sem problema algum. É cultura deles."
O fato causou a indignação de Junior Hekurari, Yanomani, Presidente do Considi (Conselho do Distrito Sanitário Indigena), que solicitou ao jornalista: "Coloca aí na sua matéria: presidente candidato mentiroso. Esse presidente não tem respeito com o ser humano". Afirmou não existir relato ancestral nem atual de canibalismo entre os grupos indígenas Yanomanis de Surucucu.
Essa informação também veio de Alcida Rita Ramos, doutora em Antropologia, professora Emérita da UnB, que participou da demarcação de Terra Yanomani e explica que o ritual funerário Yanomani passa pela cremação do cadáver, contrastando "cruamente com as tolices perversas e constrangedoras que circulam pelas redes sociais".
Jair Bolsonaro suscita horror ao mundo civilizado, de modo especial, por sua indiferença e o modo dissoluto e desumano como enfrentou a pandemia. Em algum momento, parece incorporar as características de Hitler, de "sua total falta de sentimentos, seu desprezo pelas instituições estabelecidas e sua falta de contenções morais", como descreve o psicanalista Walter C. Langer, em sua obra A mente de Adolf Hitler: o relatório secreto que investigou a psique do líder da Alemanha nazista, resultado do estudo que realizou sobre a mente do ditador alemão, solicitado por estrategistas militares norte-americanos, em 1943.
Tal qual Adolf Hitler, Bolsonaro tem perfeita consciência do mal que sua máquina de ódio produz. Segundo Ivann Lago, seu "show de horrores" não causa aversão, não envergonha nem produz qualquer rejeição no bolsonarista. "Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro."
Assim, quando um bolsonarista vai pra rua, não é na defesa de um governante "lunático e medíocre" [...]. "Ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada."
Edição: Nicolau Soares