A recente investida russa é marcada por uma mobilização, anexação de novos territórios e fortes bombardeios por toda a Ucrânia. Kiev, por outro lado, mantém a sua contraofensiva e coloca em xeque o controle de Moscou sobre Kherson, umas das regiões anexadas pela Rússia. Enquanto isso, tímidos acenos para a possibilidade de negociações de paz mantêm o impasse na crise entre Rússia e Ucrânia.
Esta semana começou com graves acusações por parte da Rússia de que a Ucrânia estaria concluindo a produção de uma arma radiológica chamada de "bomba suja", que combina material radioativo com explosivos convencionais. Na segunda-feira (24), o Ministério da Defesa russo acusou Kiev de planejar usar o armamento no intuito de organizar uma provocação para acusar a Rússia de usar armas de destruição em massa e lançar uma campanha antirussa no mundo.
No mesmo dia, o ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, realizou conversações com altos oficiais militares da Grã -Bretanha e dos EUA para alertar a comunidade internacional sobre a suposta ameaça ucraniana.
“Como resultado da provocação de ‘bomba suja’, a Ucrânia espera intimidar a população local, aumentar o fluxo de refugiados pela Europa e expor a Federação Russa como terrorista nuclear”, afirmou o chefe das tropas de proteção radiológica, química e biológica das Forças Armadas Russas, tenente-general Igor Kirillov.
Em resposta, os EUA, a Grã-Bretanha e a França emitiram uma declaração conjunta, classificando a declaração do Ministério da Defesa russo como uma "insinuação". A Ucrânia negou a produção de uma "bomba suja" e convocou inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica ao país para realizar monitoramento.
A narrativa russa sobre a suposta ameaça radioativa da Ucrânia é o mais recente desdobramento da atual fase da operação militar da Rússia no país vizinho, que completou oito meses na última segunda-feira (24). As movimentações de Moscou e a reação da comunidade internacional refletem o cenário de impasse que a guerra chegou atualmente.
Em uma primeira etapa da anunciada “operação especial militar” na Ucrânia, em 24 de fevereiro, a Rússia realizou uma tentativa de blietzkrieg, realizando massivos bombardeios no território ucraniano, inclusive nos arredores da capital Kiev. Com amplo apoio internacional e manutenção da resistência mobilizada das forças ucranianas, não foi alcançada a capitulação do governo ucraniano e o Kremlin modulou os seus objetivos, anunciando um recuo das tropas e concentrando as ações militares em Donbass, a região das repúblicas separatistas pró-Rússia.
Nos primeiros meses da guerra, o analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, em entrevista ao Brasil de Fato, defendeu a tese de que o Kremlin não estava se preparando para uma guerra total, considerando que as tropas executariam uma operação militar rápida. De acordo com ele, o objetivo inicial era realizar uma “operação de intimidação" para forçar uma mudança de regime na Ucrânia.
Assim, entre março e agosto, a ofensiva das tropas russas no sul e sudeste da Ucrânia foi relativamente bem-sucedida com o foco na tomada de controle de regiões como Donetsk, Lugansk, Kherson, Zaporozhye e Kharkov.
Uma terceira etapa que altera a dinâmica do conflito se inicia no fim de agosto e início de setembro com o anúncio da contraofensiva ucraniana. Em outubro, as forças de Kiev realizaram importantes retomadas de territórios ocupados pela Rússia, principalmente na região de Kharkov.
O contraataque ucraniano levou a uma nova inflexão russa em setembro, marcada pelo anúncio da mobilização de 300 mil novos reservistas para a guerra, a anexação de territórios ocupados na Ucrânia, novos bombardeios massivos em todo o território ucraniano, além das ameaças de uso de armas nucleares. Além disso, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou uma lei marcial nos territórios anexados das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, e nas regiões ocupadas de Kherson e Zaporozhye, na última quarta-feira (19)
Em entrevista ao Brasil de Fato, a cientista política e do Centro de Estudos Russos e do Leste Europeu da Universidade de Helsinque, Margarita Zavadskaya, observa que toda a trajetória da estratégia russa na Ucrânia até aqui aconteceu sem um planejamento adequado.
“Pressupunha-se uma guerra rápida em 24 de fevereiro, e rapidamente ficou claro, nada ia acontecer de acordo com o plano inicial. Então agora, não é uma opinião somente minha, mas também a de muitos colegas que acompanham a situação, a impressão é de que não existe um plano. Não existe uma estratégia, e existem muitas decisões inconsistentes, como declarar um estado de guerra, mas não anunciar que existe uma guerra”, argumenta.
De acordo com a analista, “todas as decisões são tomadas de acordo com a circunstância e isso é uma notícia bem ruim”, porque “é difícil compreender o que quer o lado russo”. “E se nós não entendemos o que a Rússia quer, então é muito difícil realizar com ela quaisquer negociações”, acrescentou.
Enquanto isso, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou nesta terça-feira (25) que a Rússia está pronta para o diálogo com todos os países, incluindo os EUA e o Papa Francisco, a fim de chegar a um acordo na Ucrânia.
“Estamos prontos para discutir tudo isso com os americanos, com os franceses e com o pontífice. Repito mais uma vez: a Rússia está aberta a todos os contatos. Mas devemos partir do fato de que a Ucrânia codificou [por lei] a não continuação das negociações”, disse Dmitry Peskov.
Em 30 de setembro, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky assinou um decreto declarando "a impossibilidade de negociações com o presidente russo Vladimir Putin".
Para a cientista política Margarita Zavadskaya, a possibilidade de haver negociações ou não será determinada pelos desdobramentos no campo de batalha.
Segundo a pesquisadora, entre muitos analistas há uma espécie de "wishful thinking", no qual todos querem que isso tudo termine o mais rápido possível, mas infelizmente a situação atual nos mostra que “pode ser um conflito desagradavelmente prolongado que não se resolverá no decorrer de um mês".
“Como a Ucrânia não pretende iniciar negociações […] e nós não entendemos exatamente o que quer a Rússia, então, no mau sentido, nós temos essa situação de impasse”, completa a cientista política.
Edição: Thales Schmidt