Muitos que não sabem acham que é porque nós somos burros
Há uma diversidade de lutas, sonhos e bandeiras políticas em comum entre os povos que convivem no Semiárido brasileiro, território que abrange todos os estados do Nordeste e o Norte de Minas Gerais. Um exemplo de articulações entre famílias agricultoras, organizações e movimentos populares na região é a defesa da Convivência com o Semiárido.
“Conviver com o Semiárido significa criar uma política de estoque de água, alimentos para as pessoas e para os animais, que conserve a caatinga como fonte de alimento, que preserve os mananciais. É um conjunto na perspectiva do estoque”, define Naidson Batista Quintela, ativista pelo Semiárido e trabalhador do Movimento de Organização Comunitária (MOC), em Feira de Santana (BA).
Apesar da formalização das propostas de Convivência com o Semiárido datarem o ano de 1999, Naidson Quintela destaca que suas origens são mais remotas e partem da sabedoria popular de quem sempre sobreviveu na região. Enquanto o mundo temia o 'bug do milênio', organizações e movimentos do campo se encorajavam para apresentar a Declaração de Convivência com o Semiárido. Nesse processo também surgiu a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), hoje integrando uma rede de mais de 3 mil organizações.
A proposta de Convivência com o Semiárido surgiu para ruir as antigas propostas políticas de "combate à seca", que predominavam na região com ações assistencialistas e que favoreciam a chamada Indústria da seca, ou seja, oligarquias que se aproveitavam das estiagens para ampliar seu poder político e econômico. Assim se pensava doações e estímulo para êxodo rural.
“Pensar que o combate à seca levava ao enriquecimento de um mesmo grupo social e ao empobrecimento e condução à miséria de outro grupo social. A Convivência com o Semiárido parte de outro pressuposto. Não se pode combater a natureza, mas temos que conviver com ela", ressalta Quintela, que defende ações e programas estruturantes para o direito à água, sementes, crédito e desenvolvimento agroecológico.
Acesse: Momento Agroecológico
Imaginário
Nas redes sociais, declarações recentes do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) fizeram repercutir o tema de racismo ambiental e sobre o imaginário de parte da população brasileira sobre o Semiárido. Durante a campanha eleitoral, o ocupante do Palácio do Planalto alegou que jamais faz falas ofensivas às pessoas do Nordeste.
"Ele [Lula] agora está usando: 'E o Bolsonaro está atacando os nordestinos como pessoas analfabetas'. Me apresente um vídeo, eu atacando os nordestinos. Não tem.", preferiu o candidato PL no último dia 7, no Palácio da Alvorada.
O Brasil de Fato selecionou alguns momentos (confira o vídeo no final do texto) em que o atual presidente se referiu às pessoas no Nordeste. Em um deles, ao ser perguntado se estava virando 'cabra da peste', Bolsonaro responde aos risos:
Só tá faltando crescer um pouquinho a cabeça
O que pode parecer engraçado para Bolsonaro carrega resquícios de um imaginário perverso. Na região semiárida, o tema da desnutrição foi historicamente retratado mais como uma "tragédia sem solução" do que uma "denúncia em busca de solução". Ou seja, uma espécie de 'versão única' por mais de um século, que não transforma o local e desumaniza as pessoas.
"Queremos ser respeitados nessa perspectiva [de convivência], como outros espaços do país e do mundo são respeitados. Sem significar com isso que queremos desprezar outras experiências e outras dimensões de vida, mas nós queremos prezar, querer bem, ter orgulho do que somos. Porque nós somos gente e como gente merecemos e temos esse direito e esse apreço.”, defende Quintela.
Ao mesmo tempo, o ativista destaca que há um processo de mudança na concepção sobre o Semiárido, rebatendo a constituição de estereótipos, como afirmado pelo presidente. Para ele, essa mudança no imaginário anda de mãos dados com a mudança de uma perspectiva de assistencialismo para as políticas adequadas para a região.
“Hoje nós já temos muito desse imaginário modificado. Essa modificação diz assim, ‘eu não preciso de esmola, eu preciso preciso - e tenho direito - a políticas adequadas”, pontua.
Enquanto políticas de Convivência, a ASA defende uma série de programas e ações como a democratização no acesso à água, a preservação das sementes criolas e a educação contextualizada.
Leia também: A dinâmica das narrativas: recontar histórias é conquistar direitos populares no semiárido
Analfabetismo
Em outra declaração, Bolsonaro associou os estados que registraram maior percentual de votos em lula no primeiro turno das eleições, com o analfabetismo.
Lula venceu em nove dos 10 estados com maior taxa de analfabetismo. Você sabe onde são esses estados? No Nordeste
A agricultora Silvanete se orgulha do que aprendeu com os pais dela, enquanto saberes da vida. Ela defende o direito à educação, assim como seu pai e sua mãe lutaram para que nenhum dos doze filhos deixassem os estudos.
"Eu vejo meu pai, que mal consegue escrever o nome dele, mas se tem alguém que sempre defendeu os filhos, ‘vocês precisam continuar estudando’, foi ele. Teve 12 filhos e não pode dizer a ninguém que nenhum não foi para a escola. E não foi na época do Bolsa Família, sabe? Não tinha Bolsa Família. Mas ele defendia fortemente meus filhos. Vocês precisam continuar estudando. que grande professor”, afirma a agricultora.
Aprendendo com a escola, com a família, com os trabalhos na área da saúde e da educação, Silvanete faz questão destacar o Semiárido e o Nordeste como local de grandes sábios e sábias de saberes das oralidades, mantido como heranças ancestrais. Ao mesmo tempo que defende o direito à educação, ela reforça a importância dos saberes populares e as experiências de vida na opinião de quem vive na região.
“Muitos que não sabem acham que é porque nós somos burros, aí chama de analfabeto, sabe? Analfabeto é aquele que não consegue enxergar", salienta.
Sonhando com a terra
A agricultora Maria Silvanete Lermen mora no comunidade Sítio dos Paus Dóias, em Exu, no sertão do Araripe de Pernambuco. Trabalhando na roça desde pequena, ela precisou deixar o local em que nasceu aos 15 anos de idade.
Hoje casada e mãe de quatro filhos, Silvanete Lermen lembra que sempre pensou em voltar, mas com as condições para construir o roçado dos sonhos. O desejo se realizou em 2006, quando percebeu que poderia acessar políticas para ter acesso à agua para consumo e para produção, crédito e até energia elétrica que faltava no local.
“Eu imaginava voltar para o campo e ter um roçado diverso. Aquele roçado que estava no meu imaginário, que que tinha o feijão, a mandioca, mas também o gergelim, a macaxeira, o jerimum, o milho, e que tivesse a fruta também”, detalha Lermen
A história da agricultura é um exemplo de contraste com outra fala de Jair Bolsonaro, registrada em vídeo:
Você vê meninas no Nordeste que batem a mão na barriga grávida e falam o seguinte - que tem também o auxílio natalidade: ‘esse aqui vai ser uma geladeira, esse aqui vai ser uma máquina de lavar. E não querem trabalhar
Defendendo a execução de políticas de convivência com o Semiárido e de organização comunitária na luta por direitos, Lermen questiona a persistência de imaginário assistencialista para o povos da região.
"Às vezes, as pessoas acham que o levante nas cidades, principalmente das cidades pequena, é por conta de um Auxílio, de um Bolsa Família. Não é. Não é por conta de um Bolsa Família. É muito mais que isso. É nós voltarmos a dizer que não aceitamos mais voltar a trabalhar dias e dias de serviço quando os caras gritam que vão pagar R$10 por dia", recorda lembrando que seu pai tinha trabalhar como meeiro nas fazendas locais.
Luta pela água
O Programa Cisternas, executado pela ASA, construiu, ao longo de duas décadas, 1,3 milhão de reservatório da chamada 1ª água, para o consumo humano. A articulação afirma que a ação foi "escanteada" pelo governo federal nos últimos anos, mesmo diante da necessidade de ampliação de construções.
Ao invés das obras de Transposição do São Francisco, a iniciativa propõe a descentralização no acesso à agua, por meio de uma tecnologia de domínio das pessoas da comunidade capaz de captar e armazenar a água da chuva.
Além disso, a chamada 2ª água, para a produção de alimentos e criação animal, precisaria também ser melhor desenvolvida entre as famílias. Para Naidosn, pelo 350 mil tecnologias dessa ainda estão pendentes para um avanço na Convivência com o Semiárido.
Em outra declaração, o presidente Bolsonaro também se referiu ao acesso a um bem essencial, que foi historicamente utilizado como moeda de troca na compra de votos.
A gente vê no semblante do nordestino, quando chega a água, parece que ele ganhou na Mega Sena
Ao invés de sorte ou fatalidade, a agricultura Maria do Céu, de Solânea, no território do Polo da Borborema, na Paraíba, destaca o direito à água como essencial na luta de quem convive com o Semiárido.
Ela afirma a importância da história da ASA para a descentralização da água para beber, cozinhar, criar animais e produzir alimentos, afirmando que foram nos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff que o Programa Cisternas mais avançou.
"Aqui no Nordeste a gente tinha uma dificuldade enorme na busca de água. A gente conseguiu sair dessas dificuldades a partir desses governos que reconheceram essa política pública de direito nosso, dos agricultores, das agricultoras, do homem, da mulher do campo", destaca Maria do Céu.
Trabalho
Em outro vídeo, Jair Bolsonaro aparece conversando com um mulher sobre o estado da Bahia.
Vou perder os votos na Bahia agora na eleição. Por que é vantajoso comprar carro na Bahia, Carol? Porque já vem com o freio de mão puxado
Baiano, de Juazeiro, o agricultor Pedro Duarte, conhecido como Pedrinho, destaca que ele e a comunidade têm produzido bastante alimentos, mas que o freio de mão está puxado mesmo por quem detém o poder da execução das políticas públicas. Disposto, Pedrinho ressalta que não falta trabalho na sua comunidade, mas há dificuldade de escoar a produção.
Relembre: Bolsonaro repete postura e veta novo PL que previa socorro para agricultura familiar
Ele cobra a retomada da efetividade do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) como uma forma reconhecer a disposição agricultura familiar, que tem encarado uma "sonolência governamental".
“Esse é um trabalho que a gente vem fazendo, mas que está deixando a desejar não pelo lado dos agricultores, mas lado de lá, de cima. Nós ainda não conseguimos uma política de quatro anos para cá. Você sabe bem quem é que está aí, que deixou de dar o apoio ao agricultor”, critica.
Assista:
Edição: Lucas Weber