A possibilidade de privatização da Sabesp, sociedade anônima de capital misto que gere os serviços de água e esgoto no estado de São Paulo, pode deixar milhões de pessoas sem acesso a água e esgoto. A ideia já foi defendida publicamente pelo candidato bolsonarista ao governo do estado, Tarcísio de Fretas (Republicanos).
Em fevereiro deste ano, ainda como ministro da Infraestrutura do governo Jair Bolsonaro (PL), Tarcísio criticou o então governador do estado João Doria (à época no PSDB) por falhar em privatizar a empresa. "O atual governador prometeu privatizar, mas não fez. Eu vou privatizar", afirmou em evento promovido pelo site de finanças TC (a partir de 1h02).
O candidato chegou a afirmar que a venda renderia ao governo estadual de R$ 60 a R$ 80 bilhões – mais do que o valor de mercado avaliado pela própria Sabesp, de cerca de R$ 31 bilhões.
A Sabesp atende atualmente 375 municípios paulistas onde vivem 28,4 milhões de pessoas. É uma empresa de economia mista – de controle estatal, mas com ações negociadas na bolsa. Lucrou R$ 1,4 bilhão somente no primeiro semestre deste ano. Em 2021, o lucro chegou a R$ 2,3 bilhões.
"A Sabesp hoje é a maior empresa de saneamento da América Latina, que há mais de 20 anos não tira um real dos cofres do Estado, ao contrário: colocou vários bilhões na forma de dividendos nos últimos anos para que o governo use esse dinheiro para investir em outras áreas. Não há nenhuma justificativa plausível para privatizar a Sabesp", avalia José Antônio Faggian, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema).
"Só interessa privatizar a Sabesp a quem vai comprá-la: o grande capital que vem aqui para simplesmente obter lucro", diz o sindicalista.
Mais do que isso, Faggian explica repassar a gestão de serviços essenciais como água e saneamento para empresas privadas, que por definição têm como prioridade o lucro, pode significar um enorme prejuízo para a população paulista – especialmente os mais vulneráveis.
Repercussão negativa
Fernando Haddad (PT) criticou fortemente a proposta, afirmando que seria um "erro monumental". "Sou terminantemente contra a venda da Sabesp, do controle acionário da Sabesp, como prega o Tarcísio de Freitas. Será um erro monumental que vai penalizar a população de baixa renda", disse em entrevista ao Estadão.
Com a repercussão negativa, Tarcísio mudou seu discurso. Em entrevista à rádio Eldorado, afirmou que vai "estudar privatização desde o primeiro dia e se eu chegar à conclusão de que a privatização vai promover esse objetivo, vai melhorar a prestação de serviços e proporcionar uma tarifa mais baixa, nós vamos seguir com a privatização".
O mercado financeiro, no entanto, parece não ter acreditado na mudança de rumo do candidato. As ações da estatal subiram 17% na primeira sessão da Ibovespa após o primeiro turno das eleições, no dia 2 de outubro.
Analistas conectaram a alta diretamente à liderança conquistada por Tarcísio, avaliando que sua vitória aumentaria a probabilidade de privatização da empresa. "Isso porque o candidato já defendeu abertamente a privatização da companhia, mesmo que nos últimos meses tenha suavizado seu discurso e evitado comentar sobre essa possibilidade", afirmou relatório da XP Investimentos.
A proposta levantada por Tarcísio trouxe também a oposição dos quase 13 mil funcionários da estatal, que veem seus empregos e condições de trabalho ameaçados pela possibilidade de privatização. O Fórum das Entidades, que reúne diversas organizações de trabalhadores da ativa e aposentados ligados à Sabesp (incluindo o Sintaema), tem organizado atos nos principais polos de atuação da empresa no estado para denunciar a proposta de privatização e dialogar com a população.
Nesta terça-feira (25), a mobilização aconteceu na porta da Sabesp, no bairro da Ponte Pequena, em São Paulo (SP), e reuniu centenas de pessoas contrárias à venda da estatal. De acordo com o site do Sintaema, o ato contou o apoio de representantes dos Metroviários, Correios, Advogados e Engenheiros, além da participação da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e dos deputados estaduais Paulo Fiorilo e Jorge do Carmo, ambos do PT de São Paulo.
Novos atos estão ocorrendo durante a semana, em cidades como Botucatu, Lins, Franca e Itapetininga. "Estamos fazendo atos em todo o estado, fazendo debate com a população e com as lideranças dos pequenos municípios, vereadores, prefeitos, dizendo qual será o prejuízo se a Sabesp for privatizada", afirma Faggian. "Temos a questão corporativa de defender os nossos empregos, mas para além disso a gente tem esse compromisso com a saúde da população de São Paulo, que com certeza vai ser prejudicada se a Sabesp for privatizada.
Faggian defende que o acesso a serviços essenciais à vida, como água e saneamento, não pode ser garantido apenas para quem pode pagar por eles.
"Água é um produto essencial para a vida, não pode ser tratado como mercadoria. Esgoto da mesma forma, saneamento básico não pode ser tratado como uma simples mercadoria porque trata da vida e da saúde da população", afirma.
"A gente sabe que a cada real investido em saneamento, se economiza 4 reais em saúde. As doenças de veiculação hídrica são um grande fator de mortalidade infantil, por exemplo, nos municípios onde o saneamento não é bem feito", afirma. "Então a empresa que gerencia o serviço de água e esgoto não pode ter como principal objetivo o lucro. Tem que garantir o acesso a esses serviços a todos, independentemente de sua capacidade de pagamento. Porque diz respeito à saúde e à vida."
Interesse do capital X direitos das pessoas
De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 84% dos brasileiros são atendidos com abastecimento de água tratada. No caso de rede de esgoto, o acesso é garantido a apenas 55% da população.
Em São Paulo, esses números são melhores: 97% das residências têm acesso a água encanada, 90% a coleta de esgoto e 70% do esgoto é tratado. No entanto, essa vantagem aparente pode ser um complicador em caso de uma privatização.
Faggian explica que, dos 375 municípios paulistas atendidos pela Sabesp, mais de 200 recebem o que a empresa chama de "serviço 300%": abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto universalizados. Para os demais, a estatal já tem um plano de investimentos para cumprir as metas estabelecidas no marco regulatório do saneamento, de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033.
O problema é que as cidades e localidades que ainda não são atendidas são normalmente regiões onde a implementação dos serviços é mais difícil e custosa. Ou seja, "a possibilidade de retorno econômico ou é muito pequena ou é nula", na avaliação de Faggian. Essa realidade as torna pouco atrativas para uma empresa privada.
"Esses lugares têm alta complexidade na instalação do sistema, demanda investimentos altíssimos, com possibilidade remota de ter lucro", afirma o sindicalista.
"Mais de 200 dos municípios em que a Sabesp opera tem menos de 20 mil habitantes. Para saneamento, o investimento para universalizar nesses municípios é altíssimo, e a possibilidade de retorno demora muito ou às vezes nem existe, tem que ser feito a fundo perdido. Nesses municípios a iniciativa privada não vai colocar a mão jamais, porque ela quer a possibilidade de lucro", exemplifica.
"É uma falácia dizer que a iniciativa privada vai solucionar esse déficit nessas regiões que ainda não são atendidas. A iniciativa privada quer o grande município, a região metropolitana, as áreas mais ricas do estado, municípios rentáveis que já têm estrutura organizada, sistema funcionando, em que ela pode, com pouquíssimo ou até nenhum investimento, obter um retorno rápido e lucro alto. Nesses lugares que precisa de altos investimentos, a iniciativa privada não terá interesse nenhum. Nessas regiões, a obrigação de fazer é do Estado."
Edição: Thalita Pires