A cada mês que passa, Francisco Oliveira, de 57 anos, entra em mais dívidas para pagar o aluguel. O valor de R$ 600 do Auxílio Brasil é insuficiente para cobrir o valor de moradia, alimentação e quitação das dívidas. Desde agosto deste ano, Francisco perdeu a única fonte de renda que lhe restava após cinco anos desempregado: seu celular foi furtado e, desde então, não consegue mais trabalhar como entregador de aplicativo.
Com as dívidas se acumulando, Francisco decidiu solicitar o empréstimo consignado concedido a beneficiários do Auxílio Brasil. No dia 11 de outubro deste ano, às 10h44 da manhã, ele assinou um contrato com a Caixa Econômica para receber R$ 2.361,60, com a promessa de que o dinheiro estaria disponível em sua conta corrente em até 24 horas. Em pouco tempo, portanto, Francisco poderia comprar um celular e voltar a trabalhar.
As 24 horas, no entanto, já se transformaram em 16 dias. Desde o dia do contrato, Francisco vai todos os dias até a agência da Caixa na Lapa, na zona oeste de São Paulo, para verificar se o dinheiro caiu. Foram 16 viagens em vão.
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Diante da demora, Francisco tentou cancelar o empréstimo, mas foi avisado que teria de pagar uma multa pelo cancelamento. Em uma nova reclamação, foi advertido que a Caixa não estabelece um prazo para transferir o valor, a despeito do prazo de 24 horas comunicado no momento da contratação. "Estou me sentindo desrespeitado, desvalorizado, sem autoestima, porque não sei para onde recorrer, para quem buscar auxílio. Eu preciso voltar a trabalhar", afirma Francisco Oliveira.
O direito ao consignado já passou de fato para "propaganda enganosa" para Francisco. "Eu vejo o governo como oportunista que, visando a reeleição, oferece um produto para a massa, para essa massa se sensibilizar com a atitude dele e votar nele. Só que eu espero que o povo possa entender de que, se ele me engana agora, o que que ele vai fazer depois de reeleito?", questiona.
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Na última segunda-feira (24), antes de Francisco solicitar o valor, o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu por 24 horas as linhas de crédito consignado relacionadas ao Auxílio Brasil após reconhecer a possibilidade de uso do benefício para fins eleitorais pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
O TCU, que pediu informações à Caixa sobre a regularidade dos procedimentos do empréstimo, atendeu a um pedido do Ministério Público. O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado afirmou, no pedido, que a oferta de crédito tem "finalidade meramente eleitoral e em detrimento das finalidades vinculadas do banco".
"Não é desarrazoado supor que o verdadeiro propósito dessas ações, ou pelo menos da forma como elas vêm sendo conduzidas, seja o de beneficiar eleitoralmente o atual Presidente da República e candidato à reeleição", assinalou o procurador na solicitação.
Ao Brasil de Fato, Furtado afirmou que "aparentemente houve um desvio de finalidade" no anúncio do empréstimo consignado poucos dias após a realização do primeiro turno das eleições. "Como se trata de um programa social, poderia influir na eleição. O problema está na oportunidade em que programa é criado. Se as circunstâncias fossem outras, não haveria qualquer questionamento", disse.
Entre 10 e 21 de outubro, a Caixa Econômica Federal disponibilizou em créditos consignados R$ 4,2 bilhões a 1,681 milhão de beneficiários.
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A situação de Francisco é a mesma de outros beneficiários do que solicitaram o empréstimo consignado, mas ainda não receberam. Um deles é a esposa de Tadeu Aparecido dos Santos. Ele falou com a reportagem do Brasil de Fato na frente de uma agência da Caixa, no centro de São Paulo, com o filho de 11 meses no colo, enquanto aguardava a esposa, que resolvia o problema dentro da agência. A família espera o dinheiro para alugar "uma casinha" por alguns meses até conseguir voltar a trabalhar. Hoje faz um ano que eles estão em situação de rua.
Reinaldo Costa Martins, de 44 anos, também está na mesma situação. Desempregado, ele está há cinco meses em situação de rua e aguarda o recebimento de R$ 2.389,01 para conseguir comprar um "barraco". "Com dois mil e pouco só dá para comprar um barraco na favela", disse.
Além da apreensão pelo recebimento do consignado, Reinaldo também se preocupa com a diminuição do Auxílio Brasil de R$ 600 para R$ 400, a partir de 2023. "Se o governo baixar para R$ 400, vai dar uma 'ferrada' em nós de novo, né. Sem contar que vai descontar R$ 160 dos R$ 400. Aí nós tá lascado", afirma Reinaldo, referente às prestações do empréstimo que serão descontadas do benefício.
O Orçamento enviado pelo governo Bolsonaro para o próximo ano prevê um Auxílio Brasil de R$ 400. O aumento para R$ 600 foi concedido por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional em julho deste ano, mas vale somente até dezembro deste ano.
Como funciona o empréstimo consignado?
O governo libera o direito ao empréstimo para os beneficiários que recebem o Auxílio Brasil há pelo menos 90 dias, compareceram à convocação do Ministério da Cidadania para atualização cadastral e não têm benefício com data de término. Sobre este último ponto, de acordo com a regra de emancipação, quando um beneficiário consegue um emprego formal, o auxílio deixa de depositado, caso a renda por pessoa da família seja maior que R$ 525.
O empréstimo pode ser de até 40% do benefício permanente, de R$ 400, o que corresponde a uma parcela máxima de R$ 160. O valor total poderá ser parcelado em até 24 meses ou dois anos, sendo cobrada uma taxa de juros de 3,45% ao mês.
O índice é maior do que a taxa praticada por outras instituições. Segundo Daniela Marques, presidente da Caixa, o percentual foi definido de acordo com o risco do banco. "Os testes foram feitos a partir de uma previsão de inadimplência", disse em coletiva de imprensa.
De acordo com Myrian Lund, planejadora financeira e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), "juros de 3,5% ao mês é um juro muito alto. Tudo bem que é mais baixo do que um cheque especial ou um cartão de crédito, mas é alto. Hoje, para uma pessoa que consegue pagar suas contas direitinho, é possível conseguir um crédito livre de 2,5% ao mês".
A especialista acredita que a Caixa Econômica Federal "deveria oferecer uma taxa mais baixa e não essa taxa excessiva. Em um ano, isso equivale a 51%. Isso significa que se você pega R$ 1 mil, você vai estar pagando no final R$ 1,5 mil, ou seja, R$ 500 só de juros. A cada mil reais que você pegar de empréstimo, vai ter que pagar Auxílio Brasil para essa instituição financeira".
"Se o Auxílio Brasil é realmente um programa que vai ter continuidade e as prestações são abatidas diretamente, não haveria necessidade de ter uma taxa de 3,5%. Teria que ser uma taxa similar à taxa do INSS, porque também é um programa do governo. A taxa teria que ser no máximo de 2,5%. Isso já mudaria sensivelmente prestação."
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Outro ponto é que as parcelas são debitadas diretamente do benefício mensal. Portanto, para os bancos, não há como o empréstimo consignado gerar inadimplência. "Para os bancos é maravilhoso, é o melhor dos mundos, porque está tirando a dívida dele e transformando isso numa garantia de recebimento e ainda ganhando 3,5% ao mês e 51% ao ano", destaca a planejadora financeira.
"O consignado é um empréstimo que abate do seu salário o que você tem que pagar. Não é um dinheiro barato, não é um dinheiro gratuito. É um dinheiro que vai ter um ônus muito grande no orçamento. Juros e prestação são descontados juntos do auxílio mensal", afirma Lund.
Outro lado
O Brasil de Fato questionou o Ministério da Cidadania e a Caixa Econômica Federal questionando a demora para a transferência dos empréstimos, quantas beneficiários já solicitaram e quantos receberam. Até o momento, no entanto, não houve uma resposta.
Edição: Thalita Pires