Artigo

Voz das Marias

Não teremos anos fáceis pela frente, com a vitória de Lula, mas serão anos de recomeço

Brasil de Fato |
“Marcha dos ossos” realizada por mulheres no Centro de Curitiba, em 2021, em protesto contra a fome. - Juliana Barbosa / MST-PR


Eu tenho um grito preso na garganta. Grito de centenas de mulheres que acompanhei desde que a pandemia começou e teve início também a luta para assegurar um auxílio que garantisse a sobrevivência minimamente digna a essas mulheres e a seus filhos. 

Ao longo de meses, fui ouvinte, fui conselheira e até a alternativa desesperada para quem não conseguia respostas do governo ou, quando conseguia, eram evasivas demais. 

Por muito tempo, acompanhei centenas de relatos como o da Tânia, paulistana de 58 anos, autônoma, considerada morta pelo governo, símbolo da negligência em 2020. Passou cinco meses de sua vida tentando provar que estava viva e realmente fazia jus ao auxílio. 

Ela é mais uma das vozes caladas no país da desigualdade e da negligência, que ignora cuidar da vida, da alimentação e da sobrevivência dos mais pobres. Não, coincidentemente, ela é mulher, é negra, é mãe solo.

Vieram outras mulheres, outras tantas Marias, que perderam a casa, pois não conseguiam pagar o aluguel, as Marias que engrossavam a água com farinha para alimentar os filhos, a Maria em situação de rua que, para os cadastros do governo, ganhava três salários mínimos - uma mentira, pois estava desempregada, mas essa mentira por longos meses a impediu de receber o auxílio.  

Uma das histórias que mais me marcou neste período foi a de outra Maria, a que ninguém conseguiu ajudar. Ela se prostituiu para comprar o leite especial do filho. Mulheres podem imaginar a dor dessa mãe que só viu alternativa no sexo vendido por trocados para alimentar naquele momento o filho que chorava sem entender nada. 

Quem não tem empatia, tenta se enganar que essas são histórias fantasiosas. Prefere seu mundo da fantasia porque olha para o próprio umbigo atento a um Brasil que também não enxerga. 

Não enxerga a disputa por ossos nos lixões do país nem as ruas do país invadidas por famílias com crianças pequenas que não miram o futuro porque sua preocupação é conseguir comer hoje, sobreviver hoje à fome e à violência das ruas.

A visão curta e egoísta da elite a impede de olhar verdadeiramente para a pobreza que nestes quatro anos piorou neste país. Voltamos ao mapa da fome e estampamos manchetes de jornais mundo afora pela crueldade como tratamos a falta de alimentos no prato e também pelo descaso com que este governo lidou com a pandemia, as quase 700 mil mortes, o avanço do desmatamento e ignorou o grito das mulheres indígenas, cujos territórios foram invadidos pelo garimpo e seus corpos estuprados por esses homens.

Eu tenho um grito preso na garganta, que é de milhões de brasileiras, milhões de Marias, sem dinheiro, sem perspectiva, sem auxílio. Marias que demoraram horas na fila toda vez que deveriam validar seus cadastros para garantir os trocados que, há dois anos, o governo não queria dar. Para os que têm memória curta, sim, o Auxílio Emergencial não foi uma boa ação do governo Bolsonaro. E o Auxílio Brasil nasceu para poder tirar da jogada o programa Bolsa Família, marca dos governos petistas.

Os programas de renda são fruto da pressão dos movimentos da sociedade para proteger os mais vulneráveis. A pressão foi tanta junto aos parlamentares e ao governo que o projeto passou e virou o auxílio emergencial. Depois, mudou de nome como medida eleitoreira justamente para confundir a mente das pessoas pouco atentas a essas manobras políticas.

Domingo é o dia de fechar a conta de uma política genocida e retrógrada que tomou conta deste país e, em quatro anos, foi capaz de implantar retrocessos e uma semente maldita do bolsonarismo, com a qual teremos que conviver ainda por bom tempo até que se acabe a partir do fortalecimento da democracia.

Não teremos anos fáceis pela frente, com a vitória de Lula, é verdade. Mas serão anos de recomeço. Poderemos, todas as mulheres, soltar o grito engasgado na garganta há tanto tempo: basta!

 

*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

** Paola Carvalho é diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica. 
 

Edição: Rodrigo Durão Coelho