A entrevista do rapper Mano Brown com a filósofa e ativista estadunidense Angela Davis foi ao ar nesta sexta-feira (28), a três dias da eleição que, segundo disse, ela espera que "seja concluída com uma vitória decisiva de Lula".
A apagada importância das mulheres no Partido dos Panteras Negras, o conceito de liberdade, a identidade das pessoas negras no continente americano e o significado de radicalidade na luta política dos nossos tempos foram alguns dos assuntos tratados neste que foi o primeiro episódio em vídeo do podcast Mano a Mano, do Spotify.
"Há bastante tempo muitas pessoas nos Estados Unidos e ao redor do mundo olham para o Brasil como a esperança para o nosso futuro", acrescentou Davis ao ser perguntada sobre como vê o país às vésperas de uma atípica e acirrada eleição presidencial.
Ela comparou o momento brasileiro com o que representou para o mundo a luta da África do Sul contra o apartheid e o esforço para eleger Nelson Mandela: "um farol de esperança". No entanto, Davis ressaltou que "não são necessariamente os indivíduos, sejam eles presidentes ou líderes, os que impulsionam o curso da história. São as massas de pessoas que se reúnem em luta".
Citando a socióloga e ativista Luiza Bairros (1953-2016), que conheceu pessoalmente, Marielle Franco, mulheres negras do Candomblé e as lutas antiescravistas no Brasil, Angela Davis afirmou, por mais de uma vez, que experiências de luta brasileiras são inspiradoras.
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Inclusive, complementou, "todo mundo conhece a importante influência cultural do Brasil no mundo. Principalmente em termos de música, que é uma música de resistência". Com um genuíno sorriso, Brown vira para o lado, como que olhando a alguém que está fazendo a tradução, e pergunta se ela se refere à música dele. "Thank you so much", ele agradece ao gesto afirmativo da entrevistada.
"Viemos de uma história de luta"
Atuante, em especial, das lutas antirracista, do feminismo interseccional e abolicionista penal, Angela Davis ganhou notoriedade pelo mundo a partir da década 1970, durante as mobilizações nos Estados Unidos que ficaram conhecidas como pelos direitos civis, mas que Davis prefere chamar de lutas por liberdade. Na época, como militante do Partido Comunista estadunidense e próxima dos Panteras Negras, integrou a lista dos 10 fugitivos mais procurados do FBI. Depois de presa, a campanha por sua liberdade – vitoriosa após 18 meses – ganhou dimensão internacional.
É daí que, como comenta logo no início da entrevista, a geração de Brown cresceu acostumada a segurar panfletos com a silhueta de Angela Davis: "uma mulher negra, de cabelo afro, uma figura funk", descreve ele.
A conversa entre os dois importantes pensadores de seus países faz parte da terceira temporada do podcast, que estreou nesta quinta-feira (27), quando o rapper dos Racionais MC’s recebeu Gregório Duvivier.
Mano Brown diz para Davis que sente a necessidade da criação de "uma identidade do que é o negro brasileiro", que seria "uma base das lutas", coisa que, em sua visão, "talvez a esquerda não tenha entendido". Para ilustrar o que quer dizer quando cita "uma história que foi varrida", Brown comenta sobre a diferença entre uma pessoa branca que consegue saber toda sua linhagem ancestral e de uma pessoa negra, que muitas vezes "não sabe nem o nome do avô".
Concordando, ao dizer que afrodescendentes nos Estados Unidos vivem o mesmo dilema, Angela afirma que é interessante que as pessoas negras tentem traçar suas árvores genealógicas individuais. "Mas ao mesmo tempo, o que talvez seja ainda mais importante", acrescenta, "é sabermos que viemos de um povo que sempre lutou pela liberdade, mesmo que não conheçamos os indivíduos. Acho que isso não é algo que a maioria das pessoas no mundo possa afirmar".
Qual o sentido da liberdade?
Autora de sete livros traduzidos para o português, tais como Mulheres, raça e classe (2016) e Estarão as prisões obsoletas? (2018), Davis acaba de lançar mais um pela Boitempo Editorial. Qual o sentido da liberdade? (2022) reúne doze palestras suas feitas entre 1994 e 2009 e aborda, a partir de fatos históricos, a relação entre neoliberalismo, opressões de gênero, raça e classe e o fenômeno da expansão do complexo industrial prisional.
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"O que é liberdade para você?", Mano Brown perguntou, com um exemplar do livro em mãos. "A princípio", descreveu ela "se pensávamos que a liberdade era a para o homem negro, passamos a reconhecer que tínhamos que reivindicar também a liberdade das mulheres negras. E, então, reconhecemos que a estrutura binária de gênero nos impedia de conceber mais amplamente quem merece liberdade".
"Em conclusão, a liberdade não é um destino, mas a jornada", sintetizou Davis. "E no decorrer dessa jornada, vamos tomando consciência da sua amplitude. Acho que isso acontecerá para sempre."
Edição: Nicolau Soares