Após derrotar Jair Bolsonaro (PL) por margem apertada, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem como tarefa principal a ampliação da base de apoio que o levou à vitória no segundo turno. Pela sua coligação, o presidente eleito tem ao seu lado apenas 122 dos 513 deputados na Câmara.
O número deve aumentar à medida que avançam as negociações com os partidos que não apoiaram Lula, sobretudo aqueles reunidos no bloco conhecido como Centrão. No entanto, o petista irá enfrentar um cenário delicado na relação com o Congresso.
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Na avaliação do cientista político Cláudio Couto, Lula terá dificuldades para repactuar a relação do Executivo com o Legislativo. O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) afirma que o Congresso irá impor resistência caso o novo governo tente rever a utilização do chamado orçamento secreto, instituído no governo Bolsonaro.
"Colocar o gênio de volta na lâmpada é uma tarefa hercúlea", comenta. "Duvido que o Congresso empoderado vá abrir mão disso. Se o Congresso não quiser, não tem milagre que se faça."
O pesquisador avalia que o instrumento criado por Bolsonaro para garantir maioria no Parlamento rompeu um pilar importante do presidencialismo de coalizão brasileiro.
"A gente tinha um Executivo forte, que tinha como um dos seus elementos de força exatamente essa capacidade de barganhar com o Legislativo, a partir do controle do orçamento como um instrumento de obtenção de apoio, comenta.
Em entrevista à DW, Couto diz acreditar que a transição de poderes será conturbada – um cenário bem diferente de 2002, quando Lula venceu e cooperou estreitamente com Fernando Henrique Cardoso.
"Ali, havia civilidade. Aqui não há civilidade alguma, a gente está falando em um governo de barbárie", diz. "Acho que a gente vai ter sabotagem, sonegação de informação, dificuldades para que se realizem reuniões de trabalho entre o governo que entra e o governo que sai."
DW: Quais são os primeiros desafios de Lula como presidente eleito?
Cláudio Couto: Ele precisa já pensar em um governo, então o primeiro ponto é montar uma coalizão. Evidentemente, é preciso atrair mais do que aqueles líderes e grupos políticos que estiveram com ele no primeiro ou mesmo no segundo turno, quando a base de apoio se ampliou. É preciso conversar com partidos do chamado Centrão e também do campo da direita pragmática, da centro-direita – se não partidos, pelo menos lideranças dentro desses partidos. Por exemplo, atrair gente que está dentro do PP, do Republicanos e do PL, inclusive. Ou seja, os partidos que constituíram a base de Bolsonaro. Sendo partidos e políticos de adesão, eles têm uma tendência a correr para o lado do governo, seja ele qual for, desde que obtenha alguma coisa em recompensa.
A senadora Simone Tebet (MDB) teve uma atuação importante no segundo turno da campanha de Lula. Que papel ela terá na construção do novo governo?
Um papel absolutamente crucial. Ela pode realmente auxiliar o próximo governo a construir sua base, pela influência que tem em setores do MDB e mesmo do PSDB, que participou da aliança dela, além do setor do agronegócio, no qual ela tem ótimo diálogo. Por essa razão, inclusive, é cogitada para o Ministério da Agricultura, embora demonstre maior interesse pela pasta da Educação. Ela certamente deve integrar o próximo governo, seria muito surpreendente se isso não ocorresse. Tanto ela quanto o Geraldo Alckmin (PSB) podem ser articuladores importantes dessa ampliação de apoio, algo absolutamente indispensável na construção da coalizão.
Em entrevista recente à DW, Gilberto Kassab (PSD) afirmou que Lula teria maioria confortável no Congresso. Você concorda?
Não sei quão confortável será essa maioria que o Lula poderá construir. O Kassab tem toda a razão quando diz que, para ampliar apoio no Congresso, Lula vai ter que falar com parte do Centrão. Sinceramente, eu ainda não saberia avaliar com muita exatidão o tamanho que o bolsonarismo raiz alcançou dentro dos partidos do bloco. Ele é maior do que já foi em outros momentos, e é claro que essa corrente vai ser estridente. Há um problema de saber como esses partidos vão funcionar, vão se "coesionar", tendo eventualmente uma ala muito radicalizada à direita no seu interior e, de outro lado, políticos dispostos a aderir ao novo governo, negociar algo com o novo governo, aderir a ele, apoiá-lo em muitas dessas pautas. Essa incógnita é o que torna tudo ainda muito complicado, sendo difícil saber o que exatamente vem pela frente.
Lula será capaz de repactuar a relação com o Congresso após a consolidação do orçamento secreto no governo Bolsonaro?
Eu não creio que ele vá conseguir reverter o orçamento secreto. Colocar o gênio de volta na lâmpada é uma tarefa hercúlea. Talvez, ele consiga torná-lo não secreto, mas tirar do controle do Congresso eu acho muito pouco provável. Será preciso tentar um entendimento com o Parlamento, no sentido de ver como o próximo governo vai fazer política orçamentária com o Legislativo, que vai ter um controle muito maior. Caiu um pilar central do que foram as relações Executivo-Legislativo no Brasil no presidencialismo de coalizão pós-1988. A gente tinha um Executivo forte, que tinha como um dos seus elementos de força exatamente essa capacidade de barganhar com o Legislativo, a partir do controle do orçamento como um instrumento de obtenção de apoio.
Isso caiu, e duvido que o Congresso empoderado vá abrir mão disso. Se o Congresso não quiser, não tem milagre que se faça. O Supremo Tribunal Federal (STF) pode agir de alguma forma, mas eu também sou muito cético quanto à capacidade ou à disposição do STF de reverter essa força, esse poder que foi lançado nas mãos do Congresso. O que o STF pode fazer é simplesmente interditar o caráter secreto desse instrumento, obrigar que haja transparência. Pode ser que o Congresso aceite esses termos.
Quais deverão ser os eixos principais da agenda que o governo irá apresentar ao Congresso?
É uma agenda sobretudo de reconstrução nacional. O país foi destruído nos quatro anos de Bolsonaro. A burocracia pública foi destruída e várias políticas públicas foram descontinuadas. Isso tudo vai ter que ser refeito. Sem a aprovação de uma certa pauta legislativa no Congresso, vai ser difícil. Não é só reorganizar a administração pública no âmbito interno do Executivo, é também criar uma agenda legislativa que permita que essa reconstrução aconteça.
Eu aposto que isso vai ser um dos pontos centrais do início do governo Lula, para além da tentativa de fazer algum tipo de arranjo fiscal. Eu não faço a menor ideia de qual será, porque a gente nem sabe qual vai ser a equipe econômica do Lula ainda. Mas ele deverá buscar garantir um mínimo de equilíbrio nas contas públicas, sobretudo depois dessa orgia fiscal dos últimos meses. Depois disso, vai ter que ter algum tipo de saneamento dessas contas, senão a situação vai ficar ingovernável, com reações do mercado que tornariam a situação pior ainda.
Em 2002, Lula e Fernando Henrique Cardoso (FHC) trabalharam em estreita cooperação durante a transição de governos. Como deverá ser esse processo com Bolsonaro?
Esta transição vai ser completamente diferente daquela. Bolsonaro está a milhares de anos-luz do FHC, a gente está falando de água e vinho, não tem nem como comparar. Ali, havia civilidade. Aqui não há civilidade alguma, a gente está falando em um governo de barbárie. Todos os ataques às instituições, a boçalidade com que ele se comporta, a destruição que ele produziu na máquina administrativa do Executivo, tudo isso tende a fazer com que a transição seja tremendamente conturbada. Eu, sinceramente, não acredito em uma transição tranquila. Ao contrário disso, acho que a gente vai ter sabotagem, sonegação de informação, dificuldades para que se realizem reuniões de trabalho entre o governo que entra e o governo que sai. Sou muito pessimista quanto a isso, acho que vai ser um tanto quanto preocupante, um tanto quanto difícil.
Como interpretar o silêncio de quase 48 horas de Bolsonaro?
Expõe a dificuldade dele de aceitar o resultado, mostra mais uma vez essa boçalidade a que eu me referia, a impostura, a incapacidade de saber trabalhar institucionalmente, de ser um presidente, no fim das contas. Mesmo com esse comportamento, ele obteve o voto de praticamente metade da população brasileira. Isso mostra que muita gente não se incomoda com esse tipo de comportamento, que entende como normal, ou um mal menor. Essa postura não contribui em nada para a transição. Por outro lado, isola ainda mais o Bolsonaro, inclusive entre os seus aliados. Ele pode talvez não se dar conta disso. Agir dessa forma pode diminuir bastante a capacidade que ele tem de produzir dano, na medida em que, isolado, fica fragilizado.
Um sintoma disso foi o pronunciamento do Arthur Lira, logo após o resultado da eleição, ao lado do Ricardo Barros, líder do governo na Câmara. Ele reconheceu a vitória do Lula e mostrou disposição de estender a mão, conversar, abrir uma frente de diálogo, o que evidentemente é muito importante. O Tarcísio de Freitas também fez um discurso conciliador, outro sinal positivo. O isolamento do Bolsonaro tende a aumentar cada vez mais.
Que força terá o o bolsonarismo sem Bolsonaro presidente? Ele é o líder natural da oposição?
Tenho dúvidas quanto à capacidade do Bolsonaro de liderar uma oposição após a derrota. Sobretudo se ele tiver sérios problemas judiciais, o que acredito que terá. É possível que esse papel seja assumido por algum de seus herdeiros, como o Eduardo Bolsonaro. Mas, a ver. Temos também de ter cuidado em menosprezar a capacidade do Bolsonaro de atuar politicamente e atingir seus objetivos. Ele já nos mostrou nesses últimos anos que, embora pareça um pateta, acaba tendo sucesso em muitas das suas empreitadas.
O bloqueio de estradas sinaliza que o reconhecimento da derrota pelo bolsonarismo será custoso?
Há uma base bolsonarista importante entre caminhoneiros. Portanto, não é de se espantar que tenham ocorrido manifestações de inconformismo com o resultado das urnas. Eles não enxergam como democrático o resultado que saiu das urnas, porque não é do seu agrado. É esperado, portanto, que haja uma certa tendência a produzir confusão primeiro nesse momento. Mas, apesar de todo o transtorno que os caminhoneiros produziram em várias estradas do Brasil, foi um grupo pequeno, sem tanta capacidade de estender isso por muito tempo.
Surpreende que a PRF, tão diligente para atrapalhar eleitores no dia da eleição, desrespeitando inclusive determinação do TSE, logo em seguida se mostre incapaz de lidar com caminhoneiros golpistas, que estão questionando o resultado das urnas. É realmente algo muito sintomático, que mostra o aparelhamento das instituições de Estado por esse governo e a transformação da PRF em uma espécie de milícia oficial do bolsonarismo. Acho que isso é até mais preocupante do que a ação dos caminhoneiros, porque essa polícia continuará aí. O próximo governo vai ter que lidar com ela.
Como o reconhecimento da vitória de Lula pelos mais importantes líderes mundiais ajuda a conter o ímpeto golpista do bolsonarismo?
Isso é fundamental para evitar qualquer tentativa de golpe, afinal o Bolsonaro já é um líder isolado internacionalmente. O Brasil acabou se tornando um pária internacional. O entusiasmo e a rapidez com que vários governantes se manifestaram, felicitando o Lula pela vitória, mostra como há um alívio na comunidade internacional pela derrota do Bolsonaro: da China aos EUA, passando pelos países europeus e os países vizinhos aqui na América Latina. Esse reconhecimento amplo produz uma rede de segurança da comunidade internacional contra qualquer aventura golpista que Bolsonaro e os grupos armados com os quais ele se articulam possam tentar.
Existe um espaço grande para o Brasil se reconectar à comunidade internacional, o que favorece muito o Lula na interação com esses outros países. Ele anunciou que pretende viajar até o fim do ano para reatar esses laços. É um caminho importante e profícuo, que ele pode percorrer justamente para restaurar a capacidade brasileira de ser uma voz ouvida e respeitada no exterior, inclusive se engajando em coisas importantes, como a agenda ambiental. O anúncio da Noruega, de que irá retomar o financiamento do Fundo Amazônia, é mais um sintoma dessa volta do Brasil ao convívio cooperativo com a comunidade internacional, saindo dessa condição de pária a que o bolsonarismo nos reduziu.