Não se trata de revanchismo, mas de mostrar que a lei ainda tem algum valor
Depois de um dia que durou 21 anos, em 1988 começamos uma retomar a nossa democracia. Expectativas altíssimas, mas que não se concretizaram: os criminosos que sequestraram, mataram e torturaram centenas de brasileiros passaram impunes, instituições como o Ministério Público conseguiram se descolar da sociedade brasileira.
No lugar de redemocratização, contratamos uma crise para o futuro. E 25 anos depois a fatura chegou.
Militares e MP se sentiram à vontade para ameaçar as instituições, sequestrarem um país inteiro e colocarem uma faca na garganta da democracia. Tudo isso culminou na eleição de Jair Bolsonaro, um arruaceiro contumaz, com nenhum apego pela dignidade humana ou democracia e que conseguiu sucatear o país inteiro em 4 anos.
Durante as eleições, este mesmo arruaceiro montou o maior esquema de cooptação e supressão do direito ao voto da história mundial, que contou com o uso desmedido de dinheiro público e estrutura do Estado para fins privados. Além disso, não faltaram casos de assédio empresários, lideranças locais (como no escândalo de Coronel Sapucaia, revelado por Caco Barcellos) e militantes ameaçando eleitores.
E o que falar da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que decidiu cuidar dos pneus carecas de toda a região nordeste do país, justamente no dia das eleições?!
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No dia seguinte à derrota, mais descalabros! Empresários mobilizaram pessoas para promover o caos no país, buscando um golpe militar em face ao descontentamento com o resultado das eleições. Bolsonaro disse que seus seguidores estão indignados com como se deu o processo eleitoral. Indignados com o que?!
Bolsonaro liderou o maior esquema de compra de votos e cerceamento do direito ao voto da história brasileira recente! Eles só podem estar indignados com o fato de tentarem roubar e sabotar o pleito e mesmo assim perderem.
Nenhuma das falas do Bolsonaro ou do Mourão, nos últimos dias, visa apaziguar. Não importa se o protesto é no meio da rua ou na calçada. É crime! Previsto na lei 1802/1953 (Define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social), Art. 2, IV; Art. 13; Art. 17. E também no Art. 359 M da Lei 14.197/2021: Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.
Para eles, o maior problema é fecharem as vias: as pessoas podem pedir golpe, desde que na calçada!
Tudo isso acontecendo com a cumplicidade indecorosa de Policiais Militares, agentes da PRF e governadores.
Não havia muitas pessoas nos bloqueios. Um deles, próximo do aeroporto de Guarulhos (SP), foi desfeito em míseros cinco minutos. O Estado só decidiu agir quando a situação chegou no limite do suportável. Até esse ponto, não faltaram fotos de agentes da segurança pública apoiando e agitando a delinquência num show chamais visto de prevaricação.
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Além disso, não faltam relatos da indisciplina militar, dos generais Pazuello até Villas Bôas, além de outros tantos que participaram do governo Bolsonaro do primeiro ao terceiro escalão. Da produção de cloroquina até a compra superfaturada de Viagra.
Não se trata de revanchismo, se trata de estabilizar o país exonerando e punindo militares e agentes de segurança pública que usaram a farda e os postos para fazer política, se trata de mostrar que a lei ainda tem algum valor e que o país tem um forte compromisso com a legalidade.
Só durante a pandemia, Bolsonaro cometeu mais de dez crimes, sendo eles comuns ou de responsabilidade. Não é segredo para ninguém que o futuro ex-presidente cometeu, quase que diariamente, sucessivos crimes de responsabilidade.
Se o futuro ex-presidente não for punido por tudo que causou ao país, corremos o risco de, no futuro, nos depararmos com alguém ainda pior, ou até mesmo um Bolsonaro ainda mais delinquente! Pois a mensagem que ficará é a de que o crime compensa e de que você pode perverter o processo eleitoral e que isso é válido.
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Além disso, se seguirmos com a nossa política de "pacificação" sem responsabilização, o país contratará outra crise para o futuro e seguirá vivendo de ciclos em ciclos de sucessivas crises que vão desde o século passado e perduram até hoje.
A nossa sorte é que o que Bolsonaro tem de autoritário, ele não tem de competência. Mas será assim para sempre? Acho perigoso deixarmos o caminho livre para um autoritário competente como Viktor Orbán da Hungria ou Erdogan da Turquia, creio que nossa democracia não resistirá.
Por isso devemos punir todos os criminosos desse período, aperfeiçoar os mecanismos de controle, responsabilização e fiscalização das instituições e reforçar a necessidade de cumprimento da lei, algo que se tornou completamente facultativo nos últimos dez anos.
E isso não pode ser apenas uma iniciativa do vindouro governo Lula, é necessário um grande pacto nacional entre a sociedade civil, as instituições e a justiça brasileira. Isso sim seria pacificar o país, fazer valer a lei! Caso contrário, são apenas mais acenos para a delinquência e os ciclos de desordem do Brasil.
Não há revanchismo, há lei e ordem! Não podemos repetir os erros de 88! Essa pode ser a última chance da nossa jovem democracia brasileira.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares