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Além da comida no prato: livro registra saberes ancestrais do sistema alimentar quilombola

“Na companhia de dona Fartura” apresenta hábitos alimentares e culturais de comunidades do Vale do Ribeira (SP)

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No livro, Dona Fartura é a materialização dos saberes tradicionais quilombola - Reprodução/ Na Companhia de Dona Fartura

O cuidado com a terra, o modo de fazer a roça de coivara, os hábitos culinários e de alimentação. Esses são alguns dos elementos que revelam a cultura alimentar quilombola. Eles são carregados de práticas que expressam tradição, resistência e ancestralidade. 

Esses são temas centrais do livro "Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre cultura alimentar quilombola". A obra coletiva foi lançada no mês de agosto. 

Um dos autores é o professor Luiz Marcos França. Morador do Quilombo São Pedro, na cidade paulista de Eldorado, ele explica que a alimentação quilombola é algo que atravessa a questão da comida. É um sistema que envolve todo um modo de vida, que se baseia na observação, interpretação e respeito aos sinais da natureza. 

“Quando a gente fala de alimentação, não falamos somente do arroz e do feijão ou das hortaliças e vegetais que tenho na minha horta na minha casa. A gente também remete à questão da roça. De onde vem esse alimento? Ele vem da roça. E essa roça é um espaço de resistência, um espaço de embate político, social e histórico. É um espaço de produção, de trocas, de conhecimento, de saberes. Não posso fazer uma roça em qualquer lugar e em qualquer tempo. A gente está falando de uma cultura alimentar que perpassa o prato”, reforça.  

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Os nomes das personagens do livro são carregados de sentido. Fartura, Esperança, Legado, Êxodo, Continuação, Luta, Resistência. Todos eles se relacionam com aspectos do território e com a importância da transmissão dos saberes ancestrais. Quem conta é a professora Viviane Marinho Luiz, que também participou da produção do material. Ela vive no Quilombo Ivaporunduva.

“Os próprios nomes já são uma narrativa da história. Então tem a comadre Luta, o compadre Território. O próprio nome do filho da Dona Fartura, que mostra um pouco do movimento, o personagem que é o Êxodo. Na época em que as roças eram criminalizadas, os quilombolas se afastaram dos quilombos, não por vontade própria, mas por conta dessa criminalização”, explica a pedagoga, que faz questão de frisar que é uma mulher negra aquilombada. Ou seja, que não é nascida e criada no território. 

Guardiãs dos saberes

Os saberes tradicionais são passados por Dona Fartura aos netos por meio da oralidade. Ela conta como aprendeu com os mais velhos o cultivo e preparo dos alimentos, que são carregados de histórias. Viviane Marinho destaca que essa é uma das marcas da tradição africana para a transmissão dos saberes. Além disso, ela ressalta que as mulheres ocupam papel de protagonismo quando o assunto é o conhecimento sobre alimentação.  


As mulheres são detentoras dos saberes ancestrais relacionados à alimentação e encarregada de transmiti-los às novas gerações / Reprodução/ Livro Na Companhia de Dona Fartura

 “Historicamente, as mulheres negras foram colocadas no contexto da cozinha. Por conta da escravização, o espaço da cozinha foi tido como um espaço perverso. E o livro traz essa cozinha como o lugar da complexidade do conhecimento. As mulheres que cozinham fazem pratos elaborados, pratos da roça. Então, a alimentação é conhecimento, tem uma alquimia, tem muitos saberes envolvidos”, salienta.

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A cultura alimentar quilombola e seus saberes são parte do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).  

A ameaça da indústria alimentícia 

Se por um lado o livro exalta a diversidade e riqueza do sistema alimentar quilombola, por outro, também coloca em discussão às ameaças a esse modo de vida. Os vilões dessa história estão no Reino da Ilusão, dominado pelo rei Mercado Livre e pela rainha Propaganda Enganosa. Eles invadem terras, destroem a natureza, poluem os rios e o solo em nome do lucro. 

Nesse cenário, Luiz França também traz outro elemento, os alimentos ultraprocessados, que são vendidos como opções práticas e saudáveis, quando na verdade estão associados ao desenvolvimento de uma série de problemas de saúde

“Se a gente pensar na compra das coisas por pacote e a forma com que elas vêm empacotadas, você perde a essência disso. Você perde essa reflexão, esse processo de observar como se dá essa produção de alimento. De onde veio? Quem produziu? Como produziu? Além do mais, o quão ele é saudável ou não para sua alimentação”, observa. 

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Representatividade 

O livro Na Companhia de Dona Fartura também está nas escolas e busca dialogar com o público infanto-juvenil, especialmente nas comunidades quilombolas. Um ponto destacado por Viviane Marinho é a questão da representatividade, que se faz presente no texto, que conta ainda com a autoria de Márcia Cristina Américo e Laudessandro Marinho da Silva, e nas ilustrações de Amanda Nainá dos Santos e Vanderlei Ribeiro. 

“Ele vê na autoria do livro: Laudessandro Marinho da Silva, que é quilombola, que foi, estudou e voltou para ajudar a gerenciar o próprio território. Isso mostra que é possível viver bem no território, sem ter tantos ‘êxodos’. A luta das comunidades é para que não existam ‘êxodos’, mas que existam ‘legados’ e ‘esperanças’ vivendo bem no território, se movimentando no território, porque eles serão a continuação da cultura alimentar quilombola”, ressalta Marinho.  

O ensinamento que as histórias de Dona Fartura deixam para as novas gerações é que reproduzir os saberes originários de cuidados com a terra não é sinônimo de atraso, mas sim uma garantia de proteção territorial e cultural no futuro. 

O livro está disponível para ser baixado gratuitamente neste link

Edição: Daniel Lamir