Negligência

Covid: Crianças pequenas seguem sem vacina depois de mais de dois anos e meio de pandemia

Nenhum bebê se vacinou contra covid-19 no país, apesar da aprovação do imunizante para a faixa etária em setembro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Apenas 5,5% das população de 3 e 4 anos tomou as duas doses da vacina contra a covid-19 - Foto: Luiz Costa/SMCS

As crianças brasileiras sofrem, mesmo depois de dois anos e oito meses de pandemia, com a falta crônica de vacinas contra covid-19. Aquelas que têm 3 e 4 anos têm a Coronavac aprovada desde agosto deste ano. Mesmo assim, três meses depois, apenas 5,5% das crianças dessa faixa estaria tomaram duas doses do imunizante.

O cenário é especialmente grave uma vez que o Instituto Butantan, ligado ao Governo de São Paulo, tem capacidade para produzir vacinas para todas as crianças, mas não é demandado pelo Ministério da Saúde.

A situação das crianças de 6 meses a 2 anos é ainda pior. O imunizante da Pfizer foi aprovado para elas pela Anvisa no dia 16 de setembro, mas até agora nenhuma foi imunizada no país. O Ministério da Saúde comprou 1 milhão de doses para essa faixa etária. As doses foram entregues ao país no dia 27 de outubro. Até agora, duas semanas depois, a vacina sequer foi distribuída aos estados e municípios.

Além disso, essa quantidade de doses será suficiente para a imunização de 334 mil crianças. Isso porque o esquema vacinal para os bebês prevê a aplicação de 3 doses para a imunização completa. A população brasileira de crianças entre 6 meses e 2 anos é de 7,3 milhões. As doses adquiridas, portanto, são suficientes para a imunização de apenas 4% dessa população. Contrariando a recomendação da própria Anvisa, apenas as crianças com comorbidades serão vacinadas nesse momento.

A situação vacinal das crianças preocupa especialistas, em especial em um momento de alta dos casos da covid-19, causada por novas linhagens da variante Ômicron. Não há dados confiáveis sobre o número de casos no país, uma vez que não há política nacional de testagem e não existe como notificar casos diagnosticados por autotestes, mas os indícios de que o Brasil passa por uma nova onda são fortes.

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O número de internações por covid-19 no estado de São Paulo, por exemplo, passou de 149 por dia em 7 de novembro para 262 no dia 10, um aumento de 75%. As internações no estado voltaram a patamares de julho, quando o Brasil ainda saía da quarta onda de covid-19. Relatos de especialistas também apontam para um aumento rápido no número de casos.

Nesse cenário, as crianças pequenas estarão tão suscetíveis à covid-19 como em todas as ondas anteriores. Nos dois primeiros anos da pandemia, 1.439 crianças de até 5 anos morreram por causa da doença no Brasil, o que corresponde a um óbito a cada 2 dias.

Até as crianças de 5 a 11 anos, que tiveram a vacina aprovada no início de 2022 e contaram com a compra de vacinas em número suficiente, estão suscetíveis. Nessa população, a vacinação com duas doses atingiu apenas 50%. Do 20,5 milhões de brasileiros com essa idade, mais de 6 milhões sequer tomaram a primeira dose.

Além disso, a maior parte dos já vacinados completaram o esquema vacinal há mais de quatro meses. Isso significa que a imunidade está em queda. Assim como adultos e adolescentes, as crianças também deveriam tomar uma dose de reforço. Essa é a recomendação da Câmara Técnica Assessora em Imunizações - Covid-19 e da Sociedade Brasileira de Pediatria. A compra e aplicação das doses de reforço, no entanto, sequer foi cogitada pelo Ministério da Saúde.

Imunizações em baixa 

Para Eduardo Jorge da Fonseca Lima, secretário do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o quadro de baixa vacinação infantil no país - contra a covid e outras doenças - tem múltiplas causas. "Desde 2015 que a gente vem observando uma redução da cobertura vacinal. Como explicar isso? Isso passa pelo pouco investimento na divulgação de campanhas de vacinação. A gente sempre teve a figura icônica do Zé Gotinha. As campanhas eram maciças, a imprensa [divulgava]. O Ministério da Saúde fazia os dias nacionais de multivacinação com resultado imediato, a gente via a população aderir. E nos últimos anos, todas essas campanhas foram muito tímidas", conta.

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Lima afirma, ainda, que as vacinas vêm sendo "vítimas de seu próprio sucesso". A queda drástica de casos de doenças graves que são preveníveis por vacina passa uma falsa sensação de segurança, o que diminui a preocupação da população. Além disso, os efeitos adversos passageiros vêm sendo supervalorizados. "A febre passou a ser hipervalorizada, a dor local passou a ser uma coisa mais importante até do que a proteção da criança", explica.

Outro ponto que explica a diminuição da adesão das famílias à vacinação é a dificuldade prática de encontrar postos de saúde abertos em horários que não sejam de trabalho. Tradicionalmente, as salas de vacinação funcionam em horário comercial.

Boicote governamental 

Quando o foco é na vacinação contra a covid, entram em cena mais fatores. Um deles é a hesitação vacinal, em grande parte produzida pela atuação do governo federal durante toda a pandemia. "Desde o primeiro momento o governo espalhou o pânico, o medo e causou insegurança" diz Tatiane Coimbra, integrante do grupo Vacina Pediátrica Covid Já. "Passou-se a ideia de que a vacina é mais prejudicial à saúde das crianças [do que o vírus]", lembra.

O grupo de pressão pelas vacinas infantis junta pessoas de todo o país, com o intuito de pressionar pela imunização de todas as crianças elegíveis.

A política do governo Bolsonaro para a vacinação de crianças é descrita por Tatiane como um posicionamento político deliberado. "O Ministério da Saúde, o Governo Federal, ele não cometeu um erro ou um equívoco na vacinação pediátrica. Ele teve uma um posicionamento político", diz Coimbra.

Próximos passos 

As esperanças de que o atual governo, que está chegando ao fim, haja para comprar e distribuir vacinas são nulas. Tatiana Coimbra acredita que a única maneira de obrigar o governo Bolsonaro a comprar vacinas para crianças agora é por meio de decisão judicial. Existe, de fato, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 754) tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF), de autoria da Rede Sustentabilidade.

A ação teve início ainda em 2020, para questionar a política de vacinação contra a covid-19 naquele momento. No dia 25 de outubro deste ano, a Rede adicionou uma petição relacionada aos imunizantes infantis, ainda sem resposta.

A expectativa para a retomada da vacinação infantil, recai, portanto, toda no governo Lula. E imunização é um dos temas mais recorrentes entre os integrantes da equipe técnica de transição na área da Saúde. Com os trabalhos ainda no início, não há anúncios oficiais do time, formado por quatro ex-ministros da saúde de governos petistas. Alexandre Padilha, um dos integrantes da equipe, no entanto, usa o Twitter para divulgar as linhas gerais de ação do futuro governo.

"A nossa expectativa como movimento de pais é que o próximo governo haja de uma forma totalmente diferente da forma como esse governo age", diz Tatiane. Ela ressalta a importância de políticas integradas, como o Bolsa Família. "Era um programa de transferência de renda, mas que também garantia a matrícula de todas as crianças na escola e a frequência escolar e a caderneta de vacinação completa."

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"Vai ter um longo trabalho a ser feito, um trabalho de conscientização, um trabalho para que os pais percam o medo que foi criando de vacinar os filhos contra a covid-19, tenham consciência da importância de vacinar essas crianças para que a gente consiga evitar mortes desnecessárias por essa doença", finaliza.

Para Lima, da SBP, a linha demonstrada pelos integrantes do futuro governo também traz otimismo. "Quando o governo anuncia que um de seus primeiros atos é uma grande campanha de vacinação, a gente fica muito feliz. A gente sabe que uma campanha vai precisar de uma comunicação efetiva, de um exemplo de dirigentes, orientando que o melhor custo-benefício em saúde, fora água e saneamento, é vacina. Vacinas salvam vidas."

Edição: Nicolau Soares