“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’.”
Conceição Evaristo.
Em uma rua sem saída, na região tida como um dos principais antigos redutos negros de Porto Alegre e berço do Carnaval da capital gaúcha, fica o Quilombo Areal da Baronesa. Localizado na avenida Luiz Guaranha, entre a Cidade Baixa e o bairro Menino Deus, cerca de 80 famílias resistem à especulação imobiliária e mantêm viva a tradição da maior festa a céu aberto do país.
Diferente da maioria dos Quilombos Urbanos da Capital, que tem sua origem marcada pela imigração de escravizados, o Areal tem seu surgimento com os de Porto Alegre. Ao andar pela região, ainda é possível ver alguns casarões, como onde hoje fica a Fundação O Pão dos Pobres Santo Antônio, que no século XIX era uma das residências do barão e baronesa do Gravataí. É com esse casal que tem início a história do quilombo.
“Era um casal muito abonado financeiramente, eram fabricantes de barcos, e eles tinham diversas propriedades em Porto Alegre. Aqui era considerada a casa de veraneio, porque era banhada pelo rio Guaíba. As escravizadas daqui lavavam roupa na beira do rio”, relata uma das coordenadoras da Associação Areal da Baronesa, Fabiane Xavier.
Afilhada de Fabiane, a acadêmica de Serviço Social Jeysi Alvarez comenta que na época dos barões a parte esquerda da Avenida Luiz Guaranha era tudo mato, e que os ex-escravizados, depois da abolição da escravatura, começaram a vir para essa região por ser uma mata fechada porque era mais difícil de serem capturados. “A região também tinha muitos marinheiros e militares, e as mulheres eram lavadeiras para esses quartéis”. É daí que começamos a ter essa conjuntura de quilombo, de vila em um primeiro momento”, complementa a universitária.
Com a morte dos barões, os escravizados ficaram soltos no território, vivendo nas estrebarias, desenvolvendo atividades como lavar, passar, cozinhar, até a chegada do caixeiro-viajante italiano, Luiz Guaranha, que dá nome à Avenida. “Ele percebe na comunidade uma oportunidade de lucro. Após comprar essa área, transforma aquelas estrebarias em casinhas de madeira de porta e janela e passa a alugar para aquelas pessoas que já estavam aqui muito antes dele chegar”, contextualiza Fabiane.
Após o falecimento do caixeiro, como era de costume da época, seus bens foram herdados pela Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, a qual durante anos a comunidade paga aluguel para se manter no espaço.
A luta contra a gentrificação e a especulação imobiliária
Boa parte da documentação do Quilombo está disponível no Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, instalado no Solar Lopo Gonçalves. “Se for fazer uma análise do contexto histórico, nos documentos que a gente tem, inclusive nos que ficam no Museu, houve uma diminuição desse território. Hoje, o Areal é uma rua de 300 metros, antes a gente tinha aberturas dos dois lados no final da rua, tanto para a Múcio Teixeira quanto para a Barão do Gravataí. Hoje já não tem essa possibilidade”, pontua Jeysi.
Uma das explicações para esse cerceamento do território está no processo de gentrificação e especulação imobiliária a partir da década de 1960, quando tem início a implementação de programas de urbanização e de higienização, intitulado “Remover para Promover”. “Com a desculpa de urbanizar essa área central aqui da cidade, também de branquear, que é um reduto negro, a Prefeitura de Porto Alegre começa a remover uma a uma essas avenidas do entorno, e de comunidades vizinhas também, como a Ilhota, que talvez seja a remoção mais traumática. As pessoas anoiteceram ali e não amanheceram”, contextualiza Fabiane.
De acordo com a liderança, as pessoas movidas do local foram realocadas nas regiões periféricas de Porto Alegre, especialmente Lomba do Pinheiro e Restinga. “Os primeiros moradores desses bairros são oriundos daqui do Areal da Baronesa”, destaca. Diante dessa situação, comenta Fabiane, a comunidade do Areal compreendeu que poderiam ser os próximos a serem removidos e começaram a se mobilizar.
Descendente de uma das famílias de lavadeiras, Fabiane conta que, nos anos 1970, sua mãe, Sônia Xavier, foi uma das fundadoras do Clube de Mães. Neste espaço, cuidavam das crianças no turno inverso da escola, davam aulas de artesanato e reforço escolar. Na década de 1980, é fundada a Associação dos Moradores da avenida Luiz Guaranha, que mais tarde passaria a ser chamada Associação Comunitária e Cultural Quilombo do Areal.
A associação, destaca a liderança, começa a buscar melhorias para a comunidade, como a rede de esgoto. Em 1990, a entidade conseguiu com que o terreno que pertencia à Santa Casa fosse doado à Prefeitura de Porto Alegre em troca do terreno onde foi construído o hospital da Criança Santo Antônio.
Para além da especulação imobiliária, Jeysi chama a atenção para uma outra disputa que vem acontecendo na cidade. “Quando a gente fala de território quilombola, a gente fala da periferia. O que nos assola e o que nos mata é o tráfico e o alto número de pessoas pretas presas no sistema carcerário. É importante falarmos sobre essa questão do tráfico e das facções, porque elas acabam vindo para territórios como o Areal, nessa tentativa de tomada desse território. As nossas crianças e os nossos adolescentes que fazem parte hoje da bateria do Areal, por exemplo, correm um risco eminente”, opina.
Titularização
“A gente sempre soube que aqui morou escravizado, mas como que a gente vai provar? E aí começou todo um processo feito com a participação da comunidade, aonde primeiramente trocou a razão social da Associação, deixou de ser Associação dos Moradores da avenida Luiz Guaranha, e passou a ser Associação Comunitária e Cultural Quilombo do Areal”, relata Fabiane.
Ela conta que, por volta de 2002, Geci, mais conhecida como Duda, antiga diretora da Associação, foi orientada pelo Movimento Negro, do IACOREQ (Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos), de que existia uma lei que amparava as áreas remanescentes de povos tradicionais indígenas e quilombolas: a Lei nº 4.887/2003.
O autorreconhecimento, certificado pela Fundação Cultural Palmares (FCP), aconteceu em dezembro de 2004. Em 2006, foi elaborado o Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTID) “Morar em casa de avenida – Quilombo do Areal: legatários do Areal da Baronesa”, de autoria da historiadora Jane Rocha Mattos e do antropólogo Olavo Ramalho Marques. Olavo destaca que o Quilombo do Areal sofre com as pressões do capital imobiliário e com a colonização, imposta pelos padrões urbanísticos que aniquilam a territorialidade do espaço ao privilegiar sua homogeneização.
Em 2013, o relatório foi publicado. Em fevereiro de 2014, no Diário Oficial da União, a Portaria nº 0076/2014 reconheceu e declarou o território do Areal da Baronesa como terra de Comunidades Remanescentes de Quilombos. Em 25 de maio de 2015, o Plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou o Projeto de Lei do Executivo nº 0053/2015, que autorizou o governo municipal a doar à Associação Comunitária e Cultural Quilombo do Areal os terrenos municipais. Com o decreto, a região se tornou Área Especial e de Interesse Cultural, e sua posse se tornou coletiva, não podendo ser vendida ou penhorada.
Reduto do Samba
Surgido na década de 1930, o bloco carnavalesco mais antigo de Porto Alegre foi fundado dentro do Areal da Baronesa. “Foi aqui onde a gente teve o primeiro carnaval, antes do carnaval centralizado como ele é hoje. Tudo começou com a minha bisavó, com a minha avó, com a minha mãe, enlouquecidas por carnaval”, conta Fabiane.
Conhecido como “Berço do Samba”, é por meio dos batuques da música popular que a história do Areal vem sendo contada ao longo dos anos. Digno desse título, sambistas brasileiros consagrados como Bedeu, Giba Giba e Lupicínio Rodrigues se criaram e foram descobertos no Areal. “Eles fazem a preservação dessa cultura tão vasta, tão extensa, que é a nossa cultura. É samba, é carnaval, é percussão, é dança…”, avalia Fabiane.
O primeiro Rei Momo Negro da Capital também é originário do Areal. Nascido e criado a vida toda no Quilombo, Adão Alves de Oliveira, o Seu Lelé, foi coroado em 1949 e reinou até 1952. Chamado de “Rei Negro”, Seu Lelé faleceu em 2013, aos 88 anos.
Inicialmente organizado pela Academia de Samba Integração do Areal da Baronesa, o Carnaval é realizado nos dias atuais pelo Areal do Futuro, bloco composto principalmente por crianças e adolescentes.Criado em 2005, o projeto Areal do Futuro reúne cerca de 70 crianças e jovens do Quilombo.
"A alguns anos atrás, foi fundada aqui uma escola de samba. Nós somos descendentes de um senhor da Imperadores e fundamos a Integração do Areal da Baronesa. A Integração funcionou por oito anos e, quando o Carnaval foi para o Porto Seco, nós não tivemos condições de acompanhar porque não tínhamos estrutura. Fazíamos o nosso trabalho aqui dentro da nossa rua", expõe Paulo Cezar Silveira, um dos coordenadores do Areal do Futuro.
“A gente começou uma escola mirim e foi crescendo. Hoje, somos um bloco. Saímos para a rua com cento e poucas pessoas na bateria. A gente tem uma sala de aula, onde acontecem oficinas de percussão, sopro…”, comenta a presidente do Areal do Futuro, e coordenadora do projeto, Cleusa Astigarraga, com 76 anos de idade.
Cleusa e Paulo destacam que os primeiros coretos populares foram feitos no Areal da Baronesa. "A maioria das escolas de samba nasceram aqui no Areal da Baronesa, como a Imperador, a Praiana… Então tem toda uma história dos músicos populares das casas de religiões levando a tradição do carnaval para frente", afirmam.
Para além do samba, acontece no espaço oficinas de candombe, uma dança com atabaques típica do Uruguai para as crianças da comunidade. Desenvolvido pelo projeto Candombe POA, as oficinas começaram neste ano. “Era uma vontade antiga que tínhamos porque para nós é muito importante, neste resgate que estamos ajudando a fazer do Candombe no RS, que ele esteja nas comunidades periféricas, afrogaúchas”, expõe Pepe Martini, um dos integrantes do grupo.
A escolha do Areal do Futuro para receber a primeira oficina, de acordo com Pepe, é pela relação da comunidade com a música. Para desenvolver o projeto foi feito um financiamento coletivo online para a confecção de 10 tambores.
O projeto, que era exclusivo para crianças do Areal, hoje é aberto também para as de outras comunidades. No momento são 20 crianças do Quilombo e sete de fora, assim como adultos cuja maioria é de fora da comunidade. “É uma troca cultural interessante, e como as crianças do Areal começaram antes do que muitos adultos que chegam hoje em dia, eles mesmos participam do processo de ensinar essas pessoas que vêm de fora e estão conhecendo o candombe agora”.
Pepe pontua que a perspectiva é permanecer no território. “A nossa ideia é que as crianças na medida que elas vão crescendo e crescendo no candombe também se somem a nossa comparsa, nosso grupo de toque regular.” Os grupos de toque acontecem aos domingos e se revezam entre a Rua da República e o Areal.
Por conta da pandemia, alguns projetos desenvolvidos no Areal foram interrompidos e aos poucos estão sendo retomados. Segundo Fabiane, por meio de parcerias com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Ulbra, são realizadas atividades voltadas para crianças, jovens e também idosos. Atualmente, está sendo construída a Afroteca, uma biblioteca comunitária que está sendo montada em parceria com a Influência Jovem, coletivo de adolescentes do Areal.
Ser quilombola
Casada e mãe de um casal de 22 e 20 anos, Fabiane, aos 46 anos, é acadêmica do curso de Serviço Social e atualmente faz estágio da Defensoria Pública do Estado. “Ser quilombola para mim é acolher, porque quilombo é sinônimo de acolhimento. Ser quilombola é preservar tudo que eu vivi dentro do meu território, e poder manter, para gerações futuras, toda essa história”, afirma Fabiane.
Para ela, o Quilombo Urbano é também uma área de resistência. “Um lugar que resistiu com o passar do tempo, com todas as suas lutas, com todos os seus percalços se manteve no mesmo lugar. Passamos por todo esse processo, outros quilombos também passaram, e outros passaram por situações muito piores. Nós aqui do Quilombo do Areal não passamos nem a metade do que o Silva passou com a remoção de 2005, com os tratores na porta pra derrubar as casas. Ou pelo que passou o Alpes, com as mortes que lá aconteceram, com a invasão por disputa da área. Mas é uma luta, é uma luta diária”, descreve.
Como alguns quilombos da Capital, na Baronesa, o termo “Aquilombar” serve também para descrever sua população. De acordo com Fabiane, há muitas pessoas que nasceram no território e outras que vieram de outro lugar. Como é o caso da senhora Marta Terezinha Cardoso Gonçalves, 68 anos, dos quais 42 anos vividos no Areal. Faz parte do grupo das idosas do Areal que se dedicam ao artesanato e outras atividades artísticas.
“A gente tem muitas pessoas que nunca moraram em outro lugar, mas teve umas pessoas que vieram”. Ao frequentar a Associação, Marta foi aos poucos percebendo o significado do Quilombo.
Acadêmica de Serviço Social, Jeysi nasceu e cresceu no Quilombo. Há oito anos longe do território, ela afirma que independente de não residir mais no Quilombo, “ser quilombola anda com a gente para onde a gente vai”. “Sou uma mulher preta, quilombola, nascida no Quilombo do Areal. Eu estou na base da pirâmide do país. Carregar o título de mulher preta, quilombola e assistente social é muito potente. Meu pai foi presidente da Associação de Moradores do Areal por muitos anos e na minha casa sempre teve conversas políticas. Sempre teve abertura sobre o que é o nosso território, sobre resistência e sobre o que é ser resiliente também”, afirma.
O Areal do Futuro completa 20 anos no dia 20 de março de 2023.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko