A proposta de Emenda à Constituição (PEC) encaminhada pela Comissão de Transição para a retomada do Bolsa Família, irá implicar em gastos de R$ 175 bilhões anuais, fora do teto de gastos, pelos próximos quatro anos. O novo governo precisará também investir até R$ 23 bilhões em 2023, fora do teto de gastos, previsto inicialmente no orçamento federal para 2023. Os dois montantes alcançam R$ 198 bilhões, que devem ficar acima do teto de gastos, de forma a não afetar outros investimentos e gastos que o novo governo precisará realizar. A manutenção do Auxílio de R$ 600,00, a partir de janeiro acrescido do adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos, é fundamental para evitar que milhões de brasileiros passem fome.
Chama a atenção nesse debate o fato de que uma parcela expressiva dos parlamentares e da imprensa foram tomados por uma súbita “devoção” pela responsabilidade fiscal, exalada das matérias e editoriais. Isso é impressionante porque, faltando 80 dias para as últimas eleições, o Congresso aprovou por ampla maioria uma PEC enviada pelo governo Bolsonaro que aumentou o Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 e o valor do vale gás para R$ 120 a cada 2 meses. Na ocasião a proposta passou com 469 votos a favor e apenas 17 contra.
Determinado a comprar votos de qualquer maneira, o governo Bolsonaro foi ainda mais longe. Em outubro, antes do segundo turno das eleições, anunciou a antecipação das últimas duas parcelas do auxílio pago a caminheiros e taxistas. Tomou ainda outras medidas flagrantemente ilegais como a de encaminhar via Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo e Serviço (FGTS) a aprovação de uma proposta que regulamentou o uso de recursos futuros do trabalhador no Fundo em prestações de financiamento de imóveis para a população de baixa renda.
O teto de gastos só existe porque houve um golpe de Estado em 2016 que, dentre outras inúmeras aberrações, aprovou uma emenda inédita entre os países no mundo, que congelou todos os gastos sociais do governo por 20 anos. A “Emenda da Morte” foi uma das primeiras medidas encaminhadas pelo governo golpista de Michel Temer para implantar o projeto de “Ponte para o Futuro”, que ajudou a mergulhar o Brasil na maior recessão que se tem registro na história do país. A referida emenda possui um dispositivo que não deixa margem a dúvidas quanto à sua natureza: a única despesa que não foi congelada é a de pagamentos com juros da dívida pública. Ou seja, para o ganho fácil dos banqueiros não há limites legais, não existe teto de gastos públicos.
Socorrer desde o primeiro dia os milhões de brasileiros que estão passando fome é o mínimo que o futuro governo Lula deve realizar. Em um país com a capacidade de produção de alimentos que tem o Brasil, o fato de existirem 125 milhões de pessoas vivendo em insegurança alimentar só tem explicação como uma decisão política daqueles que detêm o poder econômico e político.
Os bancos e seus serviçais estão entre os maiores críticos da proposta de novo Bolsa Família, alertando para o risco de desorganizar as finanças públicas. Porém, se observarmos o gráfico abaixo, elaborado pela Auditoria Cidadã da Dívida, concluiremos que as advertências e críticas desses segmentos são de um cinismo poucas vezes visto. Conforme se pode verificar, o pagamento de juros e amortizações da dívida pública brasileira comprometeu, no ano passado, mais da metade do Orçamento Federal Executado.
É esse o espírito dos credores da dívida pública, grandes bancos e especuladores em geral, boa parte estrangeiros. O montante de R$ 175 bilhões para tirar da fome milhões de brasileiros, provoca ensaiada “indignação”. Ao mesmo tempo, nem citam a transferência de quase 2 trilhões de reais em apenas um ano para um grupo diminuto de banqueiros e especuladores, muitos dos quais mal sabem onde fica o Brasil (ver no gráfico). Nenhum país do mundo gasta tanto dinheiro com juros da dívida quanto o Brasil. A dívida no Japão, por exemplo, equivale a 257% do PIB, o mais elevado percentual no mundo. Só que lá a taxa de juros real é negativa, ou seja, o país gasta muito menos com juros da dívida.
O sistema de pagamento da dívida pública no Brasil é, antes de tudo, um mecanismo infinito, montado para drenar dinheiro público, obtido às custas do trabalho duro de toda uma população. A aparência de legalidade desse sistema – uma brutal maquiagem da realidade – é justamente para encobrir sua verdadeira natureza: um sistema de exploração de toda uma população, em benefício de bilionários, e que impede o país de progredir.
Os bancos não querem nem ouvir falar em pagamento do principal da dívida. O esquema funciona através do desembolso de juros sem fim, que operam como um mecanismo de enriquecimento contínuo dos credores, ao mesmo tempo em que mantém a economia do país em uma situação de anemia operacional, como se estivesse se movimentando com uma grande bola de ferro presa ao tornozelo.
O Brasil vem de cinco anos de estagnação do Produto Interno Bruto (PIB), possivelmente o pior desempenho do produto que se tem registro nas contas nacionais. O país, que entre 2010 e 2014 ostentava a condição de 7ª economia do mundo, em 2020 saiu da lista das dez maiores pela primeira vez desde 2007. Mas não tem dinheiro para desenvolver política industrial porque está fadado a transferir todo ano 5% ou mais do PIB para os banqueiros. Como parte desse método macabro de exploração colonial, o Brasil tem há anos o maior juro real (ou seja, taxa de juros descontada da inflação prevista para os próximos 12 meses) do mundo. Quando cai um pouco no ranking fica sempre entre os primeiros.
O fato da taxa básica de juros do Brasil estar muito acima da média mundial (neste momento bem acima do segundo lugar da lista, o México) seguindo uma receita que nunca funcionou – tentar controlar com juros altos uma inflação que não decorre de excesso de demanda – não tem nada de “opção técnica”. O orçamento federal destinou míseros R$ 139,9 bilhões para saúde neste ano e R$ 62,8 bilhões para a educação, que são uma fração dos quase dois trilhões destinados aos juros da dívida em 2021. Mas quase ninguém fala disso, é como se esses pagamentos fossem uma determinação divina.
O país precisará ser reconstruído. O debate atual sobre o novo Bolsa Família, que estamos podendo acompanhar, nos dá uma indicação do grau de pressões, vindo de forças muito poderosas, que o novo governo enfrentará. Os cenários que podemos projetar são os mais variados possíveis para os próximos meses e anos. Mas já está bem claro que se o problema da dívida pública não for enfrentado, não há chance de o futuro governo começar a resolver pelo menos os problemas nacionais mais urgentes.
* José Álvaro de Lima Cardoso é economista
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria