Reconectar a identidade coletiva dos trabalhadores a partir de suas dimensões é tarefa imediata
Por Delana Corazza*
Em setembro de 2022, algumas semanas antes do primeiro turno das eleições no Brasil, fui a um culto da Igreja Sara Nossa Terra, próximo à Avenida Paulista, parte nobre da cidade de São Paulo. A Igreja neopentecostal, fundada na década de 1970, carrega uma forte temática de “guerra espiritual” e tem um perfil mais jovem e de “classe média”, diferente da maioria das igrejas neopentecostais, com um perfil mais popular.
Quem ministrou o culto naquela manhã de domingo foi seu fundador, uma das grandes lideranças religiosas fundamentalistas apoiadoras do governo de Jair Bolsonaro, o bispo Robson Rodovalho. Com a Bíblia sobre a bandeira do Brasil, Rodovalho estava claramente em campanha pela reeleição de Bolsonaro. Informou que a esposa, também presente no local, havia acabado de chegar de uma viagem em ações públicas com a primeira-dama, Michelle Bolsonaro. O discurso pregado era que passávamos por um período importante de escolha entre a verdade e a mentira. Para a defesa desta verdade, apresentou seus diversos livros “científicos” sobre a Bíblia – Rodovalho foi por vários anos professor de física da Universidade Federal de Goiás (UFG) e se utiliza dessa sua formação acadêmica para dar um caráter de rigor científico aos seus argumentos. Em sua pregação, condenou conhecimentos que vinham de “narrativas” por conta do relativismo frente a verdade, sendo a verdade, o cristianismo e sua leitura fundamentalista da Bíblia, traduzidos naquele momento na defesa da reeleição de Bolsonaro.
No mesmo período, também estive em um culto no Jd. Peri, bairro periférico da cidade de São Paulo, em uma ocupação que existe há décadas, mas ainda extremamente precária, com ruas sem asfalto e esgoto a céu aberto. O culto estava lotado, com pessoas na porta porque não conseguiram lugar para sentar. Ao conversar com uma liderança comunitária que atua na igreja sobre as eleições, ela me informou que “ali todo mundo era PT”. O pastor que falava no culto, e que também pertencia à Igreja Sara Nossa Terra, acolhia o povo, levava música e palavras de esperança, assim como cestas básicas para aquele território regularmente. Ele tinha o mesmo discurso de Rodovalho, mas com uma linguagem mais popular, adaptada àquela realidade, inclusive dando seu testemunho de que foi salvo da vida do crime a partir de sua conversão. O pastor não falava de eleições, mas estavam ali elementos de um discurso fundamentalista que tem formado parte significativa de nosso povo que frequenta as igrejas evangélicas – percentual significativo da classe trabalhadora, principalmente a mais empobrecida.
Essa inserção ativa em espaços de fé, que antes eram vistos como sagrado e separado do mundo, demonstra que o fundamentalismo religioso não perde sua força com a eleição de Lula. Para além das relações nos espaços institucionalizados de poder, é no diálogo direto, dentro das igrejas, que o fundamentalismo se legitima e se amplia. É necessário olharmos para as entrelinhas dos discursos no interior das igrejas que se consolidam a partir de “verdades” cotidianamente afirmadas e reafirmadas, e que se consolidam como enfrentamento direto a um projeto popular.
Precisamos entender o fenômeno religioso neopentecostal como possibilidade de reorganização de nossa classe, dado que o processo de desindustrialização e reestruturação do mundo do trabalho que atravessou a década de 1990, fruto das políticas neoliberais – período em que se inicia o aumento das igrejas neopentecostais nos nossos territórios – muitos trabalhadores perderam, além de seu emprego, seu espaço de sociabilidade e luta coletiva, uma vez que nas fábricas eles tinham a possibilidade de se organizarem enquanto classe para melhorar suas condições de vida.
As igrejas sempre foram um lugar importante de socialização da classe trabalhadora. Porém, naquele momento de enfraquecimento, ou mesmo ausência desses espaços de socialização e luta, foram as igrejas evangélicas que absorveram a necessidade de um lugar comum e cotidiano dos trabalhadores nos territórios periféricos, muitas vezes transformando as pautas coletivas em pautas individuais, a partir de teologias individualistas e persecutórias. Este processo ressignificou a identidade dos trabalhadores, transformando-os em irmãos e retirando a perspectiva coletiva e de classe que as teologias libertadoras propunham nas décadas anteriores.
A construção ideológica da perda da centralidade econômica e política do proletariado, e a consequente quebra da visão do socialismo como horizonte na superação da opressão, contribuiu para que as teologias críticas e transformadoras perdessem sua força, abrindo espaço para formas individualistas do povo pobre e oprimido viver sua fé, vinculando a massa trabalhadora a um projeto cristão antipovo.
Esse projeto da direita fundamentalista cristã conecta parte significativa da nossa classe a uma visão de mundo contrária à sua realidade, atingindo principalmente as mulheres – mães, pobres e pretas – ao mobilizar sentimentos a partir do pânico moral, fruto das constantes ameaças as suas famílias e aos seus filhos. A igreja é refúgio do medo, acolhe e cuida.
O projeto fundamentalista se consolida em nossos territórios periféricos por meio de uma linguagem e estética reconhecíveis pelo povo, mediada por pastores que atuam como lideranças comunitárias e que respondem às demandas mais ordinárias de forma concreta e palpável. Muitos destes pastores estiveram em plena campanha pela reeleição de Bolsonaro dentro das suas igrejas. Porém, não necessariamente são fundamentalistas; muitas vezes, na ausência de referências libertadoras que cheguem até eles, acabam também por reproduzir o discurso construído pela direita cristã, e que chega nos territórios periféricos atravessando a vida cotidiana dos trabalhadores por meio de uma metodologia muito eficiente.
A esquerda ainda é um fantasma que apavora parte dos evangélicos, inclusive os mais pobres, já que há anos ela é associada enquanto um espectro destruidor da família e contrária à religião. Do nosso lado também erguemos muros, muitas vezes generalizando os evangélicos, colocando-os como ignorantes ou massa amorfa fundamentalista, aniquilando assim o diálogo e abrindo espaços para que a direita aprofunde a distância entre a esquerda e o povo crente.
Reconectar a identidade coletiva dos trabalhadores a partir das tantas dimensões que os compõem – seja nos espaços de trabalho, nos territórios e, ousamos dizer, principalmente nos espaços de fé, resgatando teologias libertadoras, é tarefa imediata do campo popular. Não podemos esperar mais quatro anos para compreender que o projeto fundamentalista está no cotidiano de nossa classe. É ali, nos territórios, que iremos desconstruir visões que engessaram o caráter coletivo da transformação social a partir das tantas espiritualidades do povo. A direita cristã segue seu caminho e não irão parar. Por isso, temos que traçar os nossos.
* Delana Corazza é pesquisadora do Observatório sobre os Evangélicos e a Política do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
**O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é uma instituição internacional, orientada pelos movimentos populares e políticos da Ásia, Africa e América Latina, que tem como objetivo promover o pensamento crítico por meio de uma perspectiva emancipatória em prol das aspirações dos povos. Leia outras colunas.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho