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Propaganda de guerra chega às escolas russas: entenda o novo projeto pedagógico do Kremlin

Escolas russas têm aulas extracurriculares baseadas na tese do governo sobre a guerra na Ucrânia

Rio de Janeiro |

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O presidente russo, Vladimir Putin, realiza uma conversa aberta com alunos em de Kaliningrado em 1º de setembro de 2022. - Gavriil Grigorov / SPUTNIK / AFP

A guerra da Ucrânia já faz parte do currículo das escolas da Rússia. Desde setembro, em todas as escolas do país foram introduzidas aulas semanais obrigatórias com temas ligados ao patriotismo, valores russos, e, claro, a perspectiva russa sobre o conflito na Ucrânia. Trata-se do projeto do Ministério da Educação do país, intitulado "Conversas sobre o importante".

Em 1º de setembro, o presidente russo Vladimir Putin participou de uma roda de conversa com alunos do ensino fundamental da cidade de Kaliningrado, onde falou sobre temas vagos ligados ao desenvolvimento das novas gerações, autorrealização dos jovens e a importância e o lugar da Rússia em diversas áreas de interesse dos jovens presentes.

Em determinado momento, o presidente abriu mão da abstração e falou diretamente sobre a sua visão da história ligada à Ucrânia, a região de Donbass, e o lugar da Rússia no mundo de hoje.

“Ninguém sabe ou entende que depois do golpe de estado na Ucrânia em 2014, os moradores de Donetsk, Lugansk, em uma parte significativa dela, em todo caso, a Crimeia, não quiseram reconhecer os resultados deste golpe. Este não é um tema tão infantil, mas é bastante compreensível. Eles começaram uma guerra virtual contra eles. Eles a levaram por oito anos. Nossa tarefa, nossa missão, a missão de nossos soldados, combatentes, é acabar com esta guerra! E claro, para proteger a própria Rússia!”, disse Putin aos estudantes.

A alternância entre o tom ameno e as questões relacionadas à guerra na Ucrânia não é por acaso. Na conversa com os estudantes, evento transmitido em rede nacional, Putin dava o tom da nova iniciativa pedagógica do Kremlin: defender a versão do governo russo sobre o conflito ucraniano no sistema educacional do país.

De acordo com o site do Ministério da Educação, os principais tópicos do projeto estão relacionados a aspectos-chave da vida humana na Rússia moderna. Em tese, a ideia é abrir um espaço informal de discussão com os alunos sobre valores humanos como amizade, respeito, memória histórica, justiça. Mas, de acordo com o presidente do sindicato "Aliança dos Professores", Daniil Ken, a iniciativa é de sistematizar a propaganda de guerra nas escolas.

Ao Brasil de Fato, Ken afirma que a propaganda militarista chegou às escolas russas já em meados de março, logo após a eclosão da guerra na Ucrânia, chamada oficialmente na Rússia de “operação especial militar”, em 24 de fevereiro. No entanto, não havia qualquer sistematização sobre aulas extracurriculares que começavam a ser aplicadas sobre os objetivos da operação militar russa, as sanções do Ocidente, os êxitos da economia russa, etc.

De acordo com ele, para o Ministério da Educação da Rússia era importante estabelecer um certo sistema para essas aulas a partir desse ano letivo. Por isso, foi criado o projeto “Conversas sobre o importante”, que acontecem semanalmente, sendo a primeira aula da semana às segundas-feiras.


Vladimir Putin conversa com alunos do ensino fundamental na cidade russa de Kaliningrado, em 1º de setembro de 2022. / Gavriil Grigorov / Sputnik / AFP

A concepção das novas atividades pedagógicas nas escolas russas se baseia na premissa de que, em uma sociedade complexa como a que nós vivemos, os jovens devem ter um espaço de discussão informal sobre como a sociedade é construída. Assim, em meio a pautas mais “inofensivas” ligadas ao Dia do Idoso ou Dia das Mães, por exemplo, são introduzidas noções de patriotismo ligadas à guerra na Ucrânia. 

“Em cada aula existem materiais inúteis, mas não nocivos, e existem informações nocivas, em algum momento justificando a guerra, em outro falando dos soldados mortos na guerra como heróis, ou simplesmente elogiando o presidente ou o prefeito de Moscou. E isso é muito ruim, porque no volume total acaba sendo pouco, mas trata-se de informação falsa e propaganda política que, em geral, é proibida nas escolas”, explica.

Pais de alunos que não quiseram que seus filhos participassem dessas aulas tiveram que entrar em conflito com a direção das escolas. É o que conta ao Brasil de Fato a mãe de um aluno da cidade russa de Petrozavodsk, Anastasia Manenkova.

“Todos ficamos sabendo pelas notícias e depois nos informaram na escola que a primeira aula nas segundas-feiras será uma aula reduzida de 30 minutos - normalmente é de 45 -, que seria essa aula em todas as escolas do país que seria montada pelo material do Ministério da Educação, que foi divulgado no site do próprio Ministério. E lá nós vimos que estava incluída uma série de materiais propagandistas. Não consigo dizer o que acontece concretamente nessas aulas hoje, meu filho também não, porque nos recusamos a participar dessas aulas”, conta.

De acordo com ela, o material divulgado a ser “conversado” durante essas aulas continha menções sobre a narrativa de que a Ucrânia é parte da Rússia, destacando a unidade entre os dois países e que a Ucrânia deve ficar com a Rússia. “Havia algumas coisas bem abertas sobre, por exemplo, questões pró-exército, no tom ‘viva os nossos soldados’, tudo isso. Algumas coisas completamente perversas que não deveriam ter nas escolas”, acrescenta.

Anastasia Manenkova conta que, ao informar a coordenadora de classe da escola que não queria eu o seu filho de 13 anos participasse da aula, ela recebeu uma ligação da direção ameaçando o seu filho de expulsão.

“A diretora da escola me ligou e criou um escândalo comigo, ameaçando meu filho de expulsão da escola, aumentou a voz, em geral foi uma conversa muito desagradável. Eu ouvi tudo e falei ‘obrigado, eu não vou mais discutir esse tema com você’”, diz a moradora de Petrozavodsk.

Ela acrescenta que enviou uma declaração por escrito à direção da escola sobre os motivos da recusa da participação do filho nas aulas extracurriculares, acrescentando que não houve resposta e a situação permanece congelada. O filho segue sem frequentar as aulas do projeto, mas ela observa que é minoria, e muitos pais acabam apoiando a iniciativa. “Chegamos a um ponto na sociedade que a gente tem até receio de conversar com outros pais sobre o assunto”, completa.

Educação sob autocensura

Considerando que a “operação especial militar” na Ucrânia ainda angaria um significativo apoio de uma parcela da população russa, o projeto do Ministério da Educação do país tem gerado desdobramentos políticos entre o corpo docente das escolas.

Por um lado, o apoio ao governo Putin e à guerra na Ucrânia repercute também entre os professores, avalia o presidente do sindicato "Aliança dos Professores". "Nós vemos exemplos nas escolas de uma propaganda furiosa e muito forte que as pessoas divulgam nas redes sociais na Rússia, quando aparecem certos áudios ou vídeos das aulas”, comenta.

Por outro lado, ele observa que a pressão sobre os educadores não alinhados com a narrativa do Kremlin aumentou. “Se antes algum professor foi em algum protesto ou escreveu algo nas redes sociais de maneira crítica, agora buscam expulsar esses professores. Eles são demitidos, a eles são impostas penalidades disciplinares e multas, são criadas condições de trabalhos muito ruins para que alguém se demita por conta própria”, destaca.

Ele comenta, no entanto, que nas "Conversas sobre o importante", se o professor viola as instruções e não adere à propaganda proposta pelo governo, os riscos não são tão grandes, pois também depende muito da disposição da direção escolar de levar uma denúncia para o nível administrativo, para fora dos muros da escola. O efeito mais comum e nocivo neste sentido, segundo Ken, é que, por medo de pressão, risco de prisão, multas, há um nível muito alto de autocensura. “As pessoas têm medo de se expressar porque têm medo do governo”, diz ele.

“Em relação à educação, isso é muito ruim porque liberdade acadêmica, liberdade de expressão, liberdade na educação, não pode coexistir com propaganda política. Por isso, essa censura e esse medo também são transferidos às crianças. E nós vemos que se, alguns anos atrás, os estudantes eram bem mais progressistas e ousados, agora nós vemos bastante que inclusive os estudantes tornaram-se mais cautelosos. Eles se posicionam criticamente em relação ao governo, criticam a guerra, mas também adquiriram essa autocensura ao pensarem que é perigoso se expressar. E isso também é ruim para a educação”, completa.

Edição: Thales Schmidt