Um cuscuz realmente gostoso, diferente desses que a gente vê hoje
Uma das defesas presentes no Guia Alimentar para a População Brasileira pode ser exemplificada pela história do cuscuz no Nordeste. Na década de 1940, as famílias rejeitaram tentativas industriais de processamento do prato típico da região, como identificou Josué de Castro, na obra clássica Geografia da Fome, publicada em 1946.
De acordo com o livro, o sentido do "faça você mesmo" imperava na cultura alimentar, quando a população se apropriava do plantio do milho aos cuidados com o sabor do cuscuz no prato.
Nascido em 1946, Sebastião Ferreira Sobrinho recorda de uma época em que sertanejos e sertanejas preferiam "bater o milho do cuscuz" em suas próprias residências. Ele nasceu em Ibimirim, no sertão pernambucano, e guarda uma memória afetiva do típico prato, que era feito pelos seus país no Sítio Mulungu.
“Meu pai plantava o milho e deixava secar na espiga. Ao colher o milho, deixava de molho, depois ele era moído numa máquina, peneirado, e aquela massa peneirada fazia o cuscuz do milho puro. Um cuscuz realmente gostoso, diferente desses que a gente vê hoje. Nunca vamos esquecer essa vivência no sítio, de comer as comidas puras, o sabor puro, sem mistura nenhuma", lembra.
E a memória afetiva de Sebastião vai ao encontro dos registros científicos de Josué de Castro.
O geógrafo relata, por exemplo, que, na década de 1940, até mesmo uma indústria de refinaria de milho foi fechada em Salgueiro (PE), a cerca de 250 do Sítio Mulungu. O motivo do fracasso comercial é que as pessoas preferiam fazer o cuscuz com milho preparado em suas próprias residências.
De acordo com Josué de Castro, a escolha de uma apropriação total do processo por parte das famílias preservava justamente um tesouro nutritivo no cuscuz consumido naquela época.
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Perdas com a industrialização
As décadas se passaram e a influência da indústria alimentícia reduziu bastante a antiga tradição sertaneja com o cuscuz. Por um lado, o prato continua sendo um dos mais populares nas mesas nordestinas. Por outro, a produção industrializada ocupou as residências e intensificou até mesmo a transgenia na cultura alimentar do cuscuz.
Dentro deste cenário, cabe uma pergunta: o que estaria acontecendo o milho crioulo? Ou seja, o que estaria acontecendo com o milho exemplificado pelo relato de Sebastião Sobrinho?
O assessor técnico de sementes Emanoel Dias, da organização AS-PTA, aponta que há desafios de ordem técnica e política para que as pessoas do campo mantenham a produção de um milho sem alteração de sua composição genética. Um exemplo técnico é a facilidade de polinização do cereal. O especialista explica que a simples proximidade física entre lavouras é capaz de contaminar o milho crioulo. Outro exemplo citado é a ausência de políticas públicas que defendam as sementes crioulas.
Ataque à autonomia
Os impactos da modificação genética dos alimentos é outro ponto trazido por Emanoel Dias. Ele menciona que o tema é alvo de divergências por setores científicos. Enquanto artigos e pesquisas associam que alimentos geneticamente modificados a danos à saúde, há grupos que defendem o desenvolvimento dessa tecnologia.
Independente do foco científico, Emanoel destaca que "além dessa divergência, o milho contaminado tem efeito na autonomia das pessoas. Uma vez contaminado [o milho], as pessoas vão perder aquela mística da troca, da doação, e vão sempre ter que comprar o milho", ressalta ao defender políticas públicas de preservação das sementes crioulas.
A autonomia no preparo do cuscuz, exemplificada por Sebastião Sobrinho durante a infância no Sítio Mulungu, passa para outro cenário com a industrialização e intensificação da transgenia. Entra em jogo a dependência das famílias diante de empresas e do governo.
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Religação cultural
A modificação genética das sementes de milho na agricultura familiar é apontada como um desafio por movimentos populares do campo. Nos últimos anos, algumas experiências intensificaram a produção de flocos de cuscuz com milho crioulo.
Para Aline Rios, militante do Movimento Camponês Popular (MCP), há um "tripé de vantagens" nessa religação do prato típico no Nordeste. Ela conta que o trabalho valoriza a questão afetiva, ao religar as culturas; a saúde, ao considerar a procedência dos alimentos e o respeito à natureza; além da financeira, desenvolvendo uma economia solidária para as famílias camponesas.
“A gente [MCP] tem essa questão do 'tripé da sustentabilidade'. Quando a gente consegue atender o social, o econômico e o ambiental, a gente consegue se fortalecer na produção sustentável de alimentos”, defende.
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Cuscuz disponível
Há experiências de produção sustentável de flocos para cuscuz na região Nordeste. Um exemplo é a Cooperativa Agropecuária Mista Regional do Irecê, no estado da Bahia, que produz, em média, 80 toneladas de flocão de milho crioulo por mês, distribuído para todo o Brasil.
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As unidades do Armazém do Campo pelo país disponibilizam flocos de cuscuz com milho crioulo de diversos lugares.
Edição: Douglas Matos