A política e o futebol encontram-se entrelaçadas de mil maneiras na Copa do Qatar. Uma delas, sem dúvida, diz respeito à camisa verde e amarela, cuja significação vem se tornando objeto de uma disputa acirrada na sociedade brasileira, envolvendo grupos sociais antagônicos, instâncias de poder as mais diversas, narrativas ideológicas que travam entre si uma batalha cultural sem tréguas.
A significação da camisa verdade e amarela, porém, transcende o debate interno, alcançando um valor muito mais amplo, baseado em identificações transversais que atravessam as fronteiras do Estado-nação.
Lançada em 1954 para substituir a camisa branca utilizada em 1950, a verde e amarela tornou-se em pouco tempo símbolo do jogo bonito, do atleta negro, da equipe multirracial, ensejando identificações nas comunidades da diáspora (a da Jamaica, por exemplo, onde Bob Marley reverenciava a figura de Pelé), ou, ainda, nos países africanos que se emancipavam do colonialismo europeu (em Moçambique, em especial, onde Eusébio, talvez o maior atleta de futebol do continente africano, ensaiava os primeiros dribles em um time denominado “Os Brasileiros”).
Graças à Garrincha, Didi e Pelé, a camisa verde e amarela se achava associada não somente à dimensão estética de um jogo concebido como arte, mas, ao mesmo tempo, à dimensão política de um jogo que inspirava narrativas de emancipação no Terceiro Mundo.
De 1958 a 1970, no período de maior brilho do futebol praticado pelo selecionado brasileiro, ela foi expandindo os significados de que se revestia, sendo identificada como representação não somente da nacionalidade, mas também da negritude, do pan-africanismo, da diversidade cultural, servindo nesse sentido de inspiração aos atletas dos países pobres nos quais o futebol se afigurava como uma prática de liberdade.
Mas depois de atingir o ápice com a conquista do tricampeonato, ela acabaria por perder o brilho no decorrer dos anos setenta, tanto no plano esportivo – devido a um futebol militarizado que já não era mais capaz de encantar ninguém – quanto no plano político, em virtude da apropriação nacionalista levada a cabo pelo regime autoritário.
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No entanto, na etapa seguinte, no contexto da redemocratização da sociedade brasileira, a camisa verde e amarela readquiriu o valor diferencial que a distinguira no conjunto dos selecionados nacionais, retomando a vocação revolucionária com a entrada em campo da “Seleção da Abertura”, formada à época por Sócrates, Reinaldo e Zico, dentre outros atletas que reuniam de maneira indissociável futebol e política. Tratava-se, então, de resgatar a tradição do jogo bonito e de conectar as lutas sociais, projetando, em todas as esferas da atividade humana, os contornos indefinidos de uma utopia lúdica.
A conquista em 1994 do tetracampeonato, embora sem o encantamento do time de 1982, recolocou o Brasil como uma força hegemônica no campo futebolístico, despertando a atenção das corporações globais. Não por acaso, dois anos depois a Nike firmou o acordo comercial com a CBF, atribuindo à camisa verde e amarela valores econômicos inéditos, ao mesmo tempo em que lhe subtraía os significados políticos que ela havia adquirido no período socrático.
A partir daí, o apoliticismo passaria a se constituir na principal marca do uniforme patrocinado pela empresa de material esportivo, cuja estratégia de marketing acabaria potencializada pela conquista do pentacampeonato, em 2002. Todavia, quando o enlace da Nike com a CBF parecia destinado à felicidade eterna, os títulos mais relevantes começaram a escassear, os mercados europeus já não se sentiam mais tão atraídos assim pelo “produto”, e, para piorar as coisas, sobreveio o 7 a 1, com o corolário da desvalorização econômica e esportiva da camisa verde e amarela.
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De lá para cá, no entanto, observa-se um esforço de recuperação do prestígio perdido. As esperanças de redenção do público torcedor têm recaído sobretudo nas costas de Neymar, indiscutivelmente uma das maiores revelações do futebol brasileiro desde a geração dos Ronaldos. A cada nova edição da Copa as esperanças se reacendem. De fato, pouco antes do embarque para o Qatar, Neymar foi o convidado de Jair Bolsonaro na “Super Live da Liberdade” produzida para a campanha eleitoral do candidato da extrema direita. Durante a transmissão, as personagens se elogiaram mutuamente, desejando-se boa sorte, compartilhando o “sonho” da reeleição presidencial e do título mundial.
Se, no caso de Neymar, o engajamento na campanha eleitoral constituía uma surpresa, levando-se em consideração a postura tradicionalmente alheia do jogador diante das questões políticas; no caso de Jair Bolsonaro, a instrumentalização do esporte remonta à chegada ao Palácio do Planalto. Desde o início as ações objetivaram reeditar as táticas de propaganda política do general Garrastazu Médici; fosse recriando a figura do presidente-torcedor; fosse frequentando as arenas de futebol para se exibir ao público, erguer troféus, vestir as camisas de times, os mais diversos, grandes e pequenos, de todos os cantos do país. E, como peça-chave da referida estratégia: a apropriação da camisa verde e amarela, à semelhança do que havia ocorrido nos Anos de Chumbo.
Dessa maneira, após o longo período de apoliticismo neoliberal, a camisa verde e amarela se vê agora submetida à politização orquestrada pela extrema-direita, cujos militantes bloqueiam as estradas, acampam diante dos quartéis, dentro das igrejas, nas arquibancadas das arenas, exigindo a instauração de uma nova/velha ordem autoritária.
É preciso desbloquear o quanto antes o processo de ressignificação da camisa verde e amarela, dissociá-la do projeto de poder da extrema-direita, a fim de lhe restituir os valores históricos que a transformaram no símbolo transnacional da emancipação dos grupos subalternos, oprimidos e colonizados. Parafraseando a divisa do movimento liderado por Sócrates, Casagrande e Wladimir, que ela volte a brilhar, seja na vitória, seja na derrota, mas associada, sempre, à democracia.
*José Paulo Florenzando é professor do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Conselho Consultivo do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens. Mestre e Doutor em Antropologia pela PUC-SP e Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo (USP).
Edição: Rodrigo Chagas