Impactos

Geração de energia eólica ameaça sítios arqueológicos e santuários ecológicos no Seridó

Torres de geração de energia eólica alteram a paisagem e a vida das pessoas no sertão do Rio Grande do Norte

|
Seridó, região do sertão do Rio Grande do Norte - Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

[A reportagem faz parte de uma série produzida pela Marco Zero, que percorreu quase 1.100 quilômetros pelos sertões e litoral do Rio Grande do Norte para conhecer o que está acontecendo no cotidiano de algumas comunidades que convivem com os problemas criados pelo modelo brasileiro de produção de energia eólica. Leia mais aqui.]

Depois de passar por duas comunidades pesqueiras do litoral do Rio Grande do Norte, mudamos completamente de paisagem no terceiro e último destino da nossa viagem*. Chegamos ao Seridó, região no sertão potiguar onde vivem mais de 310 mil pessoas formada por serras que abrigam dezenas de sítios arqueológicos, nascentes de rios e santuários ecológicos em plena caatinga.

Durante o nosso percurso da vila de Sertãozinho até Cerro Corá, um dos 24 municípios que integram a região, passamos por uma estrada de terra que atravessa uma área com vários parques eólicos em plena expansão. Não parece, mas aquele trecho sem calçamento entre os municípios de Lajes e Cerro Corá faz parte da rodovia BR-104. A primeira coisa que chamou a nossa atenção foi o intenso tráfego de caminhões e utilitários com adesivos de empresas, levantando nuvens de poeira.

Leia também: "A Caatinga deve ser estudada como referência", diz pesquisadora sobre mudanças climáticas

Da rodovia, saem diversos acessos laterais ou vias secundárias, abertas em meio à vegetação. Esses caminhos são largos, apesar de menos importantes, porque foram construídos para a instalação dos aerogeradores, cujo transporte é feito por grandes carretas. Estávamos diante do primeiro impacto causado pelos empreendimentos de energia renovável: o desmatamento da Caatinga, único bioma inteiramente brasileiro.

Desmatamento e degradação das serras

Depois de uma hora de viagem na BR de terra chegamos a um vilarejo. Poucos quilômetros antes, uma placa indicava “Complexo Eólico SRMN (Santa Rosa Mundo Novo)”, do grupo empresarial português EDP Renewable. Mais adiante, no alto de uma serra, os aerogeradores se destacavam no horizonte. Todas as pequenas casas de alvenaria do povoado estavam fechadas, algumas com rachaduras nas paredes. A poeira pairava no ar. O dia estava quente. Não fazia parte dos planos parar ali, mas vimos um senhor sentado em frente a uma das casas e decidimos conversar com ele. Queríamos saber onde estavam os moradores daquele lugar que nos parecia deserto.

Descobrimos que estávamos em Recanto, distrito de Cerro Corá, a 29 quilômetros da sede do município.

Bastou contar o objetivo da nossa visita à região, para que o homem, idoso e de sorriso largo, abrisse sua casa para mostrar as rachaduras que cortavam as paredes, consequência das explosões realizadas pelas empresas para a instalação do complexo eólico há um quilômetro do povoado. “As explosões eram muito fortes, as telhas só faltavam voar. Eles faziam três explosões de uma vez e a poeira tomava conta do povoado por horas, a gente nem conseguia ver o horizonte”, disse Antônio Acelino de Moura, aposentado de 65 anos, que mora no município de Lajes, a 23 quilômetros dali.

Ele explicou que costumava passar a maior parte do tempo em Recanto por causa da pequena plantação que complementa a renda familiar. 

Acelino contou também que sua casa, onde já funcionou um bar, foi utilizada como ponto de apoio para os trabalhadores das empresas eólicas e que representantes do negócio prometeram fazer melhorias na comunidade para compensar os impactos das instalações. Porém, as promessas nunca foram cumpridas e os reparos dos danos causados pelas explosões foram realizados pelos próprios moradores. “Eles [representantes da empresa] disseram que as rachaduras não tinham sido causadas pelas explosões e eu mesmo tive que comprar o material e mandar cobrir tudo. Se fosse esperar por eles, a casa tinha caído”.

De acordo com Acelino, a única obra de compensação que a empresa fez foi “construir uns galinheiros em poucas propriedades”. 

E onde estavam seus vizinhos, os demais moradores do povoado? Antônio Acelino explicou que a culpa era da poeira. Segundo ele, algumas pessoas estariam em suas casas de portas e janelas fechadas. “Depois que começaram a instalação desses parques aqui é muita poeira, ninguém aguenta ficar com as portas abertas, não. Eles explodem as serras e fica uma nuvem de poeira no ar por horas, além da poeira dos carros que ficam passando o dia todo”, respondeu.

Leia também: Clima é “oportunidade para Brasil se destacar política e economicamente”, afirma especialista

Tentamos contato com a EDP Renewable, responsável pelo Complexo Eólico SRMN (Santa Rosa Mundo Novo), para saber o posicionamento da empresa diante das reclamações dos moradores da comunidade, mas até o fechamento da reportagem não obtivemos retorno.

O Grupo EDP, sigla de Energia de Portugal, se apresenta como “o quarto maior produtor de energia eólica do mundo”, presente em 28 países. O grupo português é o maior acionista da EDP Renewable, controlando 75% das ações na bolsa de Nova York, com os demais 25% pulverizados por investidores de, pelo menos, 30 nacionalidades, com maior concentração de norte-americanos e britânicos.

De Recanto seguimos para Cerro Corá, nosso último destino.

O Seridó vai à luta

Em abril deste ano, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) homologou a criação do Geoparque Seridó. O reconhecimento, que prevê a realização de ações de proteção ambiental e preservação das características geográficas, não foi suficiente para frear o desmatamento causado pela instalação das eólicas. Ainda pouco conhecida do público, a classificação de Geoparque Mundial foi criada para promover o desenvolvimento sustentável de áreas de importância geológica única na história da Terra.

A homologação pela Unesco incrementou, ao longo de 2022, o ecoturismo na região, acelerando uma tendência da última década, afirmam os moradores e comerciantes.  

No entanto, não foram esses atributos que incluíram Cerro Corá no roteiro da equipe da Marco Zero, mas sim as ameaças que o território tem enfrentado nos últimos anos com o avanço dos parques eólicos. A instalação desses empreendimentos e a especulação que chega junto com eles, levou pesquisadores, biólogos, organizações não-governamentais e sociedade civil, a se unirem na tentativa de preservar as características que fazem do lugar um paraíso natural e cultural. Eles compõem o movimento Seridó Vivo.

Na chegada a Cerro Corá, no final da tarde, ficou nítido que o sossego de Enxu Queimado e Maca tinha ficado para trás. O município seridoense parece estar se tornando, realmente, um polo do turismo regional, com comércio ativo, pousadas e hotéis, restaurantes e opções de lazer para os viajantes. O clima ajuda. Basta anoitecer que a temperatura fica amena em virtude da altitude – 610 metros acima do nível do mar – e da vegetação que cobre as serras.   

De acordo com representantes do Seridó Vivo, mais de 120 aerogeradores devem ser instalados nas serras ao longo dos próximos anos. O Instituto do Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (Idema) afirma que, de 2019 a 2022, foram aprovadas 700 licenças de operações para atividades eólicas em todo o estado. Só em 2022 foram 229 aprovações. O Seridó Vivo é uma articulação composta por grupos e pessoas que se reuniram para fiscalizar os processos de instalação dos complexos eólicos.

Os dados disponibilizados pelo Mapa das Energias Renováveis levam a crer que os ativistas do movimento têm razões para se preocupar. Essa ferramenta criada pela Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte (Fiern), informa que o vizinho município de Lajes, com 34 centrais eólicas instaladas, deverá receber mais 33 cujos projetos estão em andamento, o que deverá gerar mais 1,5 gigawatts/hora (para efeitos de comparação, isso é 50% a mais do que os 0,99 gw que todo o estado de Pernambuco produz atualmente).

Por isso, partimos para conhecer as tão faladas serras do Seridó, entre elas a Serra do Feiticeiro, onde paramos em um mirante para avistar uma grande extensão de vales e montanhas cobertas pela em bom estado de preservação, santuário de papagaios, maracanãs e ararinhas. A Arara Maracanã, por exemplo, é uma espécie nativa da região que está em risco de extinção. O pessoal do Seridó Vivo realizou levantamentos e identificou apenas 30 exemplares dessas aves. 

“Os estudos em relação aos impactos das eólicas já existem há muito tempo, tem pelo menos dez anos, mas desde o ano passado começaram a surgir muitas solicitações de instalação e operação de complexos eólicos no Seridó. Por isso, as pessoas que já estudam essa área começaram a se mobilizar para tentar evitar que os impactos chegassem com tanta força como chegou em outras regiões do estado”, contou a estudante e integrante do Seridó Vivo, Rani Sousa.

Também integrante do movimento, o biólogo e doutor em ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Paulo Marinho, destacou a relevância que as áreas de serra têm para o equilíbrio ambiental: “as áreas de serra ainda são áreas com a vegetação nativa bastante preservada porque são regiões onde os agricultores não costumam plantar devido às condições de solo. Com a chegada das eólicas, essas serras estão sofrendo tanto com o desmatamento das áreas de instalação dos aerogeradores quanto das áreas que são desmatadas para a construção de estradas”.

Para o biólogo, a falta de fiscalização dos órgãos ambientais e a facilidade com que esses empreendimentos conseguem se instalar nas serras, sem precisar apresentar o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), é consequência da estigmatização negativa que recai sobre a caatinga. “A caatinga é um bioma seco, ele é semiárido, então, quando a gente compara ele com a Mata Atlântica e a Amazônia a gente cria um imaginário de que não há vida na caatinga, mas é um bioma muito rico em termos de fauna e flora, com várias espécies únicas e que estão ameaçadas de extinção”. 

De acordo com o Idema, “para que uma empresa obtenha deferimento da Licença Ambiental, necessita formalizar abertura de processo no sistema eletrônico utilizado pelo Idema, apresentando compilação de documentos que são devidamente orientados através de manuais disponíveis no site do órgão (checklist documental e instruções técnicas)”. Após esse processo, o Setor de Energias vai analisar se a empresa deve apresentar o Relatório Ambiental Simplificado (RAS) ou Estudo de Impacto Ambiental/ Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)

De acordo com os estudiosos, como já vimos nas reportagens anteriores, o que tem ocorrido é que, devido a instalação dos empreendimentos de energia renovável ser considerada uma atividade de baixo impacto ambiental por gerar energia limpa, a grande maioria das empresas são habilitadas a apresentar o Relatório Ambiental Simplificado (RAS), e isso resulta em danos ambientais irreversíveis.

“A abertura de estradas traz risco de vida aos animais porque promovem o aumento da caça e do atropelamento das espécies. Além disso, as aves e morcegos podem se chocar com as hélices dos aerogeradores”, explicou Paulo Marinho. 

Sítios arqueológicos na mira dos complexos eólicos

No nosso último dia em Cerro Corá, conhecemos a Serra Verde. Apesar da cidade ter uma boa estrutura para acolher os visitantes, apenas uma pessoa é responsável pelos passeios turísticos, o guia Genilson Carvalho. 

Durante a nossa visita, avistamos muitas serras localizadas no Geoparque Seridó, entre elas, a Serra Preta, de formação vulcânica. As formações rochosas e as pedras de granito dão vida a uma paisagem, que, até aquele momento, desconhecíamos. O roteiro incluiu o sítio arqueológico São Braz, com pinturas rupestres realizadas pelos indígenas Janduís e Canindés há, no mínimo, 5.000 anos.

No alto dessas serras alguns aerogeradores já estavam em funcionamento. Preocupado com a expansão dos empreendimentos na região, Genilson contou que a especulação tem crescido e que as empresas estão pressionando os proprietários para vender suas terras. “A gente ainda nem conhece todo o potencial da região porque ela foi pouco explorada. Tem muito mais sítios arqueológicos aqui, é uma área que precisa ser preservada e cuidada e não simplesmente ser entregue para as empresas”, disse o guia.

É justamente na tentativa de tornar reconhecida e valorizada a relevância ambiental e histórica das serras que compõem a região do semiárido que o movimento Seridó Vivo vem fiscalizando as licenças de operação das empresas eólicas. “Nós sabemos a importância da geração de energia renovável, mas ela precisa ser feita de maneira correta e é justamente isso que nós queremos com a realização de estudos de impactos ambientais bem elaborados”, defendeu Rani Sousa.

Junto aos órgãos de justiça e de fiscalização, como o Ministério Público do Rio Grande do Norte, o Ministério Público Federal (MPF) e a Procuradoria Geral do Estado, o Seridó Vivo tem promovido ações de vigilância e  conscientização sobre os danos que as eólicas estão causando e ainda podem causar. A prova da relevância do movimento está na formação do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Rio Grande do Norte depois de muita pressão da sociedade, para promover discussões sobre a energia renovável, e na recomendação do MPF de recomendar a pausa das licenças cedidas para o Complexo Eólico Ventos de Santo Eduardo. A iniciativa dos procuradores da República foi baseada em nota técnica elaborada pelo Seridó Vivo. 

Além do movimento formado por estudiosos e moradores do Seridó, a Cáritas Brasileira, que realiza ações de acolhimento à comunidades afetadas por desastres socioambientais e em situação de vulnerabilidade, também acompanha os impactos causados pela instalação dos complexos eólicos no Nordeste. Neilda Pereira da Silva, secretária executiva da Cáritas, destacou os danos sociais causados pela chegada das empresas:

“O que tem chamado atenção é a forma como essas empresas chegam nas comunidades, inicialmente com propostas de arrendamento dos locais, onde serão implantadas as torres eólicas, com contratos sigilosas e abusivos em relação às responsabilidades de ambos. No primeiro momento a mensagem é que haverá geração de emprego, renda, e desenvolvimento. Com o passar do tempo o que fica são famílias com problemas de depressão, com dificuldade auditiva, sem condições de plantar determinadas culturas, impacto na criação de pequenos animais, mulheres grávidas abandonadas – situações conhecidas como ‘os filhos dos ventos’”.


Explosões para instalar aerogeradores podem destruir pinturas rupestres com 5.000 anos / Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

“É necessário discutir com os conselhos estaduais de meio ambiente, e que as famílias atingidas tenham lugar de fala para que apresentem nesses espaços as problemáticas, a realidade enfrentada, e só assim, podemos encontrar caminhos para amenizar a situação dessas famílias”, concluiu a representante da Cáritas, queixando-se que os espaços de diálogo do governo petista do Rio Grande do Norte com a população ainda são insuficientes. 

No final de novembro, o Idema publicou uma portaria criando uma Unidade de Conservação nas cabeceiras da bacia hidrográfica do rio Potengi, localizada no Seridó, que abrange os municípios de Cerro Corá, Currais Novos e São Tomé. O órgão ambiental definiu que a unidade de conservação deve ser enquadrada na categoria “Refúgio da Vida Silvestre”. 

Apesar desta iniciativa, todas as pessoas com quem conversamos ao longo da viagem ressaltaram a falta de fiscalização do Idema. Para essas pessoas, a ausência de diálogo do órgão ambiental com as comunidades que serão diretamente afetadas pelos empreendimentos de energia renovável e a não exigência de estudos ambientais aprofundados pelas empresas são ações graves de descaso que possibilitam o desmatamento desenfreado e a alteração do modo de vida da população. “Infelizmente, aqueles que deveriam cuidar e preservar a nossa área verde parecem mais preocupados em favorecer as empresas do que em atender as necessidades do seu território”, concluiu Rani Sousa, do Seridó Vivo.

Esta reportagem foi produzida com apoio do Report for the World, uma iniciativa do The GroundTruth Project.