GASTO SOCIAL

PEC da Transição põe prazo para fim do Teto de Gastos e criação de nova âncora fiscal

Proposta autoriza "furo" do teto para garantir Bolsa Família de R$ 600 e mais dinheiro para Saúde e Educação

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |

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Impopular desde sua aprovação, a PEC 241 deu origem ao Teto de Gastos e foi alvo de protestos em 2016
Impopular desde sua aprovação, a PEC 241 deu origem ao Teto de Gastos e foi alvo de protestos em 2016 - Rovena Rosa / Agência Brasil

O futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), afirmou na terça-feira (13) que o novo governo vai apresentar ainda em 2023 uma proposta para uma nova âncora fiscal para a União, ou seja, uma nova legislação sobre os gastos do governo.

A regra deve substituir a lei do Teto de Gastos, aprovada em 2016, no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), e que limitou o crescimento do investimento público ao percentual da inflação.

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A revogação do Teto de Gastos é uma promessa de campanha do presidente-eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Para Lula, a regra impede novos investimentos em Educação e Saúde, por exemplo, prejudicando os mais pobres, que dependem do serviço público.

O Teto de Gastos impede também que 21 milhões de famílias continuem recebendo R$ 600 do Auxílio Brasil no ano que vem –a proposta de Orçamento encaminhada pelo presidente Bolsonaro (PL) prevê que o benefício seja de R$ 405 a partir de janeiro.

Para tentar manter o valor do auxílio, o governo eleito defende a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição. A PEC cria mais uma exceção ao Teto de Gastos –só nos quatro anos de governo Bolsonaro, o teto foi “furado” em três. O “furo” defendido pelo novo governo viabilizaria também o pagamento do reajuste de servidores públicos e o aumento real do salário mínimo, inclusive para aposentados.

Para o novo governo, a necessidade de uma PEC para garantir o pagamento de benefícios sociais é mais um sinal de que o Teto de Gastos não funciona. Levando isso em conta, na própria PEC, está prevista a criação de uma nova âncora fiscal para substituir a lei do Teto em até um ano.

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A PEC e, principalmente, a possibilidade de criação de um nova âncora fiscal que garanta investimentos sociais preocuparam economistas mais alinhados aos interesses do mercado financeiro. Andrew Storfer, diretor do Núcleo de Economia da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), afirmou que discussões como essa geram dúvidas sobre a situação das contas públicas.

“A PEC é mais um ‘vazamento’ do princípio da austeridade. Cria-se um temor de que haverá mais ‘vazamentos’ no futuro”, disse Storfer. “Se o governo não consegue manter as contas públicas controladas, terá de aumentar imposto. Isso não é bom.”

Necessidade da PEC

O economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), opõe-se à visão do mercado sobre PEC da Transição. Diz que ela é necessária.

“A PEC restaura a capacidade estatal de atuar em setores fundamentais como saúde e educação, resgatar obras paradas, fazer manutenção do equipamento público que está caindo aos pedaços”, afirmou. “Também coloca de maneira bem clara a ficção que é o Teto de Gastos.”

Roncaglia rechaçou que a PEC seja um “cheque em branco” ou uma “licença para gastar” para o novo governo. Explicou que a proposta em discussão estabelece valores a serem gastos e dá prazos para isso.

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A proposta já aprovada pelo Senado e que agora tramita pela Câmara dos Deputados prevê gastos fora do teto de até R$ 145 bilhões ao ano. Também autoriza o “furo” por dois anos –o novo governo defendia quatro.

Qual a nova âncora?

O futuro ministro Haddad afirmou na terça que pretende apresentar uma proposta para essa nova âncora fiscal antes do prazo previsto na PEC. Não adiantou detalhes sobre ela. Só afirmou que precisará garantir o “espaço para os pobres” no Orçamento, além disso passar “previsibilidade e confiança” para atrair investidores para o Brasil.

Daniel Negreiros Conceição, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), listou algumas formas de controlar gastos públicos:

Teto de Gastos: estabelece um valor máximo que o governo pode gastar anualmente. O valor é corrigido ano a ano com base na inflação com o objetivo de manter os gastos governamentais constantes no longo prazo. Sob a regra do teto, o governo perde a chance de aumentar investimentos em áreas específicas a não ser que corte gastos em outras;

Meta de superávit: estabelece que o governo não pode gastar mais do que arrecada em impostos, garantindo assim um superávit das contas públicas. Essa regra reduz investimentos públicos em épocas de crise, quando a atividade econômica diminui e a arrecadação de impostos, por consequência, cai;

Relação dívida/PIB: estabelece que a dívida de um país não pode ultrapassar um determinado percentual de seu Produto Interno Bruto (PIB). Dessa forma, governos não podem aumentar seus gastos a não ser que o PIB também cresça. Acontece que, por essa regra, quando o PIB cai, o governo também precisa reduzir gastos. Nem sempre isso é possível ou benéfico.

Relação gasto/PIB: cria um limite de gasto baseado numa proporção do PIB. É semelhante à regra dívida/PIB, com efeitos parecidos.

Conceição, pessoalmente, é contrário a essas fórmulas. Para ele, elas partem de uma premissa equivocada de que o governo pode ficar sem dinheiro para arcar com seus compromissos caso não controle seus gastos.

Isso, segundo Conceição, não é verdade porque, em último caso, o governo pode emitir moeda para pagar suas contas. Ele ressalta que a emissão indiscriminada de moeda não é recomendável, já que tende a gerar inflação. Mesmo assim, impor ao governo um limite ou um teto não é necessário e tende a comprometer a atuação do Estado benéfica à população.

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“Não faz sentido compararmos a economia de um Estado com uma empresa ou família, em que só se pode gastar o que se ganha”, explicou Conceição. “A Teoria Monetária Moderna entende que é a má qualidade do gasto público que gera inflação, não a só a quantidade desse gasto.”

Decisão política

Roncaglia reconhece que premissas da Teoria Monetária Moderna, também conhecida como MMT, fazem sentido. Ele, porém, diz que ela gera desconfiança pois não fixa métricas rígidas sobre o gasto.

Haddad já declarou em artigo na Folha de S.Paulo não ser adepto à MMT. Segundo O Estado de S.Paulo, o próprio Haddad teria atuado para suprimir do relatório do Senado sobre a PEC da Transição trechos que citavam a teoria após agentes do mercado financeiro criticarem sua menção.

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Conceição vê excesso de conservadorismo de Haddad e do governo de transição ao renegar a MMT. Roncaglia, por sua vez, disse que toda discussão sobre uma nova âncora fiscal depende mesmo de um acordo entre os vários atores políticos e econômicos, inclusive aqueles que são veementemente contrários à MMT.

Storfer, da Anefac, por exemplo, diz que a experiência mundial aponta que os gastos ilimitados do governo causam inflação, endividamento público e aumento dos juros. Ele, aliás, diz que o Teto de Gastos, por ser claro e rígido, é a melhor regra fiscal.

Já Roncaglia acredita que uma âncora fiscal baseada em metas de superávit e endividamento, com certa flexibilidade para momentos de crise, tende a ser a melhor alternativa para o Brasil. Mantém uma certa previsibilidade demandada pelo mercado financeiro, mas assegurara espaço para os investimentos de governo.

Edição: Rodrigo Durão Coelho